Desafios de gênero, como as mulheres buscam espaço na indústria do vinho

Sammara Gomes Publicado em 08/03/2021, às 07h00

 

Somente 10% do número de profissionais trabalhando na produção de vinhos na Austrália são mulheres e esse número está em declínio desde 2007

“Hoje, alguns dos melhores vinhos da Austrália são produzidos por enólogas”, a afirmação enfática é de Virginia Willcock, enóloga chefe da vinícola Vasse Felix, localizada na região de Margaret River. Ela trabalha como enóloga há mais de 20 anos em uma região que, segundo ela, sempre teve presença muito forte de mulheres: “Margaret River sempre teve uma presença feminina muito forte e isso continuou a ser proeminente ao longo da minha carreira”. 

Ela e outros nomes como Vanya Cullen, da vinícola Cullen em Margaret River, Louisa Rose, da vinícola Yalumba, na região de Barossa Valley, Sue Hodder, da vinícola Wynns Coonawarra Estate ou ainda Sarah Crowe da vinícola Yarra Yering, na região de Yarra Valley, fazem parte de um grupo de mulheres que, com frequência, veem seus vinhos serem nomeados como alguns dos melhores da Austrália. Porém, segundo Virginia mesma descreveu, conciliar a carreira de enóloga com a vida familiar em certas épocas do ano é difícil. “É incrivelmente desafiador quando chega a época da colheita e o início da produção, e isso requer 100% de comprometimento com a fruta por um período de dois a três meses direto. Será que você está mesmo disposta a se comprometer com uma carreira que exige longas horas, trabalho físico pesado, além de ter que sacrificar a família, filhos pequenos e os amigos?”. 

É justamente isso o que o professor Jeremy Galbreath da Universidade de Curtin em Perth / Western Austrália discutiu em uma de suas pesquisas de 2016, indagando sobre a crescente lacuna entre homens e mulheres na indústria do vinho na Austrália.  

Menos mulheres 

Hoje, somente 10% do número de profissionais trabalhando na produção de vinhos na Austrália são mulheres e esse número está em declínio desde 2007. Após investigar os desenvolvimentos nessa indústria, os resultados mostraram que o número de mulheres em função de vinificação diminuiu 1,04% desde então no país, sendo que a queda foi mais acentuada na região da Austrália Ocidental (onde fica Margaret River) com um índice de 6,15%. A localidade em que houve o maior índice de crescimento foi na região de Nova Gales do Sul com 2,89%, de acordo com Galbreath. 

“Na Austrália, os números são bem equilibrados entre homens e mulheres quando se formam nas universidades nos cursos de enologia, porém, alguma coisa acontece no meio do caminho e os homens tendem a progredir na carreira e as mulheres não avançam da mesma forma e quantidade”, afirma o professor. Uma pesquisa realizada pela Master of Wine Harriet Tindal mostrou que, em 1980, apenas 13% do total de graduados na Universidade de Adelaide no curso de enologia eram mulheres. Contudo, em 2015, esse número atingiu uma alta histórica de 55%, com um índice mínimo de pelo menos 35% de graduadas em anos anteriores. 

Vanya Cullen da vinícola Cullen em Margaret River

No entanto, mesmo que ao se graduarem essas mulheres estejam dispostas a exercerem o trabalho pesado, se mudarem para as zonas rurais e trabalharem longas horas na vinícola tal como os homens, pesquisas identificaram que, quando as elas optam por ter filhos, isso representa um agravante para o progresso de suas carreiras e, de fato, algumas podem abandonar completamente a indústria. 

Descobrimos que, historicamente, a indústria do vinho (global) tem sido patriarcal e dominada pelos homens. Embora certamente isso tenha mudado ao longo dos anos e as mulheres participem cada vez mais em níveis mais altos com cargos executivos, importação, exportação e marketing, ou até mesmo em funções de vinificação por exemplo, a minha percepção é de que a indústria do vinho ainda tende a ter uma cultura masculina”, avalia Galbreath. 

E isso fica mais evidente quando essas mulheres decidem iniciar uma família, uma vez que, está demonstrado que essa decisão afeta mais as mulheres do que os homens com a pressão para deixar o emprego depois de terem filhos, ou abster-se de ter mais filhos. “Existem funções mais flexíveis na indústria que tornam viável a permanência das mulheres no trabalho integral, como nas funções administrativas, por exemplo, porém, a vinificação não é uma dessas funções. Hoje, as mulheres representam 75% dos trabalhadores em empregos de meio-período, o que acarreta em impactos negativos não só financeiros, mas também no progresso de suas carreiras. Essa indústria é bem mais difícil para a mulher do que para o homem”, conclui o professor.  

Escolhas difíceis 

Quando questionada se foi mais difícil conseguir um trabalho na indústria há 30 anos  quando se formou na universidade  ou esse desafio é maior para a geração atual, a enóloga Sue Hodder, da vínicola Wynns Coonawarra Estate, foi enfática ao afirmar que, na verdade, foi bem mais difícil para a geração anterior a dela. “As minhas colegas que se formaram na década de 1970 tiveram muito mais dificuldades em conseguir emprego. Eu não posso dizer o mesmo, pois acredito que tive boas oportunidades desde o início. O fato de gostar muito da zona rural foi crucial para a minha carreira, pois as melhores oportunidades para quem quer trabalhar nessa área estão aqui. 

Apesar de ficar desapontada por ainda ter que abordar assuntos de gênero como esse em pleno século XXI, Sue acredita quepara alcançar a igualdade nessa área, é preciso fazer escolhas mais difíceis, como morar em uma cidade mais afastada dos grandes centros urbanos, o que significa, muitas vezes, ficar longe da família e dos amigos. “Podemos ser o que quisermos ser, basta termos perseverança para superar as dificuldades, que serão muitas. Eu trabalho em uma vinícola de grande porte e com uma equipe mista. Tenho o privilégio de trabalhar com a enóloga Sarah Pidgeon, que é outra profissional premiada, porém, não a vejo como outra mulher premiada’, eu olho para ela como outra profissional premiada. Somos amigas e fazemos parte de uma equipe”, complementa. 

Prêmio para mulheres 

Quando criou o que seria hoje um dos prêmios mais importantes na indústria de vinhos da Austrália, Jane Thomson já sabia que essa não seria uma tarefa fácil e por um único detalhe: o prêmio seria destinado somente às mulheres que se destacavam na indústria do vinho. “Eu simplesmente estava cansada de não me ver representada em premiações que insistiam em esquecer de premiar enólogas, cujos vinhos estavam no topo da lista de melhores da Austrália daquele ano”. 

Quando Jane criou o Australian Women in Wine Awards em 2015, o objetivo era fazer somente cinco premiações, uma vez que ela acreditava que, nesse período, haveria uma mudança na visão das outras premiações e a inclusão que ela tanto sonhava se tornaria uma realidade. Porém, seu Wine Awards tomou proporções muito maiores do que ela esperava e hoje se tornou seu trabalho em período integral. Em 2017, a premiação das enólogas australianas aconteceu em Londres e, no ano passado, o evento foi ainda maior, sediado em Nova York em parceria com a Wine Australia – uma instituição governamental que trabalha na promoção dos vinhos australianos e que viu nessa premiação uma oportunidade para promover a igualdade gênero na indústria, o que não é feito em nenhuma outra região vinícola do mundo. 

Apesar da premiação ser um sucesso e ter o suporte de boa parte da comunidade na indústria de vinhos da Austrália, Jane recorda que já foi chamada de sexista, por “excluir” os homens na premiação: “Já fui chamada várias vezes de sexista e confesso que adorei. Por muitos anos, desejei e tive esperança de que uma premiação como essa não seria necessária, mas, infelizmente, para avançarmos em certas áreas, precisamos criar as nossas próprias plataformas. O prêmio é bem abrangente e tem várias categorias. Temos conhecimento de que se trata de uma premiação sexista, mas espero que essa premiação não precise continuar por muitos anos”. 

Questão de atitude 

Sabendo que o número de enólogas na Austrália está em declínio, Sue tem se empenhado para tentar reverter essa situação. No ano passado, juntamente com outras quatro enólogas, ela lançou o vinho “Hear me Roar (Ouça-me rugir), um Shiraz produzido com uvas de diferentes regiões do sul da Austrália como Barossa Valley, CoonawarraEden Valley e McLaren Valley. O vinho esgotou-se rapidamente e todo o lucro obtido com as vendas foi direcionado para programas de orientação, desenvolvimento profissional e bolsas de estudos para mulheres na indústria de vinhos da Austrália. “Nosso plano agora é produzir o Hear me Roar com outras variedades de diferentes estados, como, por exemplo, um Chardonnay da região de Victoria ou Western Austrália ou até mesmo alguma variedade da Itália”. 

Sue Hodder da vinícola Wynns Coonawarra Estate e Sarah Pidgeon

Jane também acredita na força de programas que visam a qualificação de mulheres na indústria, porém, ela acrescenta que, para um melhor resultado, é necessário também investir em programas para reinserir essas mulheres de volta em suas funções após a licença maternidade. “É muito comum ouvirmos que as mulheres devam trabalhar tanto quanto o homem ou que a mulheres devam persistir ao invés de reclamar de discriminação, porém, já está mais que comprovado por pesquisas que as mulheres têm tido dificuldades de voltar para o mercado de trabalho após a licença maternidade e estou me referindo aqui às funções de viticulturista ou enóloga, cargos para os quais já provamos que temos mérito suficiente para ocupar. 

Ela também acredita que as mudanças já estão acontecendo e que elas estão partindo de onde menos esperávamos: a geração nascida entre os anos de 1981 a 1996, os chamados “Millennials”. Conhecida principalmente pelos “ideais de vida flexíveis”, essa geração tem lutado por direitos iguais, para homens e mulheres. “Hoje, é muito comum ver homens lutando pelos mesmos direitos de licença maternidade que o das mulheres e, ao mesmo tempo, vemos mulheres decidindo muito cedo que não serão mães, e está tudo certo”, finaliza Sue. 

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