A Geórgia é o berço do vinho com as castas milenares Rkatsiteli e Saperavi que supostamente Noé plantou após o dilúvio
Lucas Bertolo Publicado em 17/06/2020, às 14h52 - Atualizado em 30/09/2024, às 08h00
Com uma história vitivinícola que remonta a mais de 8.000 anos, a Geórgia é um dos berços da produção de vinho no mundo. Situada entre o Mar Negro e o Grande Cáucaso, o país abriga mais de 500 variedades autóctones de uvas e preserva técnicas ancestrais como a vinificação em qvevris.
Entre as castas mais emblemáticas estão a Rkatsiteli, famosa por seu frescor e resistência ao frio, e a Saperavi, uma uva tintureira que gera vinhos intensos e encorpados. Explorando as ricas tradições e terroirs únicos da Geórgia, o país fascina com sua ligação profunda entre a cultura, o vinho e a terra.
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Um viajante ocidental desavisado provavelmente compreenderia apenas uma palavra do georgiano, uma vez que a língua é de raiz quase tão isolada quanto a basca: vinho, em georgiano, se pronuncia gvino, e se escreve ღვინო. O singular alfabeto georgiano foi criado inicialmente para fins eclesiásticos, e é utilizado atualmente por menos de cinco milhões de pessoas.
A Geórgia, país incrustado entre o Mar Negro e o Grande Cáucaso, onde Europa e Ásia dissolvem-se numa coisa só, é a terra de mais de quinhentas variedades autóctones de uvas viníferas, e a região onde os primeiros traços de vitivinicultura foram encontrados.
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Com uma história peculiar, o país converteu-se precocemente ao cristianismo, no início do século IV, teve a sua era de ouro entre os séculos XII e XIII, período de expansões territoriais e desenvolvimento nas ciências e artes, foi anexado pelo Império Russo no começo do século XIX, e tornou-se uma república socialista soviética no período compreendido entre 1921 e 1991, quando se tornou independente.
Os primeiros “viticultores” do mundo provavelmente foram os povos que habitavam o sul do Cáucaso. Sementes de uvas milenares e fragmentos de vasos de barro com vestígios de ácido tartárico (componente primário das uvas, e presente no vinho), têm sido descobertos em diversos sítios arqueológicos ao redor de Tbilisi, capital da Geórgia moderna. Análises químicas indicam que a vitivinicultura teve início naquela região no sexto milênio antes de Cristo.
Por lá, é possível ainda hoje contemplar este legado milenar de cultura da vinha: o maghlari, método arcaico de cultura extensiva, consiste em cultivar as videiras com o mínimo de intervenção, até que se tornem verdadeiras árvores.
É um método mais presente no oeste georgiano, próximo de Kutaisi, e do mar. O dablari, mais semelhante aos métodos modernos de cultura intensiva, busca conduzir o crescimento da videira por meio de podas, para assim controlar a quantidade e qualidade das uvas.
Para além dos métodos de cultivo da vinha, o mais singular elemento da ancestral vitivinicultura da Geórgia são os grandes vasos de terracota utilizados nos processos de vinificação e armazenamento: os qvevri. Inscrito desde 2013 como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o método de vinificação por qvevri fascina e inspira hoje produtores de vinho de todo o mundo.
Enterrados na terra, com apenas um tampo de madeira visível, esses vasos de formato oval permitem maior tempo de maceração do mosto de uva, e aproveitam uma temperatura mais amena abaixo da superfície. Alguns produtores mantêm a tradição de cobrir as paredes internas dos qvevri com cera de abelha, o que altera a qualidade da superfície de contato do vinho.
Há regiões produtoras de vinho do noroeste ao sudeste da Geórgia, mas a maior denominação de origem controlada do país é Kakheti, entre os rios Alazani e Iori, ao leste de Tbilisi.
Após a anexação do território pelos russos, em 1801, iniciou-se na região o desenvolvimento de uma vitivinicultura nos padrões europeus. Em Tsinandali, ainda hoje um pequeno vilarejo, o poeta romântico, e aristocrata nascido em São Petersburgo, Alexander Chavchavadze construiu a maior vinícola (marani) de toda a Geórgia, onde continua armazenado o primeiro vinho georgiano engarrafado: um Saperavi de 1841.
A microzona, de 653 hectares, dá nome a um dos vinhos emblemáticos do país: uma mescla das uvas Rkatsiteli e Mtsvane (que, em georgiano, quer dizer “verde”), o Tsinandali é um vinho branco de corpo médio, cor de palha e viva acidez.
Segundo o livro do Gênesis, após o dilúvio, Noé teria se tornado lavrador e plantado uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se. A vinha, dizem muitos georgianos, complementando o Antigo Testamento, era de Rkatsiteli.
Os cachos da Rkatsiteli são geralmente grandes, e com pequenas bagas. As uvas atingem simultaneamente altos níveis de açúcar e de acidez. Tem produtividade alta, amadurecimento tardio e é resistente a temperaturas frias.
Uma das mais antigas castas do Cáucaso, a Rkatsiteli é a variedade mais cultivada de toda a Geórgia. Antes das campanhas antiálcool de Gorbatchov, que promoveu a arrachage (desenraizamento, literalmente, em francês) de dezenas de milhares de hectares de vinhedos, prejudicando severamente a indústria do vinho soviética, era possivelmente a casta mais cultivada em todo o mundo.
Na Geórgia, o método tradicional de vinificação com as cascas da Rkatsiteli em qvevris ainda é praticado, em menor escala, e produz um vinho cor de âmbar, com frescor, notas de especiarias e um aroma de maçã verde inconfundíveis.
Nas regiões mais quentes de Kakheti, a Rkatsiteli é mobilizada para a produção de vinhos fortificados, à maneira dos Vinhos do Porto. Também são produzidos espumantes com Rkatsiteli, mas os naturais altos níveis alcoólicos dificultam a vida dos enólogos.
Na República da Moldávia, é chamada por muitos nomes: Corolioc, Rkatiteli, Topolioc. É largamente cultivada na Bulgária, com mais de 13 mil hectares de vinhedos. Na China, é conhecida como Baiyu, e é cultivada nas províncias de Shandong, Jiangsu, Anhui e na vasta região de Xinjiang.
Os chineses estão entre os maiores consumidores de vinhos georgianos, juntos com os Estados Unidos, que também cultivam Rkatsiteli, na região dos Finger Lakes, estado de Nova York, e na Virgínia.
Uma casta tintureira, cujo nome remete a pintar, manchar de tinta, o vinho de Saperavi é o tinto mais produzido na Geórgia. As bagas são pequenas, e possuem uma casca grossa e escura.
Os georgianos comumente definem o vinho de Saperavi como “vinho preto”, dada à forte coloração extraída no mosto. É mais suscetível ao míldio e à botrytis, e geadas primaveris podem prejudicar o amadurecimento precoce das uvas. É uma variedade muito antiga, originada na região histórica de Meskheti, na fronteira da Geórgia com a Turquia. Mas é em Kakheti que tem sido mais e melhor cultivada.
A versatilidade da Saperavi é bem conhecida nos países banhados pelo Mar Negro. Em Krasnodar e em Rostov, no sul da Rússia, eram mais de 700 hectares cultivados em 2010.
Outros 300 hectares produzem uma casta híbrida, a Saperavi Severny (Saperavi do Norte, em russo), em Rostov-on-Don. Ucranianos e moldávios tinham mais de 2.200 hectares cultivados 10 anos atrás.
Na Armênia, disputa com a casta nacional Areni a hegemonia dos vinhedos. E, na Austrália, a Saperavi encontrou um novo clima, e tem produzido vinhos interessantes nas regiões de Victoria, Barossa e McLaren Valley.
Em Kindzmarauli é feito o melhor vinho fortificado de Saperavi. Os monovarietais tranquilos produzidos com a casta são encorpados, com acidez e taninos presentes, têm um sabor forte de cassis, amoras e evoluem bem com o tempo.
A vinificação da Saperavi em qvevris também é realizada, por produtores especiais, concentrados nas microzonas, denominações de Kakheti, de Mukuzani e Napareuli.
No Brasil, o vinhateiro James Martini Carl, da Negroponte Vigna, foi o pioneiro no cultivo e na produção de um vinho de Saperavi. Ele cultiva também as castas Chinuri, Rkatsiteli e Usachelari. “Os vinhos no sul do Brasil, zonas mais frias, altas e úmidas, são mais aptas a castas principalmente da Geórgia”, acredita o produtor.