Pesquisas arqueológicas ligadas revelam que o vinho antigo raramente era feito somente de uvas
Arnaldo Grizzo Publicado em 17/05/2022, às 12h00
Acredita-se que já são mais de 9 mil anos de experimentações.
Sim, o homem produz vinho desde tempos imemoriais, muito antes do nascimento da escrita e, portanto, é difícil saber com exatidão o que nossos ancestrais bebiam. A considerar a abundância de estilos que temos atualmente – desde tintos potentes até os mais sutis, de brancos encorpados aos mais ligeiros, fortificados, rosés, laranjas... – podemos ter certeza de que o ser humano já provou de tudo um pouco ao longo dos milênios.
Sabemos como os vinhos são hoje, mas como eles chegaram até esse estágio? Por que evoluções eles passaram? Como eram as bebidas nos primórdios? Para se ter uma ideia, no livro “Ancient Wine: The Search for the Origins of Viniculture”, Patrick McGovern – a maior autoridade em pesquisas arqueológicas ligadas ao vinho no mundo – revela que o vinho do período neolítico raramente era feito somente de uvas. Eram bebidas fermentadas mistas, geralmente com uva, arroz, hidromel etc. Segundo o pesquisador, essa mistura de ingredientes servia para aumentar o teor alcoólico.
Então, com tantas possibilidades de mesclas de ingredientes, os sabores e aromas desse vinho podiam ser os mais variados. Evidências em diferentes partes do mundo mostraram vinhos feitos com resinas de árvores (seiva), figo, mel, ervas, cevada, trigo, romãs, avelãs, alecrim, tomilho, absinto etc. O azeite de oliva também era ocasionalmente usado para proteger contra a oxidação (já que flutuava na superfície do vinho). Acredita-se que tudo isso era usado não apenas por uma questão de gosto ou para “mascarar” a qualidade ruim da bebida, mas por fins medicinais, porque o álcool extrai melhor certos componentes botânicos do que a água.
Mesmo com o desenvolvimento da agricultura, os vinhos continuaram a ser mesclados, especialmente com resinas, até a Idade Média. Ou seja, durante séculos, os sabores e aromas do vinho certamente lembravam muito mais um vermute. Com certeza, não havia o “sabor do terroir”, máxima tão decantada atualmente. A explicação para o uso das resinas não se deve somente ao sabor, todavia, principalmente, à conservação, dando ao vinho uma maior resistência microbiana.
Além desse caráter certamente herbáceo, os vinhos antigos, na maioria das vezes, eram doces, parcialmente devido ao pouco controle sobre a fermentação (o açúcar não era consumido integralmente pelas leveduras), mas também por uma predileção da humanidade em si por sabores adocicados. Outro ponto importante era o “serviço” do vinho. A não ser os povos bárbaros – gauleses, germânicos etc. –, o mundo civilizado (gregos e romanos) raramente bebia vinho “puro”. Era costume misturar água. Na verdade, na maioria dos casos podia-se dizer que era costume misturar vinho na água, pois a maior parte era de água. Por mais estranho e herético que isso possa parecer para um enófilo atualmente, esse hábito perdurou até quase os nossos dias.
Como o vinho tendia a ser bastante denso, turvo, quase como um xarope, uma das formas de torná-lo palatável era misturando-o em água. E, durante muito tempo, essa foi uma das maneiras de “purificar” a água, fazendo com que o álcool matasse os microrganismos possivelmente causadores de doenças. Durante séculos, o que era considerado impuro era a água.
Pouco se sabe sobre o vinho da Idade Média, mas acredita-se que ele era consumido o mais brevemente possível para evitar que estragasse – pois ninguém sabia como mantê-lo por muito tempo. Durante muitos e muitos anos até a era moderna, os vinhos eram claretes leves – pois maceravam por pouco tempo. A partir do século XVII, contudo, surgiram os tintos mais encorpados, criou-se o hábito de amadurecê-los e envelhecê-los. Isso graças a três fatores: a adição de enxofre, a produção de garrafas escuras e o uso da rolha de cortiça como vedante. Além disso, descobriram-se os benefícios da fortificação (uso da aguardente para cessar a fermentação) na conservação (nasciam os Vinhos do Porto, Madeira, Jerez, Marsala etc.), além do método de segunda fermentação em garrafa dos espumantes.
Produtores seculares muitas vezes gostam de apontar a constância como um de seus pilares, afirmando que, mesmo diante das modas, seus vinhos nunca mudam. Mas se pegarmos registros de alguns vinhos clássicos históricos, certamente veremos que eles dificilmente eram como são hoje em dia. No curso dos séculos, algumas mudanças foram drásticas, especialmente nos métodos de produção.
No século XVIII, por exemplo, os vinhos tendiam a ser macerados por algumas horas, um dia quando muito e passavam até três anos em carvalho. O pouco tempo de maceração significava um vinho de cor extremamente pálida e o tempo de estágio provavelmente levava à oxidação e aparecimento de acidez volátil (avinagrado, literalmente). A maioria dos tintos também costumava ser feito com parte de uvas brancas (inclusive o mítico Romanée-Conti!, que levava Pinot Blanc ou Gris). Isso não é incomum ainda hoje, em que pequenas porcentagens são adicionadas em casos específicos e até mesmo denominações clássicas como Châteauneuf-du-Pape, por exemplo, incluem variedades brancas em seu corte.
Um século depois, nos anos de 1800, os tempos de maceração tenderam a aumentar para alguns dias e o estágio em barrica por mais anos. Apesar do maior tempo com as cascas e o consequente tingimento mais pronunciado na cor, ainda faltavam taninos para proteger contra a oxidação do envelhecimento e os tons acéticos, com certeza, apareciam.
Para efeitos de comparação, atualmente as macerações tendem a durar semanas e o envelhecimento em barricas de carvalho vai de poucos meses a alguns anos dependendo do produtor, estilo, região etc. Mas, diferentemente de seus “antepassados”, o vinho moderno macera tempo suficiente para ganhar cor e taninos, e resistir ao estágio, assim como ao envelhecimento em garrafa.
Para que o vinho tivesse o leque de estilos que apresenta hoje, foram necessários séculos de evolução, com contribuições essenciais de monges estudiosos, intrépidos navegadores, agricultores curiosos, os mais diversos empreendedores, pessoas que se dedicaram ao vinho e transmitiram sua sabedoria para que a humanidade pudesse continuar saboreando essa bebida que nunca para de surpreender.
Em 2014, o pesquisador Patrick McGovern fez parte de um projeto que descobriu fragmentos de cerâmica datados de 6.000 a 5.800 a.C., que mostram evidências de vinho de uva puro, sem o uso de resinas.
O local da descoberta estava dentro dos limites da cultura Shulaveri-Shomutepe, que habitava o que hoje é o oeste do Azerbaijão, norte da Armênia e sudeste da Geórgia. Esta é a primeira evidência de um vinho feito 100% de uva na história até hoje, mas McGovern afirmou que é necessário mais pesquisas para “ver quão difundido e duradouro foi esse fenômeno”.