Cahors - terra do Malbec - renasce

Como essa denominação “esquecida” pretende voltar aos seus dias de glória

Steven Spurrier Publicado em 10/01/2017, às 12h00 - Atualizado em 20/02/2019, às 16h47

Cahors produzia vinhos de tanta densidade que eram conhecidos como vins noirs, ou vinhos negros

Há bem poucas denominações ao redor de toda a França que tenham sofrido uma perda de vinhedos tão extensiva e também de reconhecimento durante os últimos 100 anos quanto a histórica região de Cahors.

Situada em ambas as margens do rio Lot, nos departamentos de Lot e Quercy, no bucólico sudoeste francês, há 22 mil hectares classificados como potenciais para a AOP Cahors em um território de 45 quilômetros de leste a oeste e 25 quilômetros de norte a sul, abrangendo 45 vilas. Em 2002, havia apenas 4.500 hectares de vinhas e hoje apenas 3.300 da AOP (Appellation d’Origine Protégée) Cahors, devido em parte à contínua erradicação dos vinhedos, em parte aos produtores (encorajados pela dominante Cooperativa Cotes d’Olt Cave) que diversificaram nos rótulos da menos estrita IGP (Indicação Geográfica Protegida).

Mas, ao menos, a partir desse ponto mais baixo, nas mãos de alguns produtores determinados, está em andamento um mudança que, com ajuda do INAO (Institut national de l'origine et de la qualité) do governo francês, pode em breve fazer com que a região de Cahors seja sussurrada nos mesmos tons que a Borgonha.

A decadência do vin noir

A cidade de Cahors – cuja ponte medieval Valentre, que se estende sobre o rio Lot, é um monumento nacional – foi uma poderosa cidade mercadora, com vinhedos ao redor produzindo vinhos de tanta densidade que eram conhecidos como vins noirs, ou vinhos negros. Dessa forma, muitas barricas fizeram o caminho descendo o rio até Bordeaux, onde elas eram misturadas com os vinhos mais leves de Graves e Médoc para serem embarcadas para paladares que os apreciavam na Grã-Bretanha e no norte da Europa. No século XIX, os terraços íngremes que cercavam a cidade estavam todos produzindo os melhores vinhos.

Mas eles foram abandonados por décadas. Enquanto permanecem dentro da AOP, sua única esperança de serem replantados é se a região tiver sucesso em persuadir o INAO a classificar os vinhedos em Grands e Premier Crus, como na Borgonha, baseado em análises de solos aprofundadas. Em 1999, diante das quedas em vendas, foi criada uma Carta de Qualidade que projetava tal classificação. Ela recebeu atenção do INAO, mas estagnou e foi cancelada em 2002, causando um colapso de preços.

Ponte medieval Valentre, que se estende sobre o rio Lot, é um dos símbolos da região

Os vinhos conheceram uma fama repentina na década de 1970, pois o presidente francês Georges Pompidou, que sucedeu o general Charles de Gaulle em 1968, havia nascido na região. Depois que os vinhos foram classificados como VDQS (vins délimités de qualité supérieur) em 1951, Cahors foi elevada ao status de AOC em 1971 e as garrafas eram vistas em todos os restaurantes da cidade. Por volta dos anos 1980, elas foram substituídas por vinhos de seus grandes rivais do Madiran, do departamento vizinho de Gers, cujos potentes vinhos de Tannat provocaram uma forte impressão. Então, a Malbec, a principal variedade da região (conhecida localmente por Auxerrois) foi descoberta como a estrela dos vinhedos argentinos e Cahors saiu cada vez mais da vista.

Terroir

Do ponto de vista do clima e do solo (que juntos criam o terroir), a região é extraordinariamente diversa. O clima tem fortes influências Atlântica (Bordeaux), Continental (Borgonha) e Mediterrânea. Os solos aluviais das margens do Lot – que produzem Malbecs leves – dão lugar a vinhas que se elevam acima de 150 metros com pequenos seixos, quartzo, calcário (conhecido como causse), giz e até ferro vermelho, todos os cinco tipos sendo encontrados nos 65 hectares do Château Chambert, por exemplo, e em outros lugares, com vinhedos plantados sob todos os tipos de exposição solar.

O solo da região é muito diverso, com seixos, quartzo, calcário (conhecido como causse), giz e até ferro vermelho

Seguindo a sua rejeição em 2002, a região está preparando outra investida no sistema hierárquico dos Crus e a ajuda está agora nas mãos de pessoas como Claude e Lydia Bourguignon, renomados especialistas franceses em análise de solo. Considerados a principal influência na revitalização dos vinhedos da Borgonha para a viticultura industrial dos anos 1970 – Bourguignon teria dito na ocasião que “há mais vida no deserto do Saara do que em alguns vinhedos da Côte d’Or” –, eles abriram um escritório na região e até mesmo plantaram seu próprio pequeno vinhedo em um terraço calcário abandonado. Tal experiência e influência, aliadas à energia de produtores visionários, não deve demorar para produzir o esperado renascimento de Cahors.

Se forem necessárias provas, vivenciei-as no fim de agosto deste ano, quando minha esposa e eu ficamos com amigos no norte de Albi e aceitamos com alegria o convite de Philippe Lejeune, que desde 2007 é dono do histórico Château de Chambert – com 65 hectares, é a maior propriedade biodinâmica da denominação. Na verdade, a maior de todo o sudoeste da França exceto por Bordeaux.

Por sugestão minha, dois outros Châteaux foram incluídos na prova: Château du Cèdre e Château de Lagrezette, ambos conhecidos meus quando era comerciante de vinho em Paris.

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Château de Lagrezette

Château de Lagrezette é reconhecido como um líder da denominação

A prova começou com os vinhos de Lagrezette, apresentados pelo enólogo Cedric Blanc. As primeiras uvas de Malbec produziram vinho por lá em 1503, quando muito do Médoc ainda era um pântano não drenado. Mas a propriedade de 60 hectares estava em estado de declínio terminal quando foi visitada por Alain-Dominique Perrin, o CEO das joalherias Cartier, em 1979. Comprando-a no ano seguinte, ele levou uma década para renovar o Château, adegas e vinhedos, e hoje é reconhecido como um líder da denominação, tendo, desde o início, tomado Michel Rolland como consultor. Para minha surpresa, a degustação começou com um vinho branco, um 100% Viognier 2012 do solo calcário de Perrin no vinhedo Mas des Merveilles, perto de Rocamadour, 50 quilômetros ao norte da cidade de Cahors. Menos rica e mais contida do que a Viognier do Condrieu do norte do Rhône, ela é aromática, com bela estrutura de acidez, e rapidamente se tornou procurada por top chefs. A AOP Cahors é limitada a vinhos tintos, mas com giz, calcário e cascalhos no solo, Sauvignon e Sémillon de Bordeaux, Chardonnay da Borgonha e Chenin Blanc de Touraine, estão todas saindo do estágio de experimentação. Clos Marguerite, um vinhedo de 20 hectares recentemente adquirido com solo cascalho sobre calcário e argila, logo ao sul de Lagrezette, foi plantado com 100% Malbec em 1997. O Clos Marguerite 2011 e o 100% madeira nova Paragon 2011 foram impressionantes e vão se tornar melhores quando as vinhas envelhecerem. Mas os louros vão para o Château Lagrezette 2011 (86% Malbec, 12% Merlot e 2% Tannat), um vinho denso combinando floral, finesse e pegada com uma década ou mais diante de si.


Château de Chambert, que tem Stephane Derenoncourt como consultora

Cahors está passando por um renascimento muito atrasado e terá um futuro fascinante

Château du Cèdre

Depois veio Château du Cèdre, onde o cofundador e enólogo Pascal Verhaeghe começou sua carreira na Califórnia com Saintsbury, em Carneros. O Château du Cèdre 2011 (90% Malbec, 5% Merlot e 5% Tannat) mostrou fruta explosiva com um frescor quase feminino, enquanto o 100% Malbec Le Cèdre 2011 teve grande pureza de concentração, precisando de tempo para se desenvolver. Sua cuvée especial, apenas 10 mil garrafas do GC 2011 foi contundentemente singular, densa e ainda refrescante, um dos vinhos que atualmente colocam Cahors de volta no mapa dos colecionadores.

Château de Chambert

Finalmente, os vinhos de Philippe Lejeune provaram que a antiga região em declínio  precisa de novatos apaixonados. O Château de Chambert 2010 (85% Malbec e 15% Merlot) teve uma bela fruta e uma acidez elevada que combinou com a riqueza natural do Malbec, enquanto seu 100% Malbec Grand Vin, vindo de solos calcários, rochosos e de ferro vermelho de baixo rendimento, teve uma ótima concentração de frutas vermelhas, pronto agora e ainda melhor no futuro. Lejeune escolheu a admirada Stephane Derenoncourt como consultora e delegou a distribuição de seus vinhos para Advini, proprietário de Rigal, o negociante mais respeitado da região e dono de grandes extensões de vinhedos em Cahors.

O fato de a Advini, com 1.700 hectares de  vinhas nas denominações mais célebres da França e o terceiro maior produtor do país, mostrar interesse em Rigal e particularmente em Philippe Lejeune, revela um grande comprometimento que significa uma coisa:  Cahors está passando por um renascimento muito atrasado e, com 18 mil hectares  classificados para plantar, o futuro será fascinante de assistir.

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