Redação Publicado em 24/02/2020, às 18h29 - Atualizado em 26/03/2020, às 14h54
Franciacorta pode lembrar "corte francês", que seria uma referência do uso de Pinot Noir e Chardonnay assim como em Champagne. No entanto, o nome deriva de "curtes francae", que eram pequenas comunidades medievais de monges beneditinos
Quem estuda a história do champagne sabe que esse espumante, famoso mundialmente, tem sua origem em um “erro”. Apesar do famoso mito de Dom Pérignon que, ao provar seu vinho, espantado, teria dito: “Estou bebendo estrelas”, a verdade é que os monges da região de Champagne durante muito tempo tentaram evitar que seus vinhos criassem borbulhas. Isso mesmo, a ideia nunca foi fazer um vinho espumante, mas tranquilo, como todos os outros na época, em especial os da Borgonha, região na qual se espelhavam.
No entanto, sem que os monges percebessem, o frio tendia a interromper a fermentação antes de o açúcar ser todo consumido. Então, quando a temperatura voltava a subir, boom!, milhares de garrafas explodiam nas caves de Champagne assim que as leveduras retomavam seu trabalho e produziam gás carbônico, aumentando a pressão interna. Ou seja, durante anos, o que os monges queriam era evitar isso. Somente mais tarde as cortes passaram a apreciar esses vinhos espumantes e eles começaram a ser elaborados de uma melhor maneira.
Pois então, se podemos dizer que Champagne nasceu de um erro, Franciacorta não foi muito diferente. Contudo, a história do mais famoso espumante italiano é muito mais recente, tendo começado em 1961. Diz-se que, nos anos 1950, Guido Berlucchi produzia um vinho simples chamado “Pinot del Castello”, na região da Lombardia, norte da Itália. Ele tinha vinhas na área do castelo Borgonato e quase sempre enfrentava um problema de estabilidade: depois de engarrafado, seu vinho tendia a estragar. Foi então que conheceu um jovem enólogo chamado Franco Ziliani.
Ziliani ajudou Berlucchi a solucionar o problema de estabilidade de seus vinhos, mas também propôs ao produtor criar espumantes, que ele ambicionava um dia poderem competir com os champagne franceses. A ideia era ousada, pois, até então, na região só se produziam tintos considerados medíocres.
Em 1954, junto com Berlucchi e seu amigo Giorgio Lanciani, eles criam a “Guido Berlucchi & C.” e só em 1961 produziram as primeiras 3.000 garrafas do espumante “Pinot di Franciacorta”. O sucesso foi quase imediato, com boa recepção do público e da crítica. Então, de repente, vindo para solucionar um problema, Ziliani acabou criando o mito da Franciacorta como conhecemos hoje.
Franciacorta pode lembrar “corte francês”, que seria uma referência do uso de Pinot Noir e Chardonnay assim como em Champagne. No entanto, o nome deriva de “curtes francae”, que eram pequenas comunidades medievais de monges beneditinos, situadas ao redor do lago Iseo e da cidade de Brescria e eram isentas do pagamento de impostos aos senhores feudais. A primeira vez que esse nome aparece é em 1277. Pouco mais de 100 anos depois, uma conspiração de nobres tornou Brescia, pertencente à república de Veneza, e aí apareceram as famosas torres com ameias, que se transformariam no símbolo de Franciacorta.
Apesar de Franco Ziliani ser considerado o pai da Franciacorta, em 1570, porém, um médico bresciano chamado Girolamo Conforti já teria escrito sobre os vinhos espumantes da região em seu “Libellus de vino mordaci” (“O livro do vinho ‘cortante’”, em tradução livre). O texto fala da técnica de preparação dos vinhos com fermentação natural em garrafas e seus efeitos no corpo humano, e os classifica como “mordace”, algo como divertidos e espumantes.
As teorias de Conforti precederam as do famoso Dom Pérignon em Champagne. Ele conhecia profundamente a enologia francesa e afirmou que os vinhos Franciacorta se tornaram mais espumosos durante o inverno, e se deterioraram durante o verão. A origem da espuma estava, portanto, na “ebulição do mosto” ou, mais corretamente, na fermentação, que, mesmo então, precisava ser controlada, para que as “escórias gasosas, leves e pungentes” não se dispersassem. Diz-se que foi a partir dessas considerações que os primeiros produtores de Franciacorta começaram a usar grãos de cevada para acentuar e prolongar a fermentação.
Em 1961, Franciacorta tinha meros 11 produtores, 29 hectares de vinhedos e produção de 2 mil hectolitros de Pinot di Franciacorta. Em 1967, a Denominação de Origem Controlada Franciacorta foi criada e o Consórcio foi fundado, com 29 membros, em 5 de março de 1990, na vila de Corte Franca. Atualmente são cerca de 200 membros de uma região que congrega 19 comunidades: Adro, Brescia, Capriolo, Cazzago San Martino, Cellatica, Coccaglio, Colônia, Corte Franca, Erbusco, Gussago, Iseo, Monticelli Brusati, Ome, Paderno Franciacorta, Paratico, Passirano, Provaglio d'Iseo, Rodengo Saiano e Rovato.
Antes de 1960, os vinhos produzidos na região eram basicamente tintos e brancos tranquilos. Quando se começou a produção de espumantes, os métodos variavam. Somente em 1993 foi imposto o método tradicional de segunda fermentação em garrafa para que os produtos fossem reconhecidos como Franciacorta.
Os espumantes Franciacorta podem ser produzidos com um blend de Chardonnay, Pinot Nero (Noir), Pinot Bianco (até no máximo 50%) e, mais recentemente, autorizou-se a introdução da casta Erbamat (até o máximo de 10%). Os vinhos precisam ficar pelo menos 18 meses sobre as borras e a evolução precisa continuar por pelo menos 25 meses depois da colheita.
Há um Franciacorta dito Satèn (que teoricamente deriva da palavra sedoso em italiano) cuja diferença para o Franciacorta “normal” é ser produzido somente com castas brancas. Ou seja, um “Blanc de Blancs”. O Satèn pode levar Chardonnay (deve ser majoritária no corte) e Pinot Blanc (até no máximo 50%) e só pode ser feito na versão Brut. A ideia é que seja um vinho de sensação aveludada.
Há ainda a versão rosé, que pode levar Chardonnay, Pinot Bianco (até 50%), Pinot Nero (no mínimo 35%) e Erbamat (até 10%). Deve ser feito com uma base de Pinot Noir vinificada em rosé.
Quando aparece o termo Millesimato, isso significa ser um Franciacorta safrado e ele deve conter ao menos 85% de uvas de um mesmo ano e só pode ser vendido, no mínimo, 37 meses após a colheita. Já os Riserva teoricamente são feitos em uma safra muito especial e só podem sair ao mercado 67 meses após a colheita.
A região ainda possui denominações específicas para seus vinhos tranquilos: Curtefranca DOC e Sebino IGT. Os Curtefranca brancos podem levar Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Blanc e os tintos podem ter desde Carménère (isso mesmo!) e Cabernet Franc até Cabernet Sauvignon e Merlot. Mas as estrelas, obviamente, são os espumantes, uma ótima alternativa ao Champagne.