Na quente safra de 2014, as uvas para espumantes já estão fermentando nos tanques na região de Pinto Bandeira, que deve se tornar a próxima Denominação de Origem brasileira, a primeira específica para espumantes
Por Sílvia Mascella Rosa Publicado em 01/03/2014, às 00h00 - Atualizado em 18/03/2019, às 13h04
Passa pouco das 22 horas da última segunda-feira do mês de janeiro. Na casa de pedra do Centro Tecnológico da Vinícola Aurora, em Pinto Bandeira, o jantar termina em clima de alegria e descontração, no conforto do ar condicionado. Alguém diz: “Lá fora deve estar agradável, aqui no alto do morro é sempre mais fresco à noite”. Não estava. No abrir das portas, aquela sensação de nos depararmos com o forno na época do Natal toma o grupo de assalto. Nem uma folha se move no topo das árvores que circundam o local. As parreiras carregadas repousam tranquilas, em seu sono produtivo.
Produtores estão otimistas com a colheita das uvas base para espumantes, como a Pinot Noir e a Chardonnay
Os cachos brilhantes, em franco amadurecimento, estão apenas ligeiramente ressentidos da sequência de temperaturas elevadas que tomou conta da Serra Gaúcha (e por que não dizer, de todo o país) no meio do verão. A colheita das uvas para a safra de 2014 recém começou.
Estamos a 730 metros acima do nível do mar, no novo município de Pinto Bandeira (que até 2012 pertencia a Bento Gonçalves), onde a colheita das uvas para os vinhos base de espumantes havia começado poucos dias antes, sob temperaturas que passavam – todos os dias – dos 30ºC.
“O sol é necessário nas folhas, para que elas façam a fotossíntese e levem nutrientes para os frutos durante o amadurecimento. Mas também é importante que a temperatura noturna caia, para que a planta processe tudo o que necessita e não estresse”, explica José Rigo, agrônomo-chefe da Aurora, enquanto examina os cachos da uva Pinot Noir que seriam colhidas ainda no mês de fevereiro.
Aqui no alto, os cachos negros da Pinot, em fileiras bem ordenadas na planície e na colina suave, dividem espaço com as castas Chardonnay e Riesling. A Cooperativa Aurora, com 83 anos de vida, fez uma escolha ousada quando, em 2008, decidiu erradicar as mais de 100 variedades que eram cultivadas nessa área para estudos de adaptação e, em seu lugar, colocar apenas três variedades, em 16 hectares plantados.
A escolha, nada fácil para os padrões de uma cooperativa com 1.100 associados, trouxe resultados rápidos com o lançamento dos dois vinhos varietais (Chardonnay e Pinot Noir) e com o primeiro espumante de método tradicional da empresa já sendo produzido. O presidente, Além Guerra, indica que o próximo passo é a construção de uma unidade de produção no local, para que os vinhos das uvas de lá saiam prontos, pois agora eles são feitos na sede, em Bento Gonçalves. A nova vinícola deve ter sua construção iniciada em breve: “Os investimentos são pesados, mas esse projeto de Pinto Bandeira é fundamental para colocar a empresa em outro patamar e nos transformar no ‘Château’ que queremos ser, uma vez que os vinhos finos já representam um terço da produção anual da empresa, a maior produtora e comercializadora de vinhos finos do país”, explica Guerra.
O terroir no qual estão implantados os vinhedos da Aurora faz parte de uma Indicação de Procedência (IP) com 81,38 km2 de área, e as uvas ali produzidas já nascem condicionadas às regras da indicação, implementadas pela Associação de Produtores que congrega vinícolas como a Don Giovanni, Geisse e Valmarino. O atual presidente da associação é Marco Antonio Salton, enólogo e proprietário da Valmarino, localizada num dos extremos da indicação geográfica.
Ele é um rebelde que se disfarça na paisagem, pois mesmo em meio a controvérsias, cultiva seus vinhedos em latada aberta: “Sou da teoria de que temos, para algumas variedades, que aumentar um pouco mais a produtividade e meu terreno responde bem a isso, com cuidado e dedicação”, conta Salton, enquanto nos curvamos para passar por entre os pesados cachos de Tannat, Cabernet Franc e Chardonnay, que enfeitam – com sua aparência um pouco desordenada – os quase 16 hectares da propriedade, numa faixa mais escarpada do terroir de Pinto Bandeira, de solo com rochas vulcânicas.
Salton está satisfeito com a safra até o momento, embora tenha se assustado um pouco, a princípio, com algumas chuvas no começo do verão que fizeram com que as uvas desenvolvessem um pouco de botrytis (um fungo) e tivessem uma ligeira queda de produtividade. Mas com a chegada do calor, esse problema se resolveu. Como suas plantas – devido ao sistema de condução – têm mais folhas, o calor do começo do verão não as afetou tanto. “Estou acreditando que vou tirar umas 15 toneladas por hectare da maior parte da uvas, mas, como selecionamos muito e dividimos por linhas de produtos, sabemos que apenas algo entre 30 e 40% da produção irá para os vinhos top”, conta.
Marco Antonio Salton, enólogo e proprietário da Valmarino, em seus vinhedos de latada
Em alguns momentos, visitar esses lados da Serra Gaúcha em tempos de colheita é como escutar um samba de duas notas (as uvas Chardonnay e Pinot Noir), em que uma terceira pode entrar (Riesling), mas a base é uma só. Tom Jobim, o compositor do “Samba de uma nota só”, exímio maestro e poeta, entendia de assemblagens de notas como ninguém, e nestes lados da Serra os enólogos da região também entendem de sua música, composta com vagar em tanques e garrafas, de variadas amostras de vinhos. “Se queremos nos transformar na melhor marca produtora de espumantes fora da França, teremos que trabalhar com excelência, nem que isso signifique fazer o dégorgement de nossos espumantes apenas na hora da venda”, diz Mario Geisse, proprietário e enólogo da Vinícola Geisse, que trabalha apenas com duas notas, digo, uvas: Chardonnay e Pinot Noir.
Na pequena vinícola, encravada no sopé de uma colina, as uvas são tratadas com muito cuidado, desde que Geisse, chileno de nascimento, começou os testes no início dos anos 1980, quando ainda trabalhava para a Chandon – empresa que o trouxe para o Brasil. Reconhecendo o potencial da Serra para a produção de espumantes, ele comprou terras e começou a produzir uvas e espumantes de método tradicional, como queria fazer há muito. Em sua propriedade, há apenas as duas variedades que ele considera fundamentais para a produção: “Esta região tem características de solo e clima para ser diferenciada e muito específica. Para mim, esta é a verdadeira terra do espumante brasileiro”, afirma.
Seu sobrinho, o também enólogo Carlos Abarzúa, responsável pelo dia a dia da empresa, olha os vinhedos com um misto de alegria e preocupação, sentimento facilmente identificável nos enólogos nesta época do ano: “Até agora estamos bem, o inverno foi rigoroso e longo (algumas partes da serra tiveram até neve), perdemos um pouco de produção, mas o granizo não nos afetou. A colheita está um pouco atrasada em relação ao ano passado, mas nada anormal”, explica Abarzúa.
Safra 2014 pode ser a primeira dos espumantes da D.O. de Pinto Bandeira
Praticamente vizinhos da Geisse, na Don Giovanni, a busca por essa excelência em espumantes fez das terras da empresa familiar uma bela colcha de retalhos, com 18 hectares de vinhedos tão bem cuidados que parecem todos esperar pelos cliques das máquinas fotográficas, enquanto se caminha pelas fileiras bem ordenadas e espaçadas.
Junto do proprietário Ayrton Giovannini, o enólogo Luciano Vian coordena um pequeno grupo que faz parecer simples os rigores da produção de seus espumantes e vinhos tranquilos. Mas que ninguém se engane pelas paisagens e pela gentileza da família, pois lá o trabalho é duro e constante e os espumantes, todos de método tradicional, aguardam pacientes um mínimo de dois anos na garrafa até serem requisitados a deixar o conforto da cave de pedra onde descansam sobre as leveduras.
Na propriedade, as perdas da safra não foram exageradas, mas bem como os outros produtores (Aurora, Geisse e Valmarino), a Don Giovanni começa a apostar num futuro transformador para eles e para a vinicultura do país: “Estamos nos preparando para sermos a mais nova Denominação de Origem do país, específica para nossos espumantes”, revela Luciano Vian.
Enquanto os estudos da Embrapa e das universidades associadas não terminam, há pouco que se possa fazer, a não ser começar a preparar o primeiro espumante oficial da D.O. que – mesmo sem data marcada para vir ao mundo – é possível que precise de um mínimo de 18 meses sobre as leveduras para que possa ser considerado adequado aos padrões da D.O. que vem aí.
Assim, devem nascer, desta quente safra de 2014, as borbulhas que poderão vir a ser aquelas com a primeira Denominação de Origem apenas para espumantes do Brasil. É colocar o chapéu de palha na cabeça, agarrar uma taça e algumas garrafas e procurar uma sombra fresca para esperar.
Uma prévia da safraA safra 2014 iniciou, em média, 15 dias mais tarde em comparação com a safra de 2013. Isso porque neste ano as uvas estão com a maturação atrasada. O inverno foi longo e os meses de novembro e dezembro registraram baixo volume de chuvas no Rio Grande do Sul. Aparentemente, teríamos uma antecipação da colheita, pela falta de chuvas e a evolução rápida da concentração dos açúcares. Entretanto, nos primeiros dias do ano, a chuva retornou com volumes acima do esperado, retardando assim o processo de maturação que vínhamos tendo até o momento. As uvas destinadas à elaboração de espumantes tiveram uma evolução muito rápida de acidez, exigindo dos enólogos uma atenção redobrada. Naturalmente, porque a acidez é de grande importância na composição do vinho base que será usado para elaborar os espumantes. Um dos fatores que contribui para a diminuição rápida da acidez é o calor, e as temperaturas médias em janeiro, tanto durante o dia quanto à noite, foram muito altas, acelerando o processo de metabolização das videiras, baixando rapidamente a acidez. A colheita das uvas destinadas à elaboração de espumantes foi praticamente toda concluída em fevereiro. Estamos projetando uma queda de produção de, aproximadamente, 20% nas principais variedades para esse fim: Chardonnay, Pinot Noir e Riesling. Quanto às uvas destinadas à elaboração de vinhos tranquilos, principalmente as tintas, as perspectivas são muito boas. A temperatura continua alta, o que permite uma maior evolução geral, além de mais rápida concentração dos açúcares, assim como os taninos, responsáveis pela estrutura do vinho. Pelo que estamos acompanhando, essas variedades também terão uma queda no volume produzido, mas a qualidade deve ser de muito boa a excelente. As chuvas até o momento são em pequenos volumes, e de pouca duração. E logo após a chuva, o sol ressurge deixando o ambiente do vinhedo seco, evitando o surgimento de fungos e permitindo uma boa condição de maturação dos frutos. |