Conheça como foi a redescoberta da Carménère

Há quase 30 anos um ampelógrafo esbarrou com uma variedade tida como extinta há muito tempo, a Carménère

Christian Burgos Publicado em 09/02/2010, às 15h09 - Atualizado em 11/04/2023, às 15h53

Imagine a sensação de descobrir um ser vivo que o mundo julgava extinto. Em poucas palavras, foi o que aconteceu com Jean Michel Boursiquot num vinhedo chileno - como se estivesse em um verdadeiro Parque dos Dinossauros, porém, felizmente, ele se deparou com uma espécie que não persegue e devora seu descobridor.

Em 24 de novembro de 2009, ADEGA teve a honra de ser uma das cinco revistas internacionais convidadas para a celebração dos então 15 anos do redescobrimento da Carménère no Chile. Nos vinhedos da Viña Carmen, onde a variedade considerada extinta foi redescoberta, uma cerimônia reuniu ministros, dirigentes de associações de enólogos e produtores, grandes importadores mundiais de vinho e, principalmente, os personagens que viveram aquele momento histórico. Ao final do texto conheça os melhores Carménère já degustados por ADEGA.

Entre estes últimos, ninguém menos que o ampelógrafo francês, Jean Michel Boursiquot, o redescobridor da Carménère entre as videiras de Merlot. Na ocasião, o atual enólogo-chefe de Viña Carmen, Stefano Gandolini, brindou a todos com a história da Carménère, que compartilhamos a seguir.

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Jean Michel Boursiquot, o ampelógrafo que encontrou a Carménère no Chile

Carménère surgimento, declínio e renascimento

A Carménère pertence à grande linhagem Cabernet, dentro da qual podemos encontrar suas meio-irmãs Cabernet Sauvignon e Merlot, e seu pai Cabernet Franc. No século XVIII, a Cabernet Franc era a variedade mais popular da França, e no século XIX se tornou a variedade mais reconhecida e prestigiosa de Médoc. Seguindo os passos do pai, vinha a filha Carménère.

Em sua obra, o "pai" da ampelografia moderna, Pierre Galet, cita: "a Cabernet Franc e a Carménère são as duas variedades que fizeram famosos universamente os vinhos do Médoc". Outros antigos tratados de ampelografia dão à Carménère atributos qualitativos excepcionais, apesar de já reconhecerem a dificuldade de seu cultivo por ser uma variedade tardia - é uma das últimas a alcançar a maturação de seus frutos.

Os vinhedos franceses, no século da famosa classificação de Bordeaux de 1855, foram seguidamente atingidos por enfermidades provenientes da América. A mais devastadora foi a filoxera, que se abateu sobre os vinhedos franceses em 1865, mas que já fora precedida pelo oídeo em 1850, e foi seguida pelo míldio em 1885.

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Com o replantio dos vinhedos atingidos pelas pragas, foi dada preferência a variedades com produção mais consistentes e mais precoces - aquelas cujo amadurecimento se dá mais cedo -, e assim ganha espaço e importância a Merlot, em detrimento da Carménère, que passa à história oculta nos vinhedos do Chile confundida com a Merlot.

Stefano Gandolini vê a Carménère como um tesouro escondido nos vinhedos chilenos e que, longe de ser uma casta qualquer, fora uma das grandes variedades de Bordeaux.

Merlot e Carménère estavam sendo cultivada sem a compreensão de que eram variedades distintas

Por mais de um século, Merlot e Carménère estavam plantadas juntas nos vinhedos dos vales andinos, cultivados sem a compreensão de que eram variedades distintas. Como sabemos, a Merlot amadurece muito antes da Carménère e, assim, ao colher as uvas no tempo adequado para a Merlot, colhia-se uma Carménère verde. E, ao esperar mais pelo amadurecimento da Carménère, colhia-se Merlot sobremadura, impactando seriamente na qualidade dos vinhos produzidos.

Assim, o despertar do Carménère no Chile não ocorre em má hora. Longe disso, pois o Merlot chileno vivia desprestigiado pela indústria do vinho.

Em 1994 ocorre no Chile o 6º Congresso Sulamericano de Viticultura e Enologia e tem entre seus convidados o ampelógrafo francês Jean Michel Boursiquot que, em visita aos vinhedos de Viña Carmen, identifica, em 25 de novembro de 1994, a Carménère plantada entre as videiras de Merlot.

O então enólogo Alvaro Spinosa e o presidente da vinícola, Ricardo Claro, tomaram a decisão de produzir - e identificar como tal - o primeiro vinho varietal Carménère que chegou ao mercado em 1996.

Merlot francês e "Merlot" chileno

Hoje pode-se perguntar como isso pôde acontecer, pois, ao vermos plantas de Carménère e Merlot, parece quase impossível aceitar esta confusão entre as variedades. A planta da Carménère nos é visivelmente mais exuberante em folhagem, além de adquirir uma cor avermelhada que contrasta com o verde das folhas da Merlot. O fato é que os antigos produtores chilenos muitas vezes já se referiam ao "Merlot francês" e ao "Merlot chileno", e a Carménère era tida como um clone de Merlot.

A folhagem da Carménère também é diversa da Merlot, cepa com a qual era confundida no Chile

Desde então, o desenvolvimento da qualidade dos vinhos Carménère está se dando a passos largos. A princípio, a tentativa de basear a Carménère como produtor de vinhos com enfoque na relação custo x benefício revelou-se um problema, visto que ela não é uma variedade fácil e seus aromas são muito verdes se não tratada com grande atenção.

Dessa maneira, os primeiros Carménère chilenos a inundar o mercado não representavam o melhor potencial da variedade, muito pelo contrário, a ponto de o crítico de vinhos inglês Tim Atkim dizer que se tratava de uma variedade de segunda categoria em 2003. Isso acirrou os ânimos de muitos produtores, mas motivou tantos outros a trabalhar duro em conjunto com as universidades chilenas para alterar esta percepção de sua uva ícone.

Os problemas a resolver eram três: eliminar o aroma e sabor verde, torná-la uma variedade consistente do ponto de vista produtivo e, por fim, fazer dela uma casta com boa sanidade, dada sua sensibilidade a pragas. Atualmente, muitos produtores chilenos dizem que finalmente, após 15 anos de sua descoberta, a experiência no manejo da Carménère se aproxima de seu nível ótimo.

Indiana Jones por acaso?

Christian Burgos (editor de ADEGA), Ciro Lilla, Boursiquot e José Ignácio Vargas

Poderíamos imaginar que um ampelógrafo (um estudioso das videiras e formato de suas folhas) - que habita como personagem principal algumas das bíblias da história do vinho - deveria ser um senhor de óculos e barbas brancas. Ou então, uma espécie de Indiana Jones. Contudo, Jean Michel Boursiquot - que conversou conosco com exclusividade - está na casa dos 40 anos, tem aparência jovem, cabelos pretos curtos e óculos de aros leves. A hipótese Indiana Jones também cai por terra ao presenciarmos sua timidez e humildade, ficando quase desconfortável na sua posição de centro das atenções da celebração.

ADEGA – Quando descobriu a Carménère nestes vinhedos, você pressentiu a grandiosidade do momento que estava vivendo?

Jean Michel Boursiquot – É difícil responder, tive a sensação de que era importante, quase uma certeza, mas não imaginei o tamanho das consequências da descoberta.

ADEGA – Como o conhecimento da Carménère estava tão presente em você para conseguir perceber que algumas daquelas plantas não eram Merlot, mas, sim, Carménère?

Jean Michel Boursiquot – É claro que eu estudara muito as variedades francesas. Antes de vir ao Chile, nunca havia visto Carménère na natureza, mas, em anos de estudo, havia tido acesso a folhas de Carménère conservadas em coleções que estudara. Sabe, você trabalha muito e algumas vezes apenas uma pequena parte de seu esforço será recompensada. Mas você nunca sabe qual parte [risos].

ADEGA – A que você dedica seu tempo atualmente?

Jean Michel Boursiquot – A dar aulas e pesquisar. Hoje pesquisamos a linhagem das videiras através de mapeamento genético e estamos construindo uma importante base de dados com os perfis genéticos. Estamos tentando encontrar e estabelecer o parentesco entre as variedades de forma a mapear a evolução das videiras.

ADEGA – Qual a importância de conhecer estas linhagens?

Jean Michel Boursiquot –  Através disto podemos compreender e prever o comportamento das variedades, as características dos frutos de cada uma e seu papel no vinho resultante.

Os melhores Carménère chilenos degustados por ADEGA

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