As lendas sobre o vinho Marzemino, uma das joias do Trento e peça por trás da ópera de Mozart
Arnaldo Grizzo Publicado em 05/05/2019, às 16h00 - Atualizado em 23/01/2023, às 12h00
Foi em uma de suas viagens ao norte da Itália que o jovem Wolfgang Amadeus Mozart, um prodígio musical de sua época, conheceu a região de Vallagarina, vale do rio Ádige, no Trento, e o vinho lá produzido com as uvas Marzemino. Seu pai, Leopold, ia de cidade em cidade, onde o filho pudesse ser recebido pelos nobres para apresentar seus dotes.
Acredita-se que, ao percorrer os vilarejos do norte da Itália, entre eles Rovereto e arredores, Mozart (então com apenas 13 anos) e sua família teriam ficado hospedados na vila de Nogaredo, no imponente Palazzo Lodron – construído por Paride Lodron, príncipe e arcebispo de Salzburg, na Áustria – quando visitaram a região em 1769.
Anos mais tarde, o compositor austríaco recordaria dessa viagem ao escrever a música para uma de suas óperas mais famosas e uma das mais encenadas da história: Don Giovanni. Em seu script, a tragicômica narrativa sobre a vida e a morte do incontornável sedutor Don Juan tomaria lugar em uma vila do norte da Itália e Mozart ainda pediria ao seu libretista, Lorenzo Da Ponte, para incluir uma citação ao vinho Marzemino.
Dessa forma, na peça, pouco antes de ser tragado ao inferno, Don Giovanni está se banqueteando com amigos e pede para seu criado, Leporello, servir o vinho. Ele serve e o patrão logo exclama: “Excelente Marzemino!”. Poucos goles depois, a fatídica estátua do comendador aparece para jantar, insta-o a se arrepender e abandonar a vida de devassidões, o que ele nega veementemente, e acaba, portanto, sendo levado ao inferno.
Para quem não se lembra da lenda de Don Juan: o galanteador, enquanto se esconde em um cemitério, jocosamente convida a estátua do comendador – assassinado por ele no começo da trama na tentativa de defender a honra da filha seduzida – para jantar. A estátua, surpreendentemente, aceita o convite e, no final, sela o destino do protagonista.
E vale lembrar ainda que essa não é a única passagem dessa ópera em que o vinho é celebrado.
Ainda no começo da peça, Don Giovanni pretende aumentar suas conquistas e propõe uma festa repleta de convidados e regada, obviamente, com muito vinho. Nesse momento, o protagonista canta uma de suas árias mais famosas, “Fin ch’han dal vino”, que mais tarde ficou conhecida como “ária de Champagne”. Nela, ele ordena ao criado que prepare tudo e chame as mais belas moças que encontrar na rua, pois, assim, ao final da noite, sua lista de conquistas vai aumentar “em uma dezena”.
Não contente, mais adiante na trama, diante das súplicas de uma ex-amante para que mude de vida, o sedutor segue firme em sua recusa e resume sua filosofia ao exclamar convicto: “Vivan le femmine! Viva il buon vino! Sostegno e gloria d’umanità! (Vivam as mulheres! Viva o bom vinho! Sustento e glória da humanidade!)”.
No entanto, a lenda em torno do vinho Marzemino vem de muito antes da ópera de Mozart. Há histórias mitológicas que ligam a origem das uvas na região de Vallagarina a dois heróis da Guerra de Troia, que, terminado o confronto, teriam saído da Grécia com as mudas e se instalado nessa parte norte da Itália.
Reza a lenda que Antenor e Diomedes, depois do fim da batalha troiana, refugiaram-se em território italiano, fundando diversas cidades. Eles teriam vindo da cidade de Merzifon, na Turquia, perto do Mar Negro, trazendo as mudas de Marzemino para a região do Vêneto e, posteriormente, Trento.
Na Ilíada de Homero, Antenor foi um dos conselheiros do rei Príamo, de Troia, e teria aconselhado o monarca a devolver Helena para os gregos, evitando a guerra. Mais tarde, na Divina Comédia, Dante Alighieri nomeou um dos círculos do inferno como Antenora, reservado para os traidores (acredita-se que ele tenha aberto os portões da cidade para a invasão grega). Diz a lenda que Antenor fundou a cidade de Pádua.
Já Diomedes foi rei de Argos, na Grécia, e um dos principais combatentes da Guerra de Troia. Segundo a mitologia, ele é o único mortal a quem foi dada força para lutar contra os deuses, tendo assim sido capaz de ferir Ares e Afrodite. Ao tentar voltar para sua cidade ao fim da batalha, foi impedido por sua esposa, que, em sua ausência, tinha assumido outro marido. Foi então que se refugiou na Itália, fundando mais de 10 cidades.
Apesar de toda essa lenda, historiadores acreditam ser mais provável que a Marzemino tenha chegado à região de Vallagarina por volta do século XVI, quando houve a dominação veneziana. Há duas possibilidades para o nome Marzemino, por sinal. Uma delas remetendo à localidade Marzameni, na ilha da Sicília, ou então à vila Marzemin, na Eslovênia.
Além de Mozart, o vinho Marzemino também caiu nas graças de alguns dos homens mais poderosos da Itália: os Doges de Veneza. Outra personalidade histórica a ter favorecido o produto trentino foi Napoleão Bonaparte, que conheceu a bebida durante a invasão francesa. Diz-se que o general, em meio à campanha, descansou alguns dias em Rovereto, no Palazzo da família Bossi Fedrigotti (que eram viticultores), onde provou o vinho.
Apesar de hoje a produção do Marzemino ser majoritariamente de tintos, há quem aponte que o vinho que fazia sucesso antigamente era, na verdade, doce (como todos os grandes vinhos da época e que agradavam mais ao paladar dos consumidores de então).
Uma das características da região de cultivo, além da amplitude de alturas e solos – pois pode estar cultivada tanto nas áreas mais planas e próximas ao rio Ádige quanto nas encostas do começo dos Alpes –, é a onipresença de imponentes castelos erigidos no alto das montanhas que circundam Vallagarina. Um dos mais impressionantes da região é o Castel Beseno, a maior estrutura fortificada do Trento, na vila de Besenello, poucos quilômetros ao norte da comuna de Isera, onde se originou a DOC Trentino Superiore Marzemino “d’Isera”, e também das comunas de Calliano e Volano, onde nasceu a DOC Trentino Superiore Marzemino “dei Ziresi”.
Hoje, o Marzemino caracteriza-se por um tinto de grande acidez, com toques herbáceos e de cerejas e outras frutas vermelhas, com cor profunda, feito para ser bebido jovem. Seu perfil muda levemente conforme a área onde é produzido, já que pode ir dos solos basálticos das encostas (principalmente perto de Isera), passando pelo calcário da região sul de Vallagarina, até o aluvional das margens do Ádige. O vinho doce (passito) ainda é produzido, em menor escala, e geralmente mesclado com outras uvas.
Apesar de não ter mais o prestígio que tinha no século XVIII, o Marzemino continua a ser um dos orgulhos do povo daquela região trentina. Em todo restaurante ou hotel, não importa qual prato você pedir, de polenta com ragu ou cogumelos até os deliciosos embutidos e salsichas da região, eles dirão que o melhor vinho para acompanhar é Marzemino, o vinho de Don Giovanni, como fazem questão de frisar.
* Texto originalmente publicado na ediçao 117 da Revista ADEGA e republicado após atualização