Uma viagem enogastronômica para Puglia

A região de Puglia, na Itália, vai muito além do vinho Primitivo di Manduria

Christian Burgos Publicado em 27/12/2018, às 14h31 - Atualizado em 19/03/2019, às 13h06

Da Puglia vem um vinho que nos últimos anos ganhou uma legião de adeptos no Brasil, o Primitivo di Manduria. Em uma primeira viagem à região, há cinco anos, voltamos com a percepção de que lá existe um terreno minado para quem compra vinhos. Degustamos muitas dezenas de Primitivo di Manduria, Negroamaro e Nero di Troia para encontrar um punhado de bons vinhos. Esta conclusão desestimulou inclusive uma matéria específica sobre a região em nossas páginas, mas os enófilos de todo o Brasil continuavam apreciando o Primitivo e os consumidores, que pagam para escolher seus vinhos, são o último campo de prova de que algo existe. A falha para compreender o todo exigia uma reavaliação da maneira como encarar o enigma.

Estudando mais a fundo, vê-se que a Puglia é uma região em transformação. Em todos os sentidos. Uma enorme região predominantemente agrícola no calcanhar da bota banhada por dois mares no Mediterrâneo, uma parte do sul que sofre o preconceito de local pobre na Itália. Mas a Puglia é muito mais do que isso.

A beleza natural é marcada pelo calor e pelo sol intensos, com pouca chuva e com solo seco embora cercado por água. As condições que restringem muitas atividades agrícolas são ideais para o cultivo de frutas, entre elas a uva e sobretudo vastas e lindas “florestas” de oliveiras. Cidades, na maioria muito pequenas e horizontais (quase todas com, no máximo, dois pavimentos) se espalham pela região e convivem com algumas poucas maiores. A arquitetura é confusa, estilos que se sobrepõem em uma mesma rua, bloco a bloco e cidade a cidade são salvos pelas vilas mais antigas que, como Lecce, são verdadeiros museus a céu aberto. A arte também se faz presente em muitas formas, notadamente no artesanato de cerâmica cuja cidade de Grottaglie é o máximo expoente.

Turismo

Como um adolescente que incontrolavelmente se comporta como adulto e, às vezes, como criança em um processo de definição, a Puglia passa por um processo de transformação.

A cozinha mediterrânea, com peixes deliciosos, tomate, saladas incríveis e queijos frescos, convive com massas e com o melhor panetone do mundo produzido artesanalmente pelo Sr. Lenti na Pregiata Forneria Lenti. Apesar dessa característica da gastronomia, os vinhos que conhecemos na Puglia são tintos encorpados inadequados para acompanhar os pratos da região. Felizmente, encontramos a variedade branca Verdeca, fresca e mineral, que imediatamente encanta e se torna companheira de quase todas as refeições.

Mas é assim mesmo, as qualidades dessa região estão sendo descobertas por nós e também pelos afluentes não só da Itália como de outros países, cujos homens de sucesso estão encontrando na Puglia a paz e o convívio com a natureza que a vida dos grandes centros europeus lhes tolhiam. Um local onde o tempo parou e os ponteiros do relógio andam num outro ritmo.

A Puglia vem passando por um processo de transformação desde o turismo até seus vinhos

As antigas masserias, casarões que foram abandonados e seus trullos, estão sendo mais do que restaurados, são recuperados para funcionar como casas de veraneio e belíssimos hotéis para a riqueza europeia. Um verdadeiro nobre renascimento da região está dando seus passos e a subida do preço da terra é prova do movimento. Você acorda em sua masseria, cercado de oliveiras e vinhedos, e em alguns quilômetros vai para a praia mergulhar nas tépidas águas do Mediterrâneo, ou sai com sua lancha para pesca oceânica e traz um lindo atum para o jantar como fizeram os três estrelados chefs Davide Degiovanni (Gordon Ramsey Group), Aurelie Altemaire (Joel Robuchon) e Warren Geraghty (Galvin Restaurants), que vieram de Londres e com quem compartilhamos uns dias da viagem. O jantar, é óbvio, ficou por conta deles, depois de um passeio para ver a costa a partir do mar e um delicioso mergulho em um ponto selecionado pelo capitão para evitar as medusas que cruzavam o caminho em manadas.

Masseria Bagnara, com quartos amplos e elegantemente decorados e paredes de pedra com 50 centímetros de largura

A Masseria Bagnara, onde ficamos, é a prova da classe e altíssimo nível que o turismo está atingindo na região. Quartos amplos e elegantemente decorados, paredes de pedra com 50 centímetros de largura, camas impecáveis, toalhas de primeira e uma cozinha onde os chefs se sentiram em casa, além de uma impressionante adega com grandes ícones da Puglia, da Itália e do mundo, que o dono, Amedeo Pagano, faz questão de escolher pessoalmente.

O café da manha com iogurte, tomate, azeite, mozzarella fresca, pão e frutas acompanhados de um expresso perfeito são capazes de trazer um sorriso aos lábios do mais taciturno ou cansado viajante.

Vinho

Toda essa transformação também está se fazendo sentir nos vinhos. Visitamos um dos ícones da região, que é precursora e parte dessa metamorfose ambulante, a Cantine San Marzano, que produz o famoso Primitivo di Manduria Sessantanni.

A uva Primitivo historicamente produzia um vinho doce, um late harvest que, nesse calor e sem a preocupação com a chuva, seguramente era o produto natural para o terroir. San Marzano, entre outros precursores, deram atenção ao vinho tinto que era elaborado na cantina. Investiram em um belo laboratório e nas melhores condições técnicas e tecnológicas para levar a qualidade do Primitivo a um novo nível. Uma apresentação imponente também contribuiu para esse vinho ser levado a sério. A San Marzano é uma cooperativa que foi transformada inicialmente por uma dupla – no caso, um presidente visionário e empreendedor, Francesco Cavallo, que confiou, e não só apoiou, mas incentivou o caminho traçado por seu diretor, Mauro di Maggio, com experiência internacional e a paixão de levar os vinhos da região a um novo patamar.

Ao mesmo tempo que encontramos tecnologia, vimos o lado humano da San Marzano com pequenos cooperados trazendo sua produção diariamente em carros de passeio, pequenos tratores e outros veículos que no Brasil fariam a alegria de colecionadores de automóveis.

As antigas masserias foram recuperadas para servir de casas de veraneio e belos hotéis

O tinto Primitivo di Manduria Sessantanni mostra muito do que foi o late harvest de Primitivo. Parte de suas uvas, inclusive, passam por um processo de desidratação em câmaras frias antes de serem vinificadas. A força da fruta, opulência e potência estão aí equilibrados com boa acidez e taninos também poderosos. Um vinho com as características admiradas por tantos apaixonados por vinho no Brasil e no mundo afora. Atingir grande qualidade nesse estilo foi o primeiro passo para chamar a atenção do mundo e ser levado a sério, destinando as melhores uvas de vinhedos antigos a ele.

Aos vinhedos muito antigos de pequenos cooperados se uniram outras parcelas que foram sendo compradas pela San Marzano e que são cultivadas como jardins. As videiras com mais de 60 anos plantadas em alberellos (arbustos) são baixas e geralmente cercadas por muros de pedras retiradas do solo e empilhadas. Nesse solo arenoso e calcário, encontram seu próprio equilíbrio com relação à quantidade de produção e conquistam um perfil mineral importante.

O Sessantanni marcou um novo rumo em direção à qualidade e à produção de vinhos de maior valor agregado, e outros produtores da região seguem essa trilha. Ao lado do Sessantanni, agora se faz o Anniversário 62, que compartilha o mesmo esmero na produção em um perfil mais elegante.

Curiosamente, os vinhos mais simples da San Marzano vêm seguindo esse estilo mais fresco do 62, numa clara linha que se inicia nos vinhedos e segue até a garrafa. Recentemente, o Primitivo di Manduria Taló 2013 foi agraciado como “tre bicchieri” e, após comprovar isso em nossas degustações às cegas, o escolhemos para uma das categorias do Clube ADEGA antes de as garrafas se esgotarem no Brasil.

É natural encontrar um caminho que está nos conduzindo ao sucesso e focar nele. O infortúnio é que algumas coisas permanecem sem a devida atenção. É o caso da variedade branca que encantou a todos na viagem, a Verdeca, que é capaz de reter frescor e buscar a característica calcária do terroir. Uma companhia perfeita para a cozinha local. Trata-se de um vinho acessível e delicioso, um falso simples, com um potencial enológico que ainda pode dar muito o que falar. Esperamos que a Puglia reconheça e valorize seu potencial.

VINHOS AVALIADOS

AD 89 pontos

TALÒ VERDECA PUGLIA IGP 2014 San Marzano,

Puglia, Itália (Grand Cru R$ 84).

Um vinho feito com a variedade Verdeca. Ele é franco e com aroma a ervas e pêssego fresco. Em boca, pêssego e frutas tropicais, com alegre acidez e bela textura, que lembra seu solo calcário. Um vinho vibrante com delicioso final de boca e mineralidade. Gastronômico. Atenção à temperatura de serviço, pois dependendo dela, varia do austero ao tropical. CB

AD 88 pontos

IL PUMO PRIMITIVO 2013

San Marzano, Puglia, Itália (Grand Cru R$ 61).

Um nariz com um primeiro impacto de cereja madura e ameixa, e depois traz um aroma a pinheiro. Em boca, é saboroso, com fruta vermelha, boa acidez e taninos presentes. Rico sem ser enjoativo. Um belo exemplar de Primitivo. CB

AD 90 pontos

TALÒ PRIMITIVO DI MANDURIA 2013

San Marzano, Puglia, Itália (Grand Cru R$ 114).

Aroma limpo de fruta com um toque de alcatrão. Em boca, é vivo, com a força de taninos, acidez vibrante e fruta madura. E um final a fumê da madeira. Equilíbrio no alto que os amantes do bom Primitivo buscam. O fim de boca continua valorizando a fruta e seca pelos taninos. CB

AD 92 pontos

PRIMITIVO SESSANTANNI 2012

San Marzano, Puglia, Itália (Grand Cru R$ 242).

Vinhedos sempre com mais de 60 anos e 12 meses em barricas novas. O aroma tem profundidade e complexidade marcantes. Rica doçura de fruta e cassis, bastante couro com a boa madeira. Em boca, tem um equilíbrio opulento. Muita fruta, taninos e acidez gritante (quase picante). Curiosamente, o fim de boca é seco e termina com os taninos muito polidos e frescor. Nestas vinhas velhas em alberello, 1 kg rende 0,60 litro de vinho, pois os cachos têm menos água que o usual. O vinho que criou um novo nível para o Primitivo no estilo e também na apresentação. CB

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