Conheça como diferenciar um vinho que passou do seu apogeu de um que apenas está atravessando um momento de discrição
Arnaldo Grizzo Publicado em 06/01/2023, às 12h00 - Atualizado às 17h55
Ninguém gosta de ter o desprazer de abrir uma garrafa especial, guardada durante anos, e perceber que o vinho não corresponde às expectativas. Mas os enófilos colecionadores, que gostam de amadurecer alguns rótulos antes de consumi-los, estão sujeitos a isso. O tempo pode ser extremamente recompensador, contudo, também cruel algumas vezes.
Definitivamente, não é fácil abrir uma garrafa após tanto tempo e se deparar com uma bebida “ruim”. Isso é duplamente decepcionante, pois você não só investiu o dinheiro da compra, mas também suas emoções, especialmente suas esperanças.
No entanto, como diferenciar um vinho que já está quase morto – ou seja, passou do seu apogeu e, a cada dia, decai mais e mais – de um que apenas está atravessando um momento de discrição – ou seja, perdeu sua exuberância juvenil, mas tem potencial para seguir evoluindo e melhorar?
Antes de tentar solucionar essa questão, todavia, é preciso entender um pouco do processo de evolução do vinho, seus aromas e sabores. E, mais ainda, a estranha fase em que ele supostamente está “dormindo”.
Até hoje, ninguém foi capaz de explicar exatamente o porquê de certos vinhos entrarem em fase de latência, ou dormência, ou hibernação, como preferir. Há muitas teorias, mas poucas provas.
A maioria das explicações remete à evolução da bebida em garrafa. Lembremos então que os aromas primários – fragrâncias das uvas – são costumeiramente os primeiros a serem percebidos.
Esses aromas geralmente são acrescidos de outros, ditos secundários, produto da fermentação e do estágio em barrica, por exemplo. Por fim, há os aromas terciários, mais “misteriosos”, resultado das combinações entre ésteres e outros produtos voláteis com o álcool já na garrafa.
Dessa forma, há quem acredite que essa fase de latência é causada pelo processo de engarrafamento, quando o oxigênio é incorporado. Isso levaria a bebida a encontrar um novo equilíbrio químico. Há ainda quem aponte para os sulfitos, que geralmente são adicionados para ajudar a preservar o vinho e podem interferir nos aromas e sabores. Contudo, isso não explica o porquê de rótulos que não levam adição de enxofre também passarem por fases semelhantes.
Ainda dentro do tema do engarrafamento, outra possibilidade poderia ser a quebra precoce de algumas cadeias de taninos e outros compostos, que demorariam a se reagrupar. O transporte da garrafa e a exposição a variações de temperatura também ajudariam a gerar essa inconsistência evolutiva.
Acredita-se que a primeira fase de latência de um vinho ocorra entre os seis primeiros meses após o engarrafamento a até um ano, quando o oxigênio e os sulfitos (se forem adicionados) estarão “reajustando” os aromas e sabores da bebida. Esse seria o motivo pelo qual muitos produtores só colocam seus rótulos à venda após esse período.
Há ainda quem aponte que uma segunda fase de dormência ocorre logo após o transporte (intercontinental) devido à intensa movimentação da garrafa e alternância de temperaturas. Esse estágio duraria cerca de um mês.
Apesar de o fenômeno ocorrer, não há consenso entre os produtores, enólogos e críticos de vinho. Há quem simplesmente não concorde com a teoria de que um vinho possa atravessar uma fase “ruim”, dizendo que são apenas estágios diferentes de sua evolução natural.
Alguns chamam isso de curva evolutiva e, em certos momentos, o vinho pode estagnar, para, logo em seguida, partir para outro nível. Ou seja, para eles, esses vinhos apenas demorariam mais para alcançar seu pleno estágio de maturação.
Certos produtores bordaleses admitem que alguns rótulos podem entrar nessa fase de latência entre o terceiro e o quinto ano após o engarrafamento.
Mas isso não é uma regra e tampouco há como definir quando um vinho ingressará em seu momento de hibernação.
Não há como determinar com exatidão a curva evolutiva de um vinho. Eles evoluem em ritmos diferentes e podem ou não entrar em fase de dormência. Uma teoria diz que vinhos de safras mais quentes tendem a passar por esse processo mais do que os de colheitas mais frias. De qualquer forma, é impossível prever se isso vai ocorrer ou não com um rótulo.
Já o crítico inglês Steven Spurrier acredita que esse é um fenômeno que acontece mais frequentemente com vinhos à base de Cabernet Sauvignon, Syrah, Mourvèdre e Sangiovese, por exemplo, e menos com Pinot Noir e Grenache. Segundo ele, os rótulos destas duas últimas variedades tendem a esvanecer com o tempo em vez de se “silenciarem”.
No entanto, grandes colecionadores do mundo chegaram a atestar que alguns dos mais prestigiados vinhos da Borgonha, por exemplo, atravessaram fases de latência por impressionantes 20 anos antes de se abrirem novamente. Spurrier lembra que, às vezes, Portos Vintage também passam por processo semelhante, sendo fragrantes quando jovens e ficando fechados durante décadas a fio até se mostrarem novamente.
O crítico Hugh Johnson, por sua vez, acredita que a questão está mesmo relacionada às safras. Segundo ele, cada safra evolui em uma certa velocidade, algumas mais lentamente, outras mais rapidamente. Mais do que isso, ele admite que nem sempre é capaz de reconhecer quando um vinho está passando por uma fase de dormência. “Sempre acho que abri o vinho cedo demais”, revela.
Uma solução para enfrentar esse problema, segundo os críticos, seria adquirir uma caixa e abrir as garrafas periodicamente para acompanhar a evolução da bebida. Spurrier, por exemplo, conta que quase sempre degusta as três primeiras garrafas de uma caixa de Bordeaux em seu período de latência, seis em bom estado e as últimas três já levemente decadentes. Johnson, por sua vez, simplifica as coisas dizendo: “Se você quer fruta, abra o vinho jovem. Se quer maturação, seja paciente”.
Outra solução seria optar pelas novas tecnologias, como o Coravin (destaque da edição 127 de ADEGA). Esse aparelho permite que você prove um pouco do vinho sem retirar a rolha, evitando-se, assim, abrir uma garrafa que não está em seu momento ideal.
Mas, enfim, o que caracterizaria essa fase de latência que a diferenciaria de um estágio mais avançado e próximo da decrepitude? Um vinho dormente tende a ser descrito como “fechado”. Ou seja, ele não revela quase nada nos aromas, tampouco em seus sabores. Críticos ingleses e norte-americanos costumam dizer que o vinho está “mudo”. Basicamente, ele não diz nada. Você procura os aromas frutados dos primeiros anos, mas eles não estão lá, estão escondidos, ou melhor, mudando lentamente. Por isso, também é dito que está passando pela “adolescência”.
Infelizmente, colocá-lo no decanter pouco ajudará. É consenso que, quando o vinho atinge esse estágio, nenhum tipo de aeração fará com que ele recupere as suas características juvenis, de frutas marcantes, por exemplo. Decantar pode até minimizar um pouco os efeitos, liberando alguns poucos aromas, mas não solucionará o problema. Apenas o tempo (em garrafa) pode ajudar nesse caso.
Mas como diferenciá-lo de um vinho cujo apogeu já ficou para trás e está indo rumo à morte? Enquanto um vinho dormente, apesar de não se expressar muito, revela boas características e potencial – especialmente em sua estrutura –, rótulos que passaram do tempo tendem a apresentar aromas e sabores que nem sempre são agradáveis. Eles geralmente são marcados pela oxidação e os aromas frutados estão decadentes, aparecendo fragrâncias que os franceses definem como sous bois, uma mistura de algo terroso, com ervas e cogumelos – característica, todavia, que nem sempre pode ser considerada depreciativa.
Em alguns casos, leves tons acéticos podem surgir, dando uma pista ainda mais clara de que o melhor momento daquele vinho já ficou para trás há tempos. A cor, apesar de também não ser um parâmetro definitivo, pode ajudar no reconhecimento. Tintos muito descoloridos e brancos muito escuros podem ser indícios de decrepitude.
Enfim, em um vinho dormente, deve-se procurar pelo seu potencial e ter paciência, enquanto um vinho “morto” não terá mais nada a oferecer com o tempo. Por isso, há quem diga que é melhor abrir um vinho um dia antes de seu apogeu do que um dia depois. Mas, quando é esse apogeu? Ninguém realmente sabe.
*Texto foi originalmente publicado na edição 131 da Revista ADEGA, de setembro de 2016, e republicado após atualização