A importância dos négociants no mercado de vinhos bordaleses explicado por um de seus principais expoentes
Christopher Cannan Publicado em 03/04/2019, às 16h00
Os players locais no mercado "en primeur" para os grandes vinhos incluem os próprios Châteaux, um corretor de vinhos de Bordeaux e um "négociant" ou um exportador
A região de Bordeaux é abençoada com sua capacidade de produzir alguns dos melhores e mais procurados vinhos tintos do planeta. Desde os séculos XVII e XVIII, quando os grandes vinhedos do Médoc foram drenados e plantados, os comerciantes bordaleses têm competido para adquirir parte de suas produções - e ocasionalmente a produção toda - dos vinhos dos mais célebres Châteaux.
O processo de classificação dos Châteaux no Médoc começou com os corretores locais já em meados do século XVII, mas se consagrou, com uma exceção, em 1855, na Exposição Universal de Paris, a pedido do imperador Napoleão III. Nenhuma mudança foi feita desde aquela data além da classificação do Château Mouton Rothschild como um Premier Cru em 1973. Muitos discutem com justiça que é um absurdo que nenhum outro ajuste tenha sido feito desde 1855. Muitas das propriedades mudaram e muitas se ampliaram para incluir vinhedos que não estavam classificados em meados dos anos 1800.
Gradualmente essa situação está mudando a percepção do sistema de classificação, com os compradores confiando mais na reputação das propriedades individualmente e em seus esforços para melhorar a qualidade. Hoje os padrões são extremamente altos e continuam avançando enquanto a tecnologia e o poder da imprensa especializada força os proprietários a investir de todas as formas para produzir no mais alto nível.
Desde a década de 1960, há um interesse crescente do mercado e de colecionadores em adquirir os vinhos mais prestigiados em um mercado de futuros ou, como os franceses chamam, "en primeur", a fim de garantir o fornecimento com o preço de saída, o que presumivelmente deve ser mais baixo do que o preço do vinho engarrafado - quando as condições de mercado permitem.
Os players locais no mercado "en primeur" para esses grandes vinhos incluem os próprios Châteaux, um corretor de vinhos de Bordeaux e um "négociant" ou um exportador. A cada ano, na primavera seguinte à colheita, há muita comoção em Bordeaux. Degustações da nova safra são organizadas para o comércio local, importadores de todo o mundo e imprensa. Depois dessas provas é que a chamada campanha "primeur" começa. Gradualmente, durante o período de dois ou três meses, os Châteaux vão oferecer seus vinhos para os négociants através dos corretores (brokers). Os preços serão fixados pelos Châteaux que levarão em conta diversos fatores, incluindo a qualidade da safra, o estado econômico atual do mercado, a economia mundial em geral e os preços que estão sendo praticados pelos Châteaux vizinhos de igual prestígio.
O Château vai instruir os brokers sobre a quantidade que será oferecida para cada négociant. Essa quantidade depende do histórico de compras em anos bons e ruins. Se um négociant não compra sua alocação de um ano, ele vai perdê-la para os anos futuros. Além disso, ao négociant é apontado o preço que ele deveria colocar nos vinhos para vender a seus consumidores ao redor do mundo. Se o preço de revenda não é respeitado, o négociant novamente arriscará perder alocações futuras. Por sua vez, o corretor ganha 2% de comissão por sua intervenção, que é paga pelo négociant. Há muitos corretores de vinho em Bordeaux - especializados em vários aspectos do negócio -, mas apenas um punhado de corretores mais influentes são especialistas na atividade "en primeur".
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É muito mais fácil para um négociant perder uma alocação do que ganhar uma. Para obter uma, deve-se sempre recorrer à ajuda de um dos mais influentes corretores. Ele então precisa visitar o Château regularmente com o corretor, sozinho ou com clientes. Se o proprietário do Château considerar o négociant útil para a sua rede de distribuição, aumentando o prestígio, trabalhando mercados-chave e novos mercados onde o Château pode ter pouca presença, então ele vai considerar uma alocação para esse négociant. O corretor vai lembrar o Château desse compromisso na hora em que as alocações são feitas.
Uma vez que o négociant adquire sua alocação, ele imediatamente vai enviar ofertas para seus importadores ao redor do globo. Eles todos vão receber suas alocações ao mesmo tempo, no mesmo dia, por isso essa atividade é fervilhante e a competição intensa. Há aproximadamente 300 négociants em Bordeaux, muitos oferecendo vinhos com o mesmo preço. Um importador médio pode receber mais de 20 ofertas de 20 diferentes négociants. Assim, o que faz com que o importador seja leal a um négociant é a sua habilidade de oferecer um alocação todos os anos. Outros fatores incluem a força do relacionamento e também se o importador faz outros negócios com o négociant.
Nesse momento é importante dizer que os vinhos Grand Cru Classé ainda estão em barricas e não serão engarrafados por mais de um ano após as ofertas "primeur". O lançamento em garrafa será não antes de dois anos depois da safra. Até a década de 1970, os vinhos eram ofertados com taxas separadas para o engarrafamento, mas hoje tudo está incluso, até o transporte para a adega do négociant. Aliás, o transporte é pago pelo importador.
"En primeur" não é a única atividade dos négociants
Você pode se perguntar se essa é a única atividade de um négociant de Bordeaux. Longe disso, um négociant desempenha um papel fundamental na comercialização de todos os vinhos bordaleses. Obviamente que a atividade mais glamorosa é a campanha "en primeur", mas durante o ano está em curso o negócio de vinhos Grand Cru Classé de safras antigas. Essa atividade é realizada pela chamada "place de Bordeaux"; em suma, se um exportador tem um cliente para um Grand Cru específico, ele vai novamente ligar para um corretor especializado que lhe dirá onde estão guardados os estoques do vinho em questão e a que preço. Às vezes, é o Château que reteve o estoque depois da campanha "primeur", ou às vezes um négociant amigo possui as garrafas. A escolha vai depender do preço principalmente, pois o cliente deve ter pedido para vários négociants cotarem o mesmo vinho. O corretor vai ganhar 2% da transação, paga pelo négociant que está comprando se o vinho vier do Château, ou paga pelo négociant que está vendendo se o vinho é comprando na "place". Para resumir, isso é bastante semelhante ao princípio de uma bolsa de valores.
Existem mais de 5 mil Châteaux na região, inúmeras denominações e vinhos de vários estilos
Até a década de 1960, os comerciantes bordaleses compravam seus vinhos a granel e engarrafavam em suas adegas ou mesmo enviavam ao exterior em barris. Esses exportadores são chamados de "négociants éleveurs". Com a generalização do engarrafamento pelos Châteaux, essa atividade diminuiu e agora está limitada a poucos comerciantes que engarrafam vinhos baratos genéricos. Durante as últimas décadas, o comércio dos vinhos dos Châteaux de Bordeaux em garrafa se tornou o objetivo principal dos negociantes. Há mais de 5 mil Châteaux na região e inúmeras denominações com vinhos de vários estilos, tintos ou brancos, que vão desde os deliciosos Merlot de Saint-Émilion, aos crocantes brancos secos de Entre-Deux-Mers e Graves, aos luxuriantes vinhos doces de Sauternes e Barsac. Muitas vezes, o négociant terá um relacionamento direto com diversos desses Châteaux e irá construir um mercado de longo prazo para seus vinhos na França e vários outros mercados exportadores. Às vezes, são requeridas grandes parcelas para os negócios com supermercados e aqui novamente o corretor é chamado para encontrar vinhos adequados e enviar amostras.
Apesar dos problemas econômicos e das flutuações, o mercado de vinhos de Bordeaux permanece muito dinâmico. Com a reputação da região como sendo a fonte de alguns dos melhores vinhos do mundo, nenhum enófilo pode ignorá-la com sua vasta gama de estilos produzidos. Com a competição crescente vindo de todas as partes do planeta, tanto do Novo quando do Velho Mundo, Bordeaux tem feito grandes progressos em qualidade em todos os níveis. Rendimentos foram reduzidos e, com ajuda do aquecimento global, as uvas estão sendo colhidas quando estão completamente maduras. Mas o nome Bordeaux em um rótulo já não é suficiente para o vinho ser vendido. A qualidade precisa estar na garrafa e é papel do négociant de Bordeaux transmitir essa mensagem para os consumidores e enófilos de todo o mundo.
Em 2012, um dos cinco Premier Grand Cru, o Château Latour, decidiu que não mais iria participar do sistema en primeur. O anúncio causou espanto e até o temor de que esse fosse um primeiro passo para o fim desse ritual estranhamente anacrônico que ainda rege as vendas de vinho em Bordeaux em plena era da internet, das mídias de massa etc. Segundo Frederic Engerer, presidente do Latour, essa decisão se deu porque os consumidores querem vinhos prontos para beber e não apenas os mais jovens. "O sistema en primeur funcionava quando as pessoas viajavam menos e estocavam seus vinhos por longos períodos. Não mais vivemos nessa era - muitas pessoas não têm a possibilidade de guardar vinhos por 20 anos em perfeitas condições", atesta o executivo, que garante, porém, que seus vinhos continuarão a ser distribuídos mundialmente pelos négociants: "A diferença é que eles não vão vender as últimas safras, mas as que acreditamos estão prontas para beber".
Apesar do espanto diante da decisão de Latour, os négociants não acreditam que isso se tornará uma regra. "Creio que esse é um caso isolado, pois eles se prepararam para isso durante anos. Durante os últimos 15 anos, eles fizeram muito pouco en primeur, então construíram um bom estoque para minimizar as perdas econômicas. Provavelmente, Latour vai assumir a distribuição de seus vinhos para lucrar mais. Mas não vejo outros Châteaux fazendo isso", aponta Christopher Cannan, da Europvin. Já Yann Schyller, da Schroder & Schyler, acredita que a postura de Latour talvez não seja frutífera. "Latour para mim não existe. É um vinho que você não consegue provar, que não consegue comprar. Quando você é um Premier Cru, tem que ter o mercado de Bordeaux como seu embaixador. As pessoas não são bobas. O mercado de Bordeaux não é uma piada. Em uma safra como 2011, graças a Deus que os Châteaux tinham as companhias de négociants, pois se estivessem por si mesmos, não teriam vendido tantas garrafas. No futuro, vamos ver", afirma o négociant. "Vou dormir tranquilo à noite. Para mim, a saída de Latour do sistema não significa nada. Mas se todos os Premier quiserem fazer isso, ok, talvez seja um problema", admite, mas, assim como Cannan, ele não vê um movimento nesse sentido por parte dos outros.