Grands Châteaux

Château Kirwan pertence aos 'négociants' mais antigos de Bordeaux, que viraram produtores

por Arnaldo Grizzo

Em 1739 o alemão Jean-Henri Schÿler iniciou seu negócios como comerciante de produtos coloniais vindos de Santo Domingo, como açúcar, feijão e azeite de oliva. Era o início da história longa e tortuosa do Château Kirwan, hoje uma vinícola de muitos atrativos

Em Bordeaux, quase tão tradicional quanto o próprio vinho são os négociants. Para se ter uma ideia, até 1924, os comerciantes compravam a maior parte do vinho da região e cuidavam de tudo: armazenamento, assemblagem, envelhecimento e vendas. Depois disso, os Châteaux começaram a participar de todas as etapas de produção de seus vinhos, mas ainda deixaram a distribuição na mão dos négociants, pois já haviam estabelecido uma relação de confiança e viam vantagem nessa troca.

Não raro, contudo, é um négociant decidir mudar de ramo, e passar das vendas para a agricultura, assim como alguns produtores também, às vezes, “mudam de lado”. Mas, por que não ficar nos dois lados? Uma das casas mais tradicionais de Bordeaux, a Schröder & Schÿler fez isso, e seu caminho até chegar ao vinho foi longo e até um pouco tortuoso.

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Em meados do século XVIII, 1739, o alemão Jean-Henri Schÿler iniciou seu negócios como comerciante de produtos coloniais vindos de Santo Domingo, como açúcar, feijão, azeite de oliva e especiarias. De navio, as commodities iam até o porto de Bordeaux e lá a embarcação era abastecida com vinhos bordaleses, que mais tarde eram distribuídos por todo o norte europeu, desde a Alemanha e Holanda até a Rússia. “Os navios voltavam desses países, especialmente Alemanha e Polônia, com carvalho, que era usado nas barricas”, conta Yann Schÿler, representante da oitava geração da família de négociants mais antiga de Bordeaux.

Somente em 1967 a família passou a engarrafar seus próprios vinhos, e no início dos anos 90 já havia vinhas velhas capazes de entregar qualidade satisfatória

Por muitos anos, essa era a rota dos Schÿler: Índias Ocidentais, porto de Bordeaux e norte. “Durante o século XVII, fizemos isso por mais ou menos 50 anos. Mas então veio a Revolução Francesa, houve uma guerra entre a França e a Inglaterra, a Guerra dos Sete Anos, o que fez meus ancestrais se tornarem fornecedores de navios, pois havia piratas e o transporte era perigoso. Passaram a ter seus próprios navios. Com a revolução, eles gradualmente começaram a construir armazéns em Bordeaux, pagar pelos bens, estocá-los e revendê-los, assumindo os riscos. Pouco depois disso, a firma virou as costas para as commodities e passou a se focar no vinho”, diz Schÿler.

Retour des Indes

Como négociants de vinhos, Yann Schÿler conta, orgulhoso, que sua família foi pioneira nos famosos “Retour des Indes”. “Naquela época, não havia garrafas de vinho como hoje e, por isso, nós enviávamos para a Índia em barris. Certa vez, por algum motivo, um dos navios não conseguiu chegar ao seu destino e voltou para a França. Chegando lá, fomos provar o vinho e percebemos que ele estava fantástico. Decidimos, então, continuar mandando os barris de propósito para a Índia e depois trazer de volta, chamando isso de Retour des Indes. Rotulamos o Château Pontet-Canet, por Schröder & Schÿler, Retour des Indes. O vinho cruzava o Equador quatro vezes. Criamos esse conceito”.

A Família Schÿler foi pioneira no conceito dos vinhos 'Retour des Indes', já que foi em um navio deles que os primeiros barris retornados da Índia chegaram. 

No início do século XX, os Schÿler começaram a ter interesse por vinhos finos e decidiram se especializar nesse ramo. Com a lista de 1855 de Bordeaux em mãos, a Schröder & Schÿler, sob a direção do bisavô de Yann, passou a comprar safras inteiras de alguns Châteaux, tendo exclusividade na sua distribuição. Um deles era o Château Kirwan.

Ele comprou toda a safra de 1903 e incorporou o Château, com exclusividade, ao portfólio da empresa. “Mas foi somente em 1925, depois da I Guerra Mundial, que ele comprou o Kirwan. Quando compramos a propriedade, ela estava quase quebrada. As vinhas estavam em péssimas condições, não havia investimento e o sistema de Denominação (INAO) ainda não existia (só foi criado em 1936). O vinho era bom, mas não havia nenhum controle sobre a produção e a guerra deixou todos sem dinheiro. O Kirwan estava basicamente sobrevivendo.”

Sempre négociants

Assim, em 1925, o Kirwan voltava às mãos de um négociant. Já que seu primeiro proprietário foi Sir John Collingwood, um dos primeiros négociants da história, que adquiriu a propriedade que antes era conhecida como Domaine Lassalle. A filha de Collingwood casou com um comerciante irlandês chamado Mark Kirwan, que daria nome ao Château. Em 1855, ele é classificado como o primeiro da lista dos Troisième Crus. Um ano depois, é adquirido pela família Godard. Camille Godard, que se tornaria prefeito da cidade de Bordeaux, transformou o Château em um prédio municipal durante seu mandato.

Na época, ele deixou toda a parte da distribuição vinho nas mãos da empresa Schröder & Schÿler, que mais tarde acabaria comprando a propriedade. A família Schÿler, contudo, só passou a dar mais atenção ao Château na década de 1960. “Começamos a investir pesado nas décadas de 60 e 70, quando meu pai renovou as vinhas”. Somente em 1967 eles passaram a engarrafar seus próprios vinhos. Mas demorou mais quase 30 anos para uma reformulação mais séria. “No início dos anos 90, já tínhamos vinhas velhas capazes de produzir bons vinhos”. Além disso, contrataram Michel Rolland como consultor (parceria que durou até 2006).

Em 1993, criaram o segundo vinho da casa, Les Charmes de Kirwan. Uma nova etapa estava começando. “O que fazemos agora é sofisticar nossa técnica, trabalhar e entender o solo, mapeando-o, junto com o subsolo, para saber onde está o calcário, a argila, as pedras e etc. Queremos tentar descobrir que área é melhor para a Cabernet Sauvignon, para a Merlot... Estamos trabalhando nos detalhes”, explica Yann Schÿler.

“O solo diz tudo. Não pergunte a porcentagem das uvas, mas de calcário, de argila. Aí você pode entender o vinho", afirma Yann Schÿler, à frente do negócio

Terroir

Atualmente, Kirwan tem 35 hectares no plateau de Cantenac, em Margaux. Cerca de 40% das vinhas são de Cabernet Sauvignon, 30% de Merlot, 20% de Cabernet Franc e 10% de Petit Verdot. O blend tem uma particularidade, pois têm uma porcentagem substancial de Cabernet Franc e Petit Verdot (são produzidas cerca de 200 mil garrafas por safra do principal vinho do Château). "É preciso entender que é uma questão de solo. O solo diz tudo. Não pergunte a porcentagem das uvas, mas de calcário, de argila. Aí você pode entender o vinho”, garante o herdeiro, que completa: “Como temos esse mapeamento do solo, além de separar o terroir em pequenas parcelas e vinificá-las separadamente também, percebemos que, por exemplo, em um mesmo terreno, temos dois solos diferentes e as colheitas de cada um é feita em uma data para ter uma melhor maturação. Isso é um trabalho minucioso do nosso enólogo Philippe Default”.

Firmas separadas

Com a certeza de excelência na hora da produção do vinho, e gerenciando, além do Château, a Schröder & Schÿler, nada mais natural do que a empresa ter o monopólio dos vinhos Kirwan, certo? Errado. Uma coisa é a agricultura, a outra é a venda. Apesar de o Kirwan ser o maior fornecedor da firma bordalesa, ele também vende para outros négociants.

“São poucos, mas vendemos. Nós dividimos os negócios. Somos muito humildes em relação a isso. Sabemos que não conseguimos chegar a todos os lugares, e nossos competidores podem ter outros distribuidores e estar em lugares que não estamos. Da mesma forma, compramos tudo nas mesmas condições de outros Châteaux, não temos privilégios, pois isso traria danos para o Kirwan. São duas atividades separadas e cada uma delas contribui para o resultado global da empresa”.

Yann Schÿler representa a oitava geração da família de négociants mais antiga de Bordeaux, atuando desde antes da Revolução Francesa

VINHOS AVALIADOS

Château Kirwan 2007 - AD 91 pontos
Les Charmes de Kirwan 2007 - AD 90 pontos

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