Girar a taça e sentir o aroma são apenas alguns gestos que um connoisseur pratica
Marcelo Copello Publicado em 17/08/2016, às 16h05 - Atualizado em 08/08/2019, às 15h32
"Connoisseur é um especialista que sabe tudo sobre alguma coisa e nada sobre qualquer outra coisa", Ambrose Bierce.
Segurando a taça por sua haste, fez girar o líquido enquanto o observava com seriedade. Aproximou o nariz do copo e aspirou profundamente, de olhos fechados, até encher os pulmões.
Só então colocou a bebida na boca, para em seguida bochechar ruidosamente antes de ingerir. Todos em volta riram. O líquido era água, e quem o bebia, um menino de seis anos, filho de um enólogo. O degustador-mirim, com sua percepção aguçada, ironizou os trejeitos do pai e tocou num tema recorrente: o gestual inerente aos apreciadores de vinho.
Quem degusta com freqüência acaba desenvolvendo alguns tiques característicos. Estes maneirismos já fazem parte do rico folclore do nobre fermentado. De discreta a espalhafatosa, passando por cômica, quantas vezes esta coreografia peculiar não foi satirizada? Muitas das vezes com razão, pois se o procedimento for exagerado, pode beirar o ridículo. O bom apreciador o executa com naturalidade e sem afetação.
Mas quais são estes gestos típicos e por que são feitos? Para começar, segura-se a taça por sua haste ou sua base, nunca por seu corpo, para não esquentar a bebida e não deixar marcas de dedo no vidro, prejudicando a apreciação visual do líquido. Observa-se o vinho com a taça inclinada e contra um fundo branco, para avaliar sua cor e seus reflexos. Em seguida, o movimento que delata e distingue um iniciado em meio à multidão, fazer o líquido girar dentro da taça. Para os afilhados de Baco, este gesto torna-se tão natural que já me surpreendi muitas vezes fazendo redemoinhos em copos de água. A prática visa aerar o vinho, ou seja, fazer com que ele interaja com o oxigênio e libere seus aromas.
Existem, é claro, muitos estilos para tal. Giradores rápidos, lentos, rítmicos ou abruptos. Há os destrógiros e os sinistrógiros. Há os que seguram a taça pela haste e os que usam sua base. Aos neófitos, sempre aconselho rodar a taça apoiada sobre uma mesa, evitando derramar bebida (não, em hipótese alguma gira-se a mesa!). Há os que usam não só a mão, mas todo o braço, ou até mesmo todo o corpo, embora o mais simples seja usar apenas o pulso. Neste caso, usar a munheca é muito útil e não interfere em sua opção sexual.
Em seguida, apresenta-se o vinho ao olfato num ato simples e natural: inclina- se a taça, aproxima-se o nariz e inspira- se. De olhos fechados, consultando nossa mais remota memória, procuramos associar os cheiros do fermentado a outros já sentidos antes. Neste momento, a expressão facial do apreciador, que dirá se a amostra é realmente de classe, poderá se comparar à que Chopin deve ter feito ao improvisar as primeiras notas de seu mais famoso Noturno. Pode ser interessante cheirar com a narina esquerda e depois com a direita, pois a sensibilidade nunca é a mesma em ambas. Usa-se também buscar aromas na borda superior da taça ou na inferior, pois fragrâncias mais pesadas e mais leves espalham-se por diferentes partes do vidro. Pode-se, ainda, deixar a taça quieta alguns minutos antes de, cuidadosamente, sem balançar o líquido, submetê-lo ao olfato.
Mas é ao colocar o líquido na boca que surgem os gestos mais caricatos deste ritual. A cartilha manda, primeiramente, mastigar o vinho, deixar que afunde na língua e passeie pelo palato, para que se possa sentir seu corpo, consistência, pungência e maciez, ou aspereza. Pode-se, também, com o líquido ainda na boca e fazendo biquinho, sugar ar de modo a provocar evaporação e sentir os "aromas de boca". Após engolir, verifica-se um possível amargor percebido no fim da língua, quase na garganta, e o calor provocado pelo álcool no descer da bebida ao estômago.
Muitos profissionais degustam com tanta freqüência que, sem perceber, exageram estes atos, puxando uma tragada poderosa do líquido, quase assobiando ao sugar ar, e, com muito garbo, cuspindo no balde de despejo mais próximo. Sim, o folclórico ato de cuspir o líquido realmente existe, pode ser desperdício, mas é uma necessidade profissional. Em eventos de maior porte, é por vezes necessário avaliar dezenas, ou até centenas de amostras em um único dia e, é claro, lembrar de todas no dia seguinte.
Para muitas pessoas, gesticular independe de estar degustando vinhos. Conheço muitos italianos que gesticulam ao telefone. Cada degustador tende a desenvolver seu próprio estilo, seus tiques, sua expressão corporal que ajuda a apreciar a bebida. É importante apenas frisar que tudo isso é dispensável se a garrafa tiver sido aberta por puro prazer, como acontece na maioria das vezes. Degustações técnicas são feitas apenas quando o intuito é avaliar uma garrafa para uma finalidade específica.