Há 100 anos uma garrafa de Vinho do Porto ajudou dois aviadores na primeira travessia aérea do Atlântico Sul
Por Edmundo Ubiratan Publicado em 13/12/2022, às 11h00
Há 100 anos dois aviadores portugueses fizeram uma das mais épicas aventuras da história da aviação, cruzando sozinhos o Atlântico Sul, em uma viagem cheia de pioneirismo, aventura e uma garrafa de vinho.
Embora muitos entusiastas da aviação conheçam a histórica travessia sem escalas do Atlântico Norte, pelo aviador Charles Lindbergh, em 1927, a primeira viagem aérea pelo Atlântico ocorreu cinco anos antes, ligando Portugal ao Brasil, durante as comemorações do Primeiro Centenário da Independência.
A aventura começa anos antes, de forma completamente espontânea o destino colocou Gago Coutinho e Sacadur Cabral, em uma missão militar de mapeamento das então colônias portuguesas na África.
Foi um renomado oficial Marinha Portuguesa, atuando como geógrafo e cartógrafo, além de ser navegador e historiador. Trabalhou e cartografou os territórios do Timor; o Niassa, região no extremo noroeste do atual Moçambique; Congo; São Tomé e Príncipe; e a região de Barotselândia localizada entre os atuais Namíbia, Botsuana, Zimbábue, Zâmbia e Angola.
Era um aviador militar, sendo um dos primeiros instrutores de voo da Escola de Aviação Militar, diretor dos serviços de Aeronáutica Naval, foi comandante da Esquadrilha da Base Naval de Lisboa.
Durante o trabalho na África os dois militares se conheceram e Sacadura Cabral explicou as necessidades da navegação aérea, uma ciência com menos de vinte anos. Gago Coutinho começou a se dedicar na solução do problema da navegação aérea, desenvolvendo o sextante de horizonte artificial, uma versão adaptada do modelo naval, que após comprovar sua eficiência foi adotado por toda indústria de aviação.
Após realizarem alguns voos juntos, inclusive em 1921, a travessia aérea Lisboa-Funchal, partiram para o planejamento para cruzar o Atlântico Sul.
Na época a aviação era bastante limitada em alcance e confiabilidade, com aviões com capacidade de voar curtas distâncias e com projetos ainda em fase de aprendizado.
Para a viagem escolheram um hidroavião monomotor inglês Fairey F III-D MkII, que era equipado com motor Rolls-Royce, uma exigência de Sacadura Cabral que confiava nos projetos do fabricante.
O avião foi especialmente projetado para a viagem, ganhando novos instrumentos de navegação, asa ligeiramente maior, o motor Eagle V12 da Rolls-Royce, com 450 hp e um alcance um pouco maior. O avião foi batizado Lusitânia. A bordo estava também uma garrafa de vinho fortificado doce da casa Adriano Ramos Pinto composto a partir de Tinta Roriz, Tinto Cão, Touriga Franca, com estágio entre 6 a 7 anos em barris de carvalho. Essa garrafa a bordo visava comemorar a chegada ao Rio de Janeiro, mas teve outro destino na viagem.
A primeira etapa da aventura começou no dia 30 de março e foi relativamente tranquila, voando entre Lisboa e Las Palmas, nas Ilhas Canária. O próximo trecho até as Ilhas de São Vicente, em Cabo Verde, exigiu após o pouso uma inspeção e reparos no avião. Apenas no dia 17 de abril estavam prontos para o trecho mais perigoso, voando até o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, já em águas brasileiras, o que exigiu extremo cuidado na navegação e coordenação com um navio de apoio. Após o pouso o avião perdeu um dos flutuadores, afundando relativamente rápido, mas ainda permitindo aos aventureiros salvarem os pertences pessoais e a garrafa de vinho.
Após serem salvos pelo cruzador da Marinha Portuguesa, chegaram em Fernando de Noronha, mais de 1.700 quilômetros a frente, onde aguardaram o envio de um segundo avião.
Como havia grande apelo popular na viagem o governo português conseguiu um segundo Fairey F iII-D, agora batizado de Pátria e que chegou a Fernando de Noronha a bordo do navio mercante brasileiro Bagé. Após montarem o avião na ilha, partiram em voo no sentido contrário, rumando até São Pedro e São Paulo, com intenção de completar todo o trecho por via aérea, até para evitar serem acusados de fraude na viagem. Contudo, o pequeno arquipélago, ainda hoje considerado bastante hostil, guardava uma surpresa nada agradável.
Após o pouso, um novo problema no flutuador, fazendo o avião afundar lentamente. Sem suporte e sem apoio próximo, os amigos passaram a aguardar o socorro por longas horas, sob um sol escaldante e ondas não muito favoráveis a condição do avião. Após permanecerem sem saber se teriam chances de sobreviver, resolveram brindar com o Adriano a bordo. Escreveram no diário inclusive que ao notarem o fim inevitável, com tubarões já a espreita, resolveram dar “beijinhos na amada”, um eufemismo para estarem bebendo o vinho, direto na garrafa.
Por sorte, após 9 horas aguardando socorro, foram vistos pelo navio mercante inglês Paris City e resgatados. Voltaram para Fernando de Noronha, onde pediram apoio para um terceiro avião. Com fundos já limitados para a missão foi obtido outro Fairey F III-D, agora batizado de Santa Cruz. Por precaução, dessa vez o avião foi remontado a bordo do navio e desembarcado nas águas próximas de São Pedro de São Paulo, voando rumo ao Recife, aonde chegaram em segurança. Na sequência, decolaram para Salvador, Porto Seguro, Vitória e finalmente, o Rio de Janeiro. A viagem pioneira foi encerrada no dia 17 de junho, após a perda de dois aviões, duas passagens não programadas em Fernando de Noronha e o brinde prematuro com o Vinho do Porto.
Como um amuleto os dois aviadores guardaram a garrafa do vinho, que viajou a etapa final já vazia, mas que teve vital importância na aventura, afinal, permitiu manter a esperança em uma aventura sem precedentes até então.
Recentemente a Adriano Ramos Pinto lançou uma edição especial do mesmo vinho, inclusive em uma embalagem especial que é uma réplica da original.