Mais que apenas uma mera coadjuvante no blend de Bordeaux, é uma das castas mais famosas do mundo
Luiz Gastão Bolonhez Publicado em 13/07/2017, às 17h23 - Atualizado em 03/04/2019, às 12h44
Para os connoisseurs, quando se trata de Merlot, um nome vem à cabeça: Petrus. Um dos mais célebres vinhos do mundo é produzido somente com essa casta controversa - pois, dependendo de como é cultivada, pode produzir desde vinhos simples e ralos, até verdadeiros monumentos.
De origem francesa e plantada nos quatro cantos do mundo, é uma casta muito utilizada para elaborar vinhos de corte, contudo, produz também ótimos varietais. Nos vinhos de corte é presença garantida em quase todos os grandes vinhos de Bordeaux, mais notadamente nos do Médoc e Graves. Para se ter uma ideia de sua importância, todos os Premier Cru Classé da classificação de 1885 têm a Merlot em seu blend - apesar de nessas duas regiões ela ser sempre uma coadjuvante ao lado da Cabernet Franc e Petit Verdot (às vezes, Malbec); e a Cabernet Sauvignon é que reina absoluta, sendo a casta principal.
No Médoc, onde está incrustada a Appellation d'Origine Contrôlée (AOC) de Pauillac, dita "Meca do Vinho", os clássicos Premier Cru Classé, como o Château Latour, Mouton Rothschild e Lafite Rothschild, possuem a Merlot no blend. Médoc e Graves são regiões vitivinícolas da margem esquerda do rio Gironde. No entanto, poucos quilômetros em direção ao continente, o Gironde se divide em dois, o Garonne e o Dordogne. E, logo após a cidade de Libourne, temos, na margem direita, duas AOCs em que a Merlot é mais presente.
Em Saint-Émilion, ela faz parceria com a Cabernet Franc, e, em Pomerol, é a estrela, sendo utilizada na maioria das vezes como casta predominante das assemblagens. Além dessas duas AOCs e seus satélites, a Merlot predomina em Bordeaux nas denominações de Fronsac, Bourg e Blaye.
De acordo com o censo de 1988 na região de Bordeaux, a Merlot tinha metade da plantação dentre as castas tintas. Na ocasião, a casta mais plantada na região, com 28%, era a Cabernet Sauvignon. Especificamente no Médoc, de cada duas vinhas plantadas, uma era de Cabernet Sauvignon. Enquanto que em Saint-Émilion e no Pomerol havia duas videiras de Merlot em cada três plantadas. Essa tendência sofreu algumas mudanças nos últimos anos com um maior foco no aumento da plantação de Cabernet Sauvignon, principalmente no Médoc, mas sem muitas alterações de maneira geral, e a Merlot ainda é a casta tinta mais plantada em Bordeaux.
Ainda não existem comprovações que confirmam em 100% a origem da casta, mas é claro o reconhecimento de que a Merlot tem base em Bordeaux. Uma das primeiras menções à cepa data de 1784, quando um oficial da região chamado Faurveau destacou a Merlot como uma das melhores castas da zona de Libourne, na margem direita do Dordogne. Anos mais tarde, em 1868, o naturalista A. Petit-Lafitte classificou-a como a principal casta para ser mesclada com a Cabernet Sauvignon. A plantação mais consistente de Merlot na margem esquerda se iniciou em meados do século XIX. Por volta desse mesmo período, a cepa também começou a ser plantada na região do Vêneto, na Itália, de onde o primeiro registro data de 1855. No inicio do século XX, a Merlot chegou ao Cantão de Ticino, na Suíça.
Seu nome deriva, segundo alguns estudiosos, de um pássaro negro chamado Merle (Black Bird - Turdus merula), cujo diminutivo é Merlot, talvez pela sua cor muito escura. Ainda existem registros de que esse pássaro aprecia frutas doces de maturação avançada, como um bago de Merlot maduro.
A Merlot é uma variedade que possui uma casca mais fica se comparada com a Cabernet Sauvignon, é menos resistente a solos frios e normalmente amadurece algumas semanas (normalmente duas) antes que da Cabernet. Por essa razão, ela se adequa de maneira destacada em solos com maior quantidade de argila, como os de Libourne, onde a argila é predominante. De modo geral, a região de Libourne, na margem direita, também é mais quente que o Médoc do lado esquerdo. Por fim, é uma casta mais sensível a doenças, como Coulure, e podridão, e é mais sensível a geadas mais fortes.
Normalmente, dependendo de como é cultivada, a Merlot produz vinhos com taninos de média intensidade. Sempre concede carga de frutas vermelhas e negras. Quando é plantada em climas mais quentes, aporta aos seus vinhos a fruta negra mais intensa e toques de chocolate. Se não manuseada adequadamente, e principalmente quando é colhida antes de sua plena maturação, dá tons muito herbáceos e verdes.
As primeiras menções à cepa datam de 1784, considerada a melhor da zona de Libourne
De Pomerol temos os excepcionais tintos: Château Le Bon Pasteur, Certain de May, Clinet, L'Egilse Clinet, L'Evangile, La Fleur-Petrus, Lafleur, Le Gay, Le Pin, La Tour-à-Pomerol, Trotanoy e Vieux Château Certain, todos com a Merlot predominante, com a porcentagem variando entre 60% e 90%. O corte mais comum nesses vinhos é 80% de Merlot com 20% de Cabernet Franc. Alguns levam um toque de Cabernet Sauvignon, nunca ultrapassando mais de 10%. Nenhum desses vinhos é Merlot puro. Os Merlot puros mais reluzentes dessa AOC são Petrus e o sensacional La Fleur de Gay. Anos atrás, o Petrus tinha em seu corte um pouco de Cabernet Franc, mas há alguns anos ele é produzido com 100% de Merlot.
De Saint-Émilion, há grandes vinhos com a Merlot como base, mas em quantidades menores se comparados com os tintos de Pomerol na maioria dos casos. Duas das mais espetaculares estrelas da região - ao lado do mítico Cheval Blanc (Cabernet Franc predominante) -, o Château Ausone e o Château Angelus, têm em seu blend cerca de 50% de Merlot. Os clássicos e sensacionais Château Beau-Séjour Bécot e Béauséjour Duffau Lagarosse são Merlot predominante (aproximadamente 70%). Canon, Canon-La-Gafelière, Clos Fourtet, Clos L'Oratoire, Couvent des Jacobins, La Dominique, La Mondotte, Pavie, Pavie-Decesse, Pavie-Macquin, Quinault-L'Enclos, Tertre-Roteboeuf, Troplong Mondot e Valandraud são todos tintos de classe mundial que têm em sua alma a Merlot, sempre como casta predominante. De Saint-Émilion, contudo, o mais destacado Merlot puro é renomado e raro La Gomerie.
Petrus e Le Gay, duas grandes estrelas de Pomerol
Fora de seu berço, Bordeaux, a Merlot - terceira casta vinífera mais plantada no país, somente atrás da Carignan e da Grenache - brilha no Languedoc-Roussillon e Bergerac. Para se ter uma ideia, no mesmo censo de 1988 já citado, tínhamos cerca de 60 mil hectares de Merlot plantados contra apenas 36.500 de Cabernet Sauvignon. Ao lado da Syrah, a Merlot tem sido a casta mais plantada no Midi. São cerca de 5 mil hectares plantados no departamento de Aude e L'Herault, onde a cepa é parte integrante da maioria dos blends dos grandes vinhos.
No Friuli estão alguns dos mais espetaculares produtores de Merlot, como Miani, Villa Russiz, Volpe Pasini, Livio Feluga e Vie de Romans
Quando saímos da França, é na vizinha Itália onde podemos encontrar grandes vinhos à base da Merlot. Mais do que isso, podemos afirmar que hoje os melhores Merlot "in purezza" do mundo são italianos - se não compararmos com o Petrus.
A Merlot, na Itália, é muito difundida no Vêneto, mas, na maioria das vezes, nessa região, produz vinhos de grande volume, sem muita expressão. Na região vizinha, no Friuli Venezia Giulia, a coisa é bem diferente. Lá há tintos com base de Merlot (muitos puros) absolutamente sensacionais. Os produtores Miani, Villa Russiz, Volpe Pasini, Livio Feluga e Vie de Romans, por exemplo, produzem vinhos de classe mundial com a Merlot "friulana".
Partindo do norte para o sul, mais especificamente na Toscana, encontramos os mais badalados Merlot do mundo sem dúvida. O mais interessante é que temos Merlot de exceção tanto no centro da Toscana quanto na costa. Não há como negar que é na costa, mais propriamente em Maremma e Bolgheri, que temos a mais importante plantação de castas bordalesas fora da França. Na costa da Toscana brilham sobremaneira a Cabernet Sauvignon, a Merlot, a Cabernet Franc e a Petit Verdot.
Do centro da Toscana, um dos mais renomados produtores de vinhos da região do Chianti de alta gama, o Castello Di Ama, comandado pelo simpático Marco Pallanti, tem um vinhedo único denominado L'Apparita. Desse vinhedo produz-se um dos mais renomados Merlot do mundo, o Castello di Ama Vigna L'Apparita, um primor de tinto.
Ainda da costa da Toscana há os mais caros e disputados Merlot puros do planeta (depois do Petrus e La Gomerie). Seus preços são altos, mas, se comparados com os vinhos de Pomerol, ainda estamos falando de vinhos de muito melhor "Value for Money". Nessa região, há obras de arte como o Le Macchiolle Messorio, o Tenuta dell'Ornellaia Masseto e o Tua Rita Redigaffi.
Ainda na Itália temos grandes Merlot do Lazio e da Campania. No Lazio, o competente enólogo Ricardo Cottarella produz um grande vinho chamado Montiano e, na Campania, mais ao sul da Itália, a casa Feudi de San Gregório tem o bombástico Pàtrimo.
Na terra da Tempranillo e da Garnacha, Merlot bilha em Navarra, Somontano e Penedès
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Na Espanha, onde Garnacha e Tempranillo dominam, em três regiões é possível encontrar verdadeiros achados quando falamos de proeminentes Merlot. Navarra e Somontano são as duas primeiras zonas de destaque. Somontano, ao pé dos Pirineus, tem uma impressionante plantação da casta e produz vinhos de diversos níveis, mais não tem muitos Merlot predominantes ou puros. Do Somontano os mais destacados são o Merlot Merlot, da Enate, e o Absum Collection, da Bodega Irius.
A terceira região que tem muitos hectares plantados de Merlot é o Penedès, que produz bons exemplares puros, com destaque para o Atrium Merlot da família Torres, de bom custo-benefício. Mas o grande Merlot do Penedès é o extraordinário Caus Lubis, do produtor Can Rafols dels Caus. Um tinto sensacional que pode evoluir por muitos anos na garrafa.
Podemos ainda citar Navarra, onde há poucos hectares plantados e temos dois produtores que dedicam carinho especial à Merlot: a Casa Julian Chivite, a mais badalada da região, que produz um delicioso Merlot, com cultivo biológico; e a vizinha Viña Magaña, que faz um vinho superlativo.
A Merlot tem importante presença nos Estados Unidos. É muito difundida na Califórnia, com destaque para o Napa Valley, onde há excepcionais exemplares. Mais ao norte do país, no estado de Washington, especificamente em Columbia Valley, encontram-se preciosidades. Mas a casta é plantada em inúmeros de outros estados norte-americanos.
Se você tiver viagem marcada para lá e quiser trazer umas garrafas de excepcionais Merlot, tente Duckhorn, Pahlmeyer, Paloma, Matanzas Creek e Beringer, do Napa Valley; e Leonetti e Quilceda Creek, de Washington. Dos grandes Merlot da Califórnia provados, os mais especiais são o Duckhorn Three Palms, o Beringer Howell Mountain e o Matanzas Creek Journey, sendo esses dois últimos produzidos em vinícolas sensacionais. A Beringer está localizada nas cercanias de Santa Helena, no Napa, já a segunda, incrustada no coração de Sonoma, em meio a uma espécie de jardim botânico, repleto de flores. É endereço certo para os amantes do vinho e da beleza natural.
Na América do Sul, a Merlot é plantada em diversos países. Na Argentina, ela tem papel importante, mas como por lá só dá Malbec, a casta caiu um pouco no esquecimento. O interessante é que, além de termos a Merlot presente em Mendoza, a cepa vem ganhando espaço no sul, mais especificamente na Patagônia, de onde estão surgindo destacados tintos.
No Chile, ela tem presença marcante, mas com a "confusão" local entre Merlot e Carménère durante muitos anos, a
Merlot perdeu um pouco de seu brilho. Mas temos grandes exemplares já que ela marca presença em vários vales do país, desde o Limarí até o Maule. Grandes nomes do Chile, como a Casa Lapostolle, por exemplo, produzem excelentes Merlot, com destaque para o Cuvée Alexandre, um dos melhores do país. Além desse tinto, temos belos exemplares de produtores como Viña Santa Rita, Gillmore, Calina, Veramonte e Viña Casablanca.
Michel Rolland, o mais famoso, mais bem remunerado e mais controverso enólogo do mundo, é um craque no manuseio da Merlot. Sua família é oriunda de Libourne, onde possuem o excelente Château Le Bon Pasteur, no coração do Pomerol. Rolland, além de ter muito trabalho na região do Libourne, dá consultoria para outros tantos Châteaux e produtores mundo afora (incluindo Brasil), é o mais requisitado flying winemaker do planeta.
Fã confesso da Merlot madura, ele tem como filosofia controlar a redução dos rendimentos. Sob sua batuta, produz-se sempre vinhos exuberantes, ricos e repletos de sabor. Seus grandes tintos à base de Merlot têm, na maioria dos casos, grande carga de carvalho - que ele utiliza para estagiar seus vinhos. Essa característica de madeira abundante aliada à fruta muito madura são a alma dos vinhos elaborados por Rolland. Esse estilo vai de encontro ao gosto do poderoso e, por vezes, controverso crítico de vinhos Robert Parker, que concede pontuações altíssimas aos vinhos elaborados por esse enólogo.
Um dos mais interessantes acontecimentos com esse prestigiado enólogo foi no filme "Mondovino", de Jonathan Nossiter, que criticou e indicou seu viés a favor da micro-oxigenação dos vinhos. Foi causada muita polêmica com esse duro ataque a Rolland por parte do cineasta, mas nada que abalasse sua reputação.
Os vinhos que Rolland produz não são todos superlativos, mas, para esta matéria, provamos talvez o que de melhor ele faz: os vinhos da Madame Catherine Péré-Vergé, todos de muito bons a excelentes, com destaque para o exuberante e ao mesmo tempo elegante Château Le Gay 2004, um excepcional Merlot predominante (80%). Provamos ainda mais dois Merlot produzidos sob a batuta de Rolland: o Merlot Cuvée Alexandre 2007, da Casa Lapostolle, do Chile, e o Merlot Terroir 2009, da Miolo, do Brasil. Em ambos os casos a competência de Rolland no manuseio da Merlot fica clara e evidente. Dois tintos muito bem elaborados já deixando claro seu legado pelo suporte ao desenvolvimento da vitivinicultura na América do Sul.
A Merlot se destaca ainda em três importantes países: Austrália, Nova Zelândia e África do Sul. Na Austrália, a casta brilha em varias regiões. Podemos encontrá-la com mais frequência em cortes do que em varietais, mas, mesmo assim, podemos desfrutar de bons Merlot puros. Os produtores de maior destaque são Capel Vale, Clarendon Hills, Pepper Tree, Petaluma, Tatachilla e Yarra Yering.
Na Nova Zelândia, a cepa tem presença nas ilhas norte e sul. Os produtores de destaque no cultivo e produção de bons Merlot são Brookfields, Kim Crawford, Goldwater e Sileni.
Na África do Sul, a casta tem resultados surpreendentes em Stellenbosch e Paarl. Boekenhoutskloof, Morgenhof, Saxenburg, Spice Route, Thelema, Vergelegen e Veenwouden são os produtores que mais brilham com seus Merlot. Esse último produziu excepcionais Merlot puros, que podem estar entre os melhores do mundo. Infelizmente, seu proprietário faleceu anos atrás e nunca mais tivemos o brilho de antes.
No livro que deu origem ao filme "Sideways", o protagonista, um escritor frustrado chamado Miles (interpretado por Paul Giamatti) era fã confesso da Pinot Noir, desdenhando e até denegrindo a imagem da Merlot, principalmente nas refeições. O interessante é que apesar disso, no final da história ele se redime e degusta um Petrus - vinho bem feito a partir de Merlot. No filme, contudo, como os proprietários do Château não concordaram em mostrar o rótulo, o vinho foi substituído por um Cheval Blanc 1961.