A dupla poda é uma técnica que está revelando novas regiões produtoras no Brasil
Raquel Poleto Fonseca Publicado em 11/02/2025, às 10h00
Quando falamos de vinhos no Brasil, é meio óbvio que vinculemos a produção à região sul do país, especialmente o Rio Grande do Sul, o principal produtor. No entanto, a história do vinho (de vinhas europeias) em nossas terras não começou lá, mas no litoral de São Paulo.
Registros dão conta que, em 1531, a coroa portuguesa enviou Martim Afonso de Souza para iniciar o domínio efetivo sobre a "Nova Terra". Em março de 1532, Brás Cubas, um fidalgo nascido na cidade do Porto, tornou-se o primeiro viticultor do Brasil. Após fundar a Vila de Santos e o primeiro hospital da região, ele decidiu plantar as videiras trazidas de Portugal nas encostas da Serra do Mar, onde atualmente está a cidade de Cubatão. No entanto, a experiência não obteve sucesso.
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Todavia, Brás Cubas subiu a serra e, seguindo o conselho de João Ramalho, estabeleceu um novo vinhedo nas proximidades do Tatuapé. Esse empreendimento revelou-se mais produtivo, sendo mencionado pelo padre Simão de Vasconcelos como as "fecundas vinhas paulistanas".
Com o tempo, a videira foi levada para diversas regiões do país por imigrantes europeus, que enfrentaram dificuldades na adaptação das variedades, encontrando no sul condições favoráveis ao cultivo, manejo e produção de vinhos finos. E assim as outras regiões acabaram ficando relegadas a um segundo plano até recentemente.
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Nos últimos anos, o setor tem experimentado um grande crescimento, tanto em avanços tecnológicos quanto na expansão territorial. Regiões do sudeste e centro-oeste vêm ganhando destaque, estabelecendo uma produção de vinhos de qualidade. Um dos fatores mais relevantes para essa transformação é a adoção de uma técnica chamada “dupla poda”, que possibilita a produção de vinhos em regiões com invernos secos e frios, contornando os desafios impostos pelo clima.
Mas no que consiste a dupla poda? A videira possui um ciclo anual, fortemente influenciado pelas estações e pelo clima – basicamente hibernando no inverno e dando frutos no verão. Seu manejo no vinhedo ao longo do ano é dividido em fases e cada uma requer diferentes métodos para que a preparação de cada período possa culminar com uma boa safra e colheita de frutos. Sendo assim, temos:
Como se percebe, tradicionalmente, o ciclo da videira resulta em colheitas no verão, como ocorre no sul do Brasil e em outras regiões do mundo. No entanto, nas regiões centrais do país, o verão é caracterizado por chuvas intensas, o que pode comprometer a qualidade e a resistência das uvas. Em contraponto, o inverno nesses locais apresenta dias quentes e ensolarados, noites frias e uma baixa incidência de chuvas — condições teoricamente ideais para o amadurecimento das uvas.
A técnica da dupla poda foi desenvolvida e aprimorada no início dos anos 2000 pelo professor Murillo de Albuquerque Regina, então pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (EPAMIG). Em seus estudos de doutorado na França, Murillo identificou semelhanças entre as condições de produção de vinhos finos na Europa e o inverno da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais, onde o café dominava a agricultura.
A dupla poda, portanto, permite que a maturação das uvas ocorra durante o outono-inverno, período caracterizado pela escassez de chuvas e grandes amplitudes térmicas, que favorecem o acúmulo de açúcares e compostos fenólicos, como taninos e antocianinas. Isso resulta em vinhos com maior equilíbrio, boa acidez e concentração de aromas, especialmente em regiões como Minas Gerais, São Paulo e o sul de Goiás. Vejamos como ela se dá:
Embora as regiões sudeste e centro-oeste tenham mostrado aptidão para o cultivo de cepas vitis vinifera sob o regime de dupla poda, há outros fatores igualmente importantes para o sucesso dessa técnica. Entre eles, destaca-se o uso correto de porta-enxertos, que desempenham um papel vital na adaptação das videiras às condições climáticas e ao controle de doenças.
O porta-enxerto é a parte da planta que fica em contato com o solo e na qual são enxertadas as variedades viníferas, como a Syrah, por exemplo. Ele confere resistência à planta contra pragas e doenças, como a filoxera, além de ajudar a videira a lidar com as condições adversas do solo. No caso da técnica de dupla poda, o porta-enxerto é ainda mais relevante por dois motivos principais:
Portanto, o sucesso da dupla poda não depende apenas do manejo técnico das podas, mas também da escolha acertada do porta-enxerto. Ele atua como um "alicerce biológico", garantindo que a videira possa prosperar em condições muitas vezes adversas, possibilitando a produção de uvas de qualidade.
Minas Gerais é pioneira na adoção da dupla poda, com destaque para municípios como João Pinheiro, Pirapora, Patrocínio e São Sebastião do Paraíso. A EPAMIG tem desempenhado papel fundamental na disseminação da técnica, conduzindo experimentos com variedades como Syrah, Sauvignon Blanc, Cabernet Sauvignon e Merlot.
Outras regiões do Brasil, como São Paulo (que vem abrindo seu leque vitivinícola para além da tradicional cidade de São Roque, indo para locais perto da serra da Mantiqueira e também no interior do estado), Chapada Diamantina, Brasília, Mato Grosso do Sul, Goiás e Espírito Santo, também adotaram a técnica, ampliando a produção de vinhos regionais.
As condições climáticas dessas regiões, com invernos secos e noites frias, minimizam o risco de doenças fúngicas e permitem um amadurecimento mais lento e controlado das uvas para a produção de vinhos.
Com o sucesso da dupla poda e a crescente produção de vinhos sob essa técnica, uma nova categoria de produtores foi criada: os "Vinhos de Inverno" e assim foi fundada em 2016, a Associação Nacional de Produtores de Vinhos de Inverno (Anprovin), atualmente com mais de 40 associados.