Bacalhau harmoniza com vinho tinto ou branco?
Carlos Cordeiro - Cwp Publicado em 28/03/2011, às 15h03 - Atualizado em 29/09/2021, às 15h53
A Páscoa está aí e muitas mesas não ficarão completas sem aquela receita especial de bacalhau para a Sexta-Feira Santa.
A tradição que remonta à Idade Média, quando havia um intenso calendário religioso de jejum de carnes vermelhas, foi popularizada no Brasil com a chegada da família real portuguesa em 1808. A forma de preparar o peixe varia enormemente, mas não há quem não tenha uma receita preferida.
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A maior dificuldade aparece na hora de buscar o vinho na adega para acompanhar o prato. De Vinho Verde a tinto do Douro encorpado, todas as alternativas já foram provadas e é possível encontrar defensores de cada uma delas.
De fato, por se tratar de um peixe, mas com sabor e aroma intensos, o bacalhau se coloca em uma posição intermediária na escala de corpo dos vinhos com os quais melhor se harmoniza (o frango é outro exemplo). Nesse ponto intermediário da escala, há uma sobreposição entre vinhos brancos encorpados e tintos de corpo médio.
Os vinhos brancos mais leves e refrescantes normalmente são dominados pela intensidade do bacalhau, enquanto os taninos dos tintos mais encorpados travarão batalha sem vencedores contra o sal do peixe. Mas, como existem centenas de receitas de bacalhau, todas elas se harmonizarão com o mesmo vinho? Evidentemente que não.
Aproveitamos a flexibilidade de preparo do bacalhau para utilizá-lo didaticamente como campo de provas confrontando as técnicas de cozimento com seis vinhos de características próximas, mas particulares.
Como as técnicas de cocção foram empregadas na elaboração de pratos finalizados, não há como isolá-las completamente dos ingredientes adicionados à receita, o que certamente resulta em alguma interferência (veja o Box falando sobre técnicas de cocção na página seguinte).
Chardonnay se mostrou uma casta versátil com o bacalhau, mas sua melhor combinação foi com o ensopado | Dolium foi perfeito com o bolinho devido à sua textura untuosa |
Nossa prova incluiu ao menos um representante de cada uma das categorias de cocção (vide Box):
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Aferventado - salada de bacalhau com feijão branco, tomate, cebola, salsinha, agrião e pimentões;
Fritura - o tradicional bolinho de bacalhau com batatas;
Salteado - risoto de bacalhau com azeitonas pretas;
Grelhado - bacalhau grelhado com pó de presunto cru (receita inspirada no grande chef basco, Juan Mari Arzak);
Assado - bacalhau "Saul Galvão" (receita popularizada pelo saudoso mestre), que leva batatas e cebolas pequenas, cabeças de alhos e postas de bacalhau, tudo cozido lentamente imerso em azeite de oliva (quase um confit, como o próprio Saul Galvão ensinava);
Ensopado - bacalhau "Cândido Portinari" (receita inspirada em preparação do chef Alex Atala), que inclui postas de bacalhau, leite de coco, azeite de dendê, pimentão vermelho e tomate.
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Os eleitos para enfrentar essa batalha foram: Grüner Veltliner L. Berg-Vogelsang 2009 - um Grüner Veltliner maravilhoso e acessível (tanto para quem não conhece, como para os iniciados).
As frutas se contêm em um segundo plano, deixando no centro do palco uma mineralidade e um esfumaçado que cria uma atmosfera quase misteriosa. Um vinho untuoso, com notas de especiarias. Seus 12,5% de álcool parecem variar conforme a necessidade. Leve quando deve ser, encorpado quando preciso. Extremamente refinado.
Dolium Escolha Branco 2009 - um branco alentejano produzido com a casta Antão Vaz pelo renomado enólogo e produtor Paulo Laureano. As frutas tropicais como manga, por exemplo, emprestam um frescor a este vinho, em realidade, bastante encorpado e untuoso. O final é longo e elegante. Uma ótima pedida para sair do comum.
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Viu Manent Gran Reserva Chardonnay 2008 - um Chardonnay que representa bem a qualidade crescente da casta no Chile. Presença de maçãs e peras (frescas e cozidas), figos, mangas e pêssegos. O carvalho adicionou especiarias e complexidade ao vinho. Um final fresco e longo. Correto e equilibrado.
Allende Blanco 2007 - branco riojano produzido com as castas Viura e Malvasia de forma moderna e arrojada para os padrões locais, sobretudo pelo uso de barris novos de carvalho francês. Destaque para a textura cremosa e um mel em primeiro plano. Baunilha e amêndoas aparecem a seguir e, finalmente, notas de frutas tropicais (melão e goiaba). Mais uma boa opção para sair da rotina.
- Harmonizações perfeitas, em que a soma de prato e vinho resulta em um novo elemento único e espetacular, ou seja, 1+1 = 3;
- Harmonizações que fazem ambos crescerem, mas sem constituir um novo corpo, ou seja. 1+1>2 (e menor que 3, claro);
- Harmonizações neutras. Não há prejuízo nem ganho para prato e vinho na harmonização, ou seja, 1+1=2
- Harmonização que gera perda, incompatibilidade entre prato e vinho. Ou seja, 1+1
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Bairrada Quinta do Valdoeiro Reserva 2003 - tinto da Bairrada com predomínio da casta local Baga, mas com corte de Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e Syrah. As frutas negras surgem lentamente por trás do ataque inicial de madeira e baunilha. A refrescância da Baga se deixa dominar pelo peso, sobretudo, da Cabernet Sauvignon e Syrah. Cresce lentamente na taça, ganhando outras dimensões.
Palliser Estate Pinot Noir 2006 - Excelente Pinot Noir de Martinborough, Nova Zelândia. Os verões quentes e outonos secos permitem uma perfeita maturação das uvas, o que resulta em vinhos bastante frutados. Neste 2006, o destaque são os morangos e cerejas. Presença sutil de aromas florais. Quando a explosão de frutas está contida aparecem os aromas de bosque molhado. A excelente acidez do vinho lhe dá vida, vivacidade, e quase queremos conversar com ele. Um vinho sofisticado.
Não é possível estabelecermos uma regra de harmonização para o bacalhau. Aliás, qualquer "regra" desse tipo pode prestar um desserviço aos consumidores. Pois muitos fatores influenciam cada harmonização em particular.
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No lado dos vinhos, o clima em que foram cultivados, o teor alcoólico, as técnicas de vinificação, como a utilização de barris de carvalho ou fermentação malolática, por exemplo, são elementos que devem ser levados em conta. Com relação aos pratos, dois fatores influenciam a constituição do corpo repercutindo, consequentemente, na harmonização: ingredientes e método de cocção.
As técnicas de cocção podem ser divididas em duas categorias básicas: calor seco e calor úmido (a literatura apresenta, eventualmente, a categoria intermediária entre as duas). A primeira reúne os grelhados, assados, salteados e fritos. A segunda, aferventados, pochês, no vapor, confit e ensopados. Para citar apenas as mais usuais.
Cada técnica influencia o resultado final de forma diferente. As técnicas mais sutis em termos de adição de corpo são o vapor e a fervura. Nessas técnicas não há interferência de óleo, manteiga ou outro tipo de gordura, portanto o resultado é um produto mais próximo de seu sabor original.
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Com alimentos preparados por meio dessa técnica, harmonizam-se, usualmente, vinhos leves e delicados. Seguindo na escala de adição de corpo por meio do preparo vem a fritura. Nessa técnica é utilizado um óleo de sabor neutro, de forma a não interferir tanto no sabor, mas, sim, na textura do alimento, criando uma camada crocante por fora e tenra por dentro, além de adicionar gordura. Podemos pensar em vinhos um pouco mais encorpados em relação à categoria anterior.
A seguir vem o salteado, que guarda semelhança com as frituras, mas no qual é empregada uma gordura que adicionará sabor ao preparo, como azeite de oliva ou manteiga. Nesse processo, o alimento é levemente caramelizado por fora, abrindo caminho para os vinhos com passagem por carvalho.Na etapa seguinte estão os grelhados. Aqui, a caramelização é mais intensa e é adicionado, também, certo sabor defumado, criando pontes sólidas para os vinhos com presença marcante de carvalho.
No penúltimo degrau de nossa escala (simplificada) estão os assados. A grande diferença em relação aos grelhados está no contato da gordura com o alimento. Enquanto na grelhagem a gordura é eliminada, nos assados a gordura adiciona corpo e riqueza ao preparo. A caramelização (intensa), o amargor daí decorrente e a gordura criam espaço para os taninos.
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Finalmente, os ensopados. Usualmente, nessa técnica, as proteínas passam por um preparo prévio de grelhagem ou salteamento, criando uma camada caramelizada que ajudará a manter a suculência do alimento. Posteriormente são adicionados molhos, caldos, fundos etc, que, após um período prolongado de cozimento, criarão uma complexidade de sabores, realçados, ainda, pela presença da gordura, capaz de se harmonizar com vinhos mais encorpados e igualmente complexos.
Houve uma tendência clara para os brancos. O Grüner Veltliner foi uma grata surpresa e mostrou-se um vinho excelente na harmonização com o bacalhau em suas variadas formas. Destacou-se com a salada leve e fresca, chamando a cebola para o mesmo nível do bacalhau, ambos sobre uma moldura discreta do feijão branco. O amargor do agrião deixou o vinho extra-seco, quase doce, criando uma sensação de contraste extremamente prazerosa. Com o bacalhau grelhado, a harmonização foi no sentido contrário, ou seja, por similaridade. O esfumaçado do vinho envolveu o defumado da grelha, criando uma combinação etérea amarrada ao chão pelo pó de presunto cru.
O Dolium, branco português, como não poderia deixar de ser, foi perfeito com o bolinho de bacalhau, ambos de textura untuosa. De olhos fechados, era difícil dizer quem era quem. Restringir essa combinação apenas à Semana Santa é um desperdício. Novamente por afinidade, ele se deu muito bem com o bacalhau confit. Batatas, cebolas e alhos extremamente macios e saborosos assistiram de camarote a um casamento para a vida toda.
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O mel do Allende riojano foi um contraste maravilhoso para o sal do bacalhau em todas as preparações, porém, quando encontrou cremosidade semelhante à sua no risoto, fechou a questão.
A Chardonnay se mostrou uma casta extremamente versátil com o bacalhau. Foi bem desde a salada até o confit e, apesar de ter sido escolhido visando, sobretudo, o risoto, pela presença cremosa da manteiga e do queijo, não chegou a ser uma surpresa o fato de ter sido combinação perfeita com o bacalhau ensopado. O destaque do preparo ficou por conta do leite de coco e do azeite de dendê, ambos cremosos e untuosos. A complexidade adicionada ao vinho pelo carvalho, tanto amanteigada quanto de especiarias, ficou à altura do prato.
O bom vinho da Bairrada, no caso específico do bacalhau, foi um pouco prejudicado pela potência da Cabernet Sauvignon e da Syrah. Ainda assim, fez belas combinações com o bacalhau grelhado e o ensopado.
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Somente um vinho com a elegância deste Pinot Noir poderia sair de cabeça erguida neste difícil embate. Mesmo a preparação mais complexa não foi capaz de criar a harmonia perfeita com o vinho. Sua acidez vivaz foi suficiente para enfrentar as gorduras do bolinho, do risoto e do confit, enquanto o presunto cru do bacalhau grelhado o trouxe ao jogo. Só de imaginar esse vinho enfrentando aves de caça e cogumelos já nos faz sonhar.
Nem sempre as harmonizações acontecem exatamente da forma como planejamos. Às vezes, é o vinho que supera as expectativas, às vezes o prato, decepções aqui e ali também são comuns, mas o principal e o mais prazeroso é tentar. E não se esqueça, da próxima vez que perguntarem qual o vinho ideal para acompanhar bacalhau, a resposta certa é: depende...