A família Torres, da Espanha, chegou ao Chile em 1979 e o enólogo Cristian Carrasco Beghelli conta sobre a nova fase da vinícola
Arnaldo Grizzo Publicado em 14/10/2022, às 11h50
A família Torres, da Espanha, tem uma relação muito estreita com seus lugares de origem, valorizando ao máximo cada singularidade local e trazendo à tona todas as coisas nativas e peculiares de uma região.
É assim em solo espanhol, principalmente na Catalunha, onde possuem um fantástico projeto de resgate de variedades perdidas ou esquecidas, mas também por toda parte onde o grupo familiar se instalou.
Quando chegaram ao Chile, em 1979, eles foram alguns dos pioneiros, ajudando a desbravar a região de Curicó, mas também trazendo novas tecnologias, como tanques de aço inoxidável. Em pouco tempo, a Viña Miguel Torres tornou-se um referência em diversos aspectos, incluindo formas sustentáveis de trabalho e relação com a comunidade local, implementação de práticas orgânicas etc.
Também foi em busca das ligações mais estreitas dos vinhos com seu local de origem. Tanto que foi uma das primeiras a olhar para a casta País, uma variedade camponesa que hoje é uma das joias do terroir chileno.
Dessa forma, mesmo tendo chegado em Curicó primeiramente, desde o começo a Torres Chile busca “os melhores lugares para cada variedade”. Tanto que essa busca se reflete em sua linha Cordillera de los Andes. “É um reflexo da origem, o melhor lugar para cada uma das cepas”, conta o enólogo Cristian Carrasco Beghelli.
São sete vinhos, sendo seis varietais e um espumante, cada um vindo de uma região específica. “Queremos mostrar a diversidade do Chile”, apontou Beghelli, em uma prova exclusiva para ADEGA com safras dos seus Chardonnay de Limarí, Sauvignon Blanc de Osorno e Cabernet Sauvignon do Maipo, além dos projetos de Carignan, no Maule, e País Cinsault, em Itata, assim como novos e interessantes ensaios.
O enólogo conta que os Chardonnay mais interessantes do Chile vêm da região norte do país, especialmente de Limarí, um terroir com grande presença de calcário, pois teria sido um fundo do mar que aflorou. A acidez e o toque mineral se devem a isso, mas também ao fenômeno Camanchaca, nuvens que cobrem a região todas as manhãs e mantém o clima – que é quase desértico – fresco, fazendo com que as uvas amadureçam muito lentamente.
Até 2019, o Chardonnay da linha Cordillera vinha de dois vinhedos clássicos da zona: Quebrada Seca e Talinay, este último mais próximo do mar. Desde 2020, porém, tudo vem de Talinay. “Buscamos um pouco mais de sensação de rocha, de giz, na boca, que há em Talinay. Ter dois vinhedos não nos convencia. Agora há uma maior sensação de acidez, e também salina. Há um trabalho de barricas importante, com 9% de barrica nova para dar um pouco mais de cremosidade, para compensar essa sensação vertical”, descreve Beghelli.
Para o Sauvignon Blanc, ele diz que escolheram Osorno, cerca de 600 quilômetros ao sul de Santiago. “Tem um clima muito frio, devido à latitude, não pela proximidade do mar. A influência marinha não é tanta. São solos vulcânicos. O vinhedo é plantado em terraços e a fileiras são diferentes. No interior, matura-se mais lentamente. No exterior, há notas mais tropicais. Essa conjunção dá um vinho mais complexo”, afirma.
Para o Cabernet Sauvignon, as uvas vêm de Pirque, “um dos lugares mais particulares e interessantes do Maipo”. Os vinhedos estão a 800 metros de altura, no sopé dos Andes, “em solos aluviais e coluviais, com alta presença de rochas redondas, uma matriz calcária e arenosa em vez de argila”. Segundo Beghelli, “nessa condição, o Cabernet dá vinhos muito elegantes, com bons taninos, bom peso, bom volume, toques herbáceos”. Ele diz que o trabalho em cima do Cabernet veio evoluindo com os anos, sobretudo no uso das madeiras. “Buscando cada vez mais a expressão da uva em vez de fazer tanto na vinícola, cada ano com menos barrica nova”.
Além de Cordillera, a Miguel Torres tenta mostrar a originalidade dos terroirs chilenos com projetos como o Heroes del Vino Tenaz, elaborado em Itata. “É um vinho que fala de seu produtor, Jose Miguel Castillo, o personagem do rótulo. Fala de sua tenacidade para manter o vinhedo. Itata é um pequeno tesouro. E só graças aos produtores não desapareceu. Cada produtor é um homem tenaz”, diz Beghelli.
O enólogo afirma que a Cinsault chegou ao Chile em 1930 – a mesma época da Carignan –, para ajudar nas mesclas de País. Enquanto a Carignan encontrou seu lugar no Maule, a Cinsault o achou em Itata. Foi aí que Torres encontrou esse vinhedo de 1955 não irrigado para elaborar um vinho de “leveduras nativas, 5% de cachos inteiros, barricas neutras, bastante rústico”.
Também de Itata, mas mais do sul, na margem sul do rio Bíobio vem o rótulo Millapoa, um País de um vinhedo centenário – adquirido em 2018. “Com os anos, os vinhos de País foram sendo implementados em complexidade, elegância. Aqui há um solo granítico coberto por cinza vulcânica, muito profundo. Faz-se o processo de zaranda, desengaçando à mão e depois se fermenta em madeira rauli (típica do Chile) com leveduras nativas. Passa-se a ovos de concreto e depois um ano na garrafa”, resume Beghelli.
A primeira safra de Carignan da Miguel Torres foi em 1995. Desde 2019, porém, eles passaram a fazer parte da associação Vigno (Vignadores del Carignan). “São produtores que se auto impõem regras de produção, formando uma espécie de primeira denominação de origem no Chile. Há padrões a serem seguidos: somente Carignan de vinhas de mais de 30 anos ou enxertado em porta enxerto de mais de 30 anos, sem irrigação, do secano interior do Maule e estagio de dois anos antes de sair no mercado”.
“Este vinho pode refletir a mudança de estilo que estamos tendo em Miguel Torres nesse momento; e o alinhamento para onde queremos ir com nossos vinhos”, conta Beghelli, falando que, desde 2018, passaram a selecionar uvas de um vinhedo mais perto da costa, mais fresco, usar madeira de formatos diferentes, leveduras nativas etc., para criar vinhos que “sejam mais amáveis quando saiam ao mercado e não que esperem tanto tempo na garrafa”. “Na vinícola, saímos de algo muito técnico para sermos condutores da uva”, resume.
E talvez o ápice dessa transformação esteja na linha Los Inquietos. Beghelli diz que o rótulo foi criado para abarcar as experimentações mais interessantes da Viña Miguel Torres. “Sempre vai ser algo de vinhedos ou vinificações experimentais que encontramos e que sejam bons demais para ‘ser perder’ em vinhos mais massivos. Fazemos então pequenos lotes para ir mostrando o que vamos pesquisando ano a ano. Em enologia, as pesquisas são bem lentas, pois você tem só uma oportunidade no ano para experimentar coisas. Então, em cada safra, vem aparecendo ensaios como esse. Nesse momento temos Los Inquietos 01 e 02”, resume.
Los Inquietos 01 é um field blend de um vinhedo de 1945, com predominância de Malbec (“85%, acreditamos”), um pouco de Cabernet Sauvignon, Carménère, uma variedade que se supõe ser Portugaise Bleu, mas também País e Cinsault. “Um pequeno jardim de variedades de 12 hectares, que não se sabe quem plantou, muito perto da costa do Maule. Isso gera um vinho muito particular. Eduardo Jordán (diretor técnico da vinícola) trouxe a uva, pediu para fermentar tranquilamente, com leveduras nativas e guardar em foudre. Ele vem feito do campo com uma complexidade inédita, umas 1200 camadas, muito boa estrutura, frescor e uma acidez que é rara de encontrar em vinhos chilenos. Um dos vinhos mais interessantes que fizemos nesse momento”, diz Beghelli. Já o Los Inquietos 02 vem de um vinhedo de Cabernet Sauvignon centenário também do Maule. A produção foi tão pequena que só foi vendida no Chile.
Elaborado exclusivamente a partir de uvas Chardonnay cultivadas em Limarí, com fermentação e posterior estágio de 11 meses, tanto em aço inox (47% do vinho) quanto em barricas de carvalho francês, (53% restante), sendo 7% novas. Chama atenção pela textura firme e pela vibrante acidez, que envolvem sua fruta cítrica e branca. Austero e vertical, tem ótimo volume de boca e final persistente, com toques salinos, de limão siciliano e de giz.
Elaborado exclusivamente a partir de uvas Chardonnay cultivadas em Limarí (Talinay), com fermentação e posterior estágio de 10 meses, tanto em aço inox (45% do vinho) quanto em barricas de carvalho francês, (55% restante), sendo 9% novas. Os efeitos de um ano mais quente são percebidos no perfil de fruta tropical e de caroço mais madura, seguidas de notas florais, de ervas frescas e de especiarias picantes, que aparecem tanto no nariz quanto na boca. Chama atenção pela textura firme e cremosa e pela acidez vibrante, que trazem fluidez e profundidade ao vinho. Tem final longo e persistente, com toques cítricos, salinos e de giz.
Elaborado exclusivamente a partir de Sauvignon Blanc, sem passagem por madeira, mas mantido em contato com suas borras durante alguns meses antes do engarrafamento. Mostra frutas cítricas e brancas de perfil mais fresco acompanhadas de notas de ervas, tudo escoltado por vibrante acidez e rica textura. Tem final persistente, com toques salinos e de limão Tahiti.
Elaborado exclusivamente a partir de Sauvignon Blanc, sem passagem por madeira, mas mantido em contato com suas borras durante alguns meses antes do engarrafamento. Tenso, vibrante e vertical, mostra notas de ervas e de flores envolvendo sua fruta cítrica e tropical. Impressiona pela acidez afiada e pela textura tensa. Tem final longo, elétrico e muito profundo. Puro suco de limão com gotas de sal e de arruda.
Elaborado exclusivamente a partir de Sauvignon Blanc, sendo que 80% permanece em tanques de aço inoxidável e 20% em barricas de carvalho francês (50% novas) durante alguns meses antes do engarrafamento. Mostra frutas cítricas e brancas seguidas de notas herbáceas e de especiarias picantes, com sua acidez elétrica e sua textura cremosa envolvendo o conjunto e aportando fluidez. Tem final longo, cheio e persistente, com toques salinos.
Projeto inspirado em pequenos viticultores, nesse caso José Miguel Castillo, que em Huaro, no vale de Itata, cultiva as uvas desse tinto 100% Cinsault de vinhedos centenários, com estágio de 12 meses em barricas usadas de carvalho francês. Vivo, vibrante e cheio de tensão, esbanja frutas vermelhas maduras no ponto certo, sem concessão ao dulçor. Depois aparecem notas florais, terrosas e de especiarias. Mas, é na boca que merece atenção, com seus taninos de grãos finos, sua ótima acidez e seu perfil austero e fluido. Tem final persistente, com toques de groselhas e de ameixas. Não se engane com ele, por ser fácil de beber, parece ser menos complexo do que realmente é.
Elaborado exclusivamente a partir de uvas País advindas de vinhedos centenários, com fermentação espontânea em lagares de raulí e, posterior, estágio de 11 meses em ovos de concreto. Mostra notas terrosas e de ervas envolvendo sua fruta vermelha e negra de perfil mais fresco, com sua acidez pulsante e sua textura firme sustentando e aportando profundidade ao conjunto. De boa tipicidade, mostra a rusticidade da cepa de modo domado e tem final suculento e persistente, que pede a companhia de embutidos.
Elaborado exclusivamente a partir de Cabernet Sauvignon, com estágio de 12 meses em barricas de carvalho francês, sendo 20% novas. Sempre consistente, essa é mais uma ótima versão desse tinto. Um retrato dessa variedade no Maipo, mostra notas de especiarias picantes e de ervas seguidas de ameixas e cassis. No palato, tem acidez refrescante, taninos tensos e finos e final agradável e persistente, com toques de alcaçuz e de grafite.
Elaborado exclusivamente a partir de Cabernet Sauvignon, com estágio de 18 meses em barricas majoritariamente usadas de carvalho francês (87%) e em foudres de carvalho alemão (13%). Impressiona pela acidez vibrante e pelos taninos firmes e tensos, que envolvem sua fruta vermelha e negra de perfil mais fresco (mesmo em um ano em teoria mais quente), tudo envolto por notas florais, de ervas e de especiarias doces. Fluido, gastronômico e gostoso de beber, tem final persistente, com toques terrosos e de ameixas.
Elaborado exclusivamente a partir de uvas Carignan, de Huerta e Melozal, no Maule, com estágio de 14 meses, sendo 63% em tanques de aço inoxidável e 37% em barricas novas e usadas de carvalho francês. Fluido e gostoso de beber, tem vibrante acidez e taninos tensos e de textura arenosa, que envolvem sua fruta vermelha e negra madura no ponto certo. Tem final cheio e persistente, com toques terrosos, de ervas e de ameixas, convidando a mais um gole.
Feito majoritariamente a partir de uvas Malbec acrescidas de pequenas partes de Cabernet Sauvignon, Carménère, Cinsault, entre outras, advindas todas do vinhedo Limávida, plantado em 1945. Todas as variedades são colhidas simultaneamente e cofermentadas sem leveduras adicionadas, com estágio de 18 meses, sendo 61% em foudres de carvalho alemão e 39% em barricas usadas de carvalho francês. Impressiona pela qualidade e nitidez de fruta negra de perfil mais fresco, lembrando ameixas e cassis, tudo apoiado por taninos tensos e finos e vibrante acidez. Tem final suculento e persistente, com toques de ervas, de violetas, de especiarias e de amoras.