Uma conversa franca com Charles de Bournet, da Lapostolle
Charles de Bournet conta como o pioneirismo de uma família francesa moldou a Lapostolle, um dos principais ícones do Chile e ajudou a mudar o panorama dos vinhos no país
Christian Burgos Publicado em 03/01/2024, às 14h00
Lapostolle é um dos nomes mais respeitados na vitivinicultura chilena. Já são 30 anos desde que Alexandra Marnier Lapostolle e seu marido Cyril de Bournet fundaram a vinícola em 1994 após encontrarem o que eles acreditavam ser um tesouro de vinhedos antigos de Cabernet Sauvignon no vale de Apalta, na região de Colchagua.
Com know-how francês, seu vinho ícone, Clos Apalta, surgiu na safra 1997 e o vintage 2005 foi eleito o vinho do ano pela revista norte-americana Wine Spectator – a primeira e, até o momento, única vez que um produtor sul-americano recebeu tal honraria.
A consagração da expertise francesa no terroir chileno ajudou a levar a questão das denominações de origem mais a fundo no país. Hoje, Apalta é considerada uma fonte de grandes vinhos e a delimitação de microrregiões é cada vez mais observada e propagada por todo o território chileno.
A história recente de Lapostolle teve um brevíssimo hiato com a família Bournet-Lapostolle. Em 2016, o grupo Campari comprou a famosa marca Grand Marnier e outras propriedades da Société des Produits Marnier Lapostolle, de Alexandra, incluindo a vinícola no Chile. Meses depois, contudo, a Campari “revendeu” Lapostolle para Alexandra por cerca de 30 milhões de euros. Mas, desde 2013, as operações chilenas são comandadas por Charles de Bournet, filho de Alexandra e Cyril.
ADEGA conversou com ele durante sua última visita ao Brasil para selar um novo acordo que retomou a representação de Lapostolle para a importadora Mistral depois também de um breve hiato. Bournet discorreu sobre pontos chave da vitivinicultura chilena e ainda pudemos provar as principais novidades e mais novas safras de Lapostolle.
Como começa a história de Lapostolle no Chile? Lapostolle começou há quase 200 anos, em 1827, na França, em uma cidade próxima a Paris que se chama Neauphle-le-Château. Na época, fazíamos destilados. Criamos e fundamos o Grand Marnier, que é um licor de Cognac. E posteriormente criamos o Chatêau de Sancerre. Já mais recentemente, meus pais ficaram super intrigados com a questão de que o Chile nunca ter tido filoxera. Quando visitaram o país, foram a vários lugares e, em Apalta, viram um lote de videiras muito velhas que ninguém sabia muito bem quando tinham sido plantadas. Eram videiras que não se viam na Europa. Então souberam que havia algo especial e se apaixonaram por aquele lugar. Sabemos agora que essa parcela foi plantada em 1909, portanto há mais de 110 anos. Isso nos levou da França ao Chile.
Em 2008, o rótulo Clos Apalta 2005 recebeu o título de Vinho do Ano da Wine Spectator... Foi o primeiro vinho sul-americano a receber essa horaria. Como se chegou a isso? Primeiro e único. Espero que não sejamos os últimos, porque existem vinhos muito bons no Chile. Lapostolle foi criada em 1994. Como não conhecíamos o lugar, levamos três anos para começar a vinificar, conhecer e entender bem o vinhedo. Depois disso, fizemos um vinho com a ajuda do nosso enólogo consultor Michel Rolland. Lembro que Michel estava no Chile fazendo assemblages e ligou para minha mãe (que estava na Europa) e disse: “Aqui tem uma cuba espetacular”. E essa cuba tornou-se Clos Apalta, que nasceu com a colheita 1997. Não houve um 1998, porque foi um ano muito complexo, mas a partir daí sempre produzimos. A safra 2000 foi considerado o vinho número três no mundo da Wine Spectator. E isso meio que chamou a atenção. O que está acontecendo no Chile? Em 2001, Clos Apalta foi o número dois, e o primeiro tinto. E em 2005 foi número um do mundo. Fomos muito bem sucedidos na crítica nessa época e depois também durante a década de 2010 a 2020 com James Suckling, que deu três vezes 100 pontos para Clos Apalta. Então, é um vinho que teve glória com a crítica no início e continuou. Obviamente, a crítica vem e vai, e muda, mas parece que há uma consistência que transcende o tempo e a crítica. Sou muito grato por essa aventura.
Quando você se juntou à empresa? Digo que desde o início, porque desde criança ouço sobre vinho em casa, conversas no almoço com meus pais falando sobre as viagens ao Chile, o que precisava ser feito. Somos uma família, um projeto familiar, então acompanhamos o desenvolvimento do zero. Eu, pessoalmente, ao nível das operações, entrei em 2008, mas depois saí. Fiz pisco. E então me colocaram de volta. Meus pais não se aposentaram, mas deram um passo para trás nas operações. E retomei à gestão geral em 2013.
Como você encontrou a empresa e o que mudou em sua visão depois de retornar e estar no comando? A empresa era espetacular. É assustador porque se diz que é a empresa mais bem-sucedida do setor vitivinícola latino-americano dos últimos 20 anos. E para onde eu vou? Você está no topo e vai para onde? Não quero descer. Então é complexo. Mas tem duas coisas. Os tempos mudaram, não estamos mais nos anos 1990, a idade de ouro dos vinhos chilenos, onde tudo o que se fazia era vendido. Os anos 2000 foram brutais no Chile. Todas as vinícolas começaram a sangrar porque perceberam que produzir vinho era uma coisa, distribuir e vender era outra. Nós, obviamente, sendo uma empresa multinacional com outros produtos, tínhamos uma rede de distribuição já estabelecida, o que nos ajudou muito. Outros também entenderam que a distribuição é fundamental, mais do que a produção. Os mercados mudaram. Mais do que mudar as coisas, devíamos obviamente seguir, adaptar, porque essa é a beleza do vinho. Existe uma parte muito tradicional e lenta da produção. Toma um ano para produzir a uva, outro ano de vinificação, outro ano na garrafa. Tudo isso leva tempo, mas o mercado é muito dinâmico. Essa dualidade é super interessante. No nível de produção, não havia nada a mudar, os vinhos eram espetaculares e espero que continuem. Então, foi mais adaptar um nível, uma nova distribuição. Lançamos, por exemplo, Clos Apalta em La Place de Bordeaux. Tive muita sorte de não ter que me preocupar muito com a produção de vinho, mas, mais do que tudo, com a estrutura da empresa.
Acho que os meus vinhos são bastante naturais, pois se analisarem não encontrarão um único produto químico
Mas você também se envolveu na produção, criando novos rótulos, não? Acho que é sempre um pouco para honrar a geração passada. Queria fazer um vinho para honrar a visão dos meus pais. Na época, tinha que ter coragem para uma família francesa investir e apostar em um lugar onde não havia sequer uma estrada para chegar. Era uma vinha totalmente abandonada, então, como dizer: “Dessa vinha sairá um dos melhores vinhos do mundo”? Em 2013, conversei com a equipe e disse: “Quero que o vinho venha dessa parcela, quero experimentá-lo”. É uma uva que se qualifica para Clos Apalta. E aí provamos as barricas e fizemos um lote da parcela que foi a origem de toda a história da minha família no Chile. No ano passado lançamos La Parcelle 8. Não há muito o que inventar. É um vinho 100% Cabernet Sauvignon de vinhas velhas. Para mim, é uma maneira de honrar meus pais.
Como avalia as últimas safras no Chile? Dizem que 2023 será uma grande safra... No dia em que encontrar um enólogo que lhe diga que a próxima vindima é ruim, deve gravar. Um vinicultor sempre lhe diz que a safra é boa, mas a que vem é melhor. Vamos ver porque é muito cedo para dizer, mas acho que 2023 é uma boa colheita. Posso dizer é que 2022 é excelente. Será um dos grandes anos do Chile.
Já 2021 foi difícil? A chave em 2021 foi o manejo do dossel, como criar sombra, porque houve uma insolação muito brutal e chuva, tanto que veio Botrytis pela primeira vez. O Chile também teve que começar a aprender um pouco a falar sobre coisas naturais, e isso não é uma coisa ruim. Na verdade, ajuda o público a entender que é complicado fazer vinho. Perdemos metade da Syrah porque era uma uva precoce. E o que vamos fazer? É um produto natural.
Vocês têm feito muito investimento em enoturismo ultimamente. Quão importante é isso? Somos franceses e o enoturismo lá nunca aconteceu, porque na França, até recentemente, você não podia ir visitar uma vinícola em Bordeaux e comprar vinho. Era proibido pelo sistema de negociantes. Então começamos no Chile, mas sem querer. Tínhamos parceiros chilenos em Lapostolle e, até antes de comprarmos sua participação, ficávamos na casa que eles tinham ao lado do vinhedo. Mas depois disso, não podíamos ficar. Então minha mãe disse ao arquiteto para adicionar uma casa na vinícola. E se criou a “Residence” de Clos Apalta, com quatro quartos, um para meus pais, um para meu irmão, um para mim e um para convidados. E cada vez mais vinham clientes e perguntavam se podiam visitar. “Não pode. É a minha casa...”. Mas depois, montou-se uma equipe permanente e abriu-se ao público. E começamos os tours. Hoje estamos recebendo de 12.000 a 15.000 pessoas. E estamos adicionando uma nova “casita”.
Qual conceito por trás dos vinhos de Lapostolle? O conceito é fazer vinhos que têm uma origem, que têm de falar de onde vêm. É a personalidade dele, é a história dele, porque o vinho é a mistura de gente, cultura e lugar, não? A nossa primeira linha é Grand Selection, em que fazemos uma seleção de uvas em um local de origem mais amplo. Essa é a linha de entrada onde podemos brincar com bons vinhos e as melhores uvas do Chile. Depois, temos Apalta, que é o nosso lugar, onde temos três vinhedos e, desde 2018, Apalta é uma denominação de origem, o que é uma grande conquista, pois a autoridade chilena não entendia o conceito de DOC. Antigamente era um tópico administrativo, tendo como parâmetro a região de O’Higgins, Rancagua, San Fernando ou Santa Cruz. Então, antes, esses vinhos eram de origem Santa Cruz. Mas em Santa Cruz você tem Lolol, Apalta etc. “Vocês entendem que Santa Cruz é uma cidade, não um lugar?” Levamos muito tempo para explicar que, no final, uma denominação de origem tem a ver com a expressão de um lugar próprio. Por isso é bom que tenhamos várias DOC dentro de uma região maior. Voltando à linha Apalta, esses vinhos são 100% uvas das nossas vinhas de Apalta.
Nessa linha há um rosé de um estilo que difere da maioria dos rosés do Chile. De onde vem? Foi um projeto um pouco egoísta que começou em 2006, porque foi feito para mim, que sou francês e no verão tomo rosé todos os dias no almoço, jantar etc. E depois de oito anos morando no Chile, conversei com o enólogo. “Faça-me um rosé de verdade”. Começamos a ver a cortes de Cinsault e conseguimos três anos depois. Nunca pensamos que um rosé chileno fosse se concretizar e no final deu certo, porque é um rosé com estilo provençal.
Qual a ideia da linha Cuvée Alexandre? Aqui falamos de um único vinhedo – temos três vinhedos lá. Queremos procurar a expressão pura de um Cabernet Sauvignon de Apalta, por exemplo.
As pessoas geralmente têm como base os Cabernets do Maipo, como diferenciar? É um estilo diferente. Obviamente somos mais redondos, mas não é por isso que somos tímidos. Queremos equilíbrio. Queremos fruta, mas queremos elegância. Não queremos ser uma bomba de frutas. E você tem que fazer essa diferença pela origem da uva. A arte é ler a sua vinha, entender a sua vinha e saber até onde você pode levar essa uva, a que nível. Há uvas que, se você tentar empurrá-las, não vai ser bom.
Gostamos de experimentar porque, no fim, tem que ser muito inovador para uma família francesa chegar ao Chile... A primeira coisa que devemos fazer é experimentar.
Sobre técnicas de vinificação... Na filosofia de Lapostolle, não fazemos parte do trend. Fazemos os vinhos que fazemos, os que gostamos de beber. Temos o nosso estilo.
Vocês possuem uma visão muito clássica, mas também sempre estiveram muito à frente do seu tempo em muitas coisas. Acho que a primeira vez que ouvi sobre ovos de cimento foi com Lapostolle... Gostamos de experimentar porque, no fim, tem que ser muito inovador para uma família francesa chegar ao Chile... A primeira coisa que devemos fazer é experimentar. Então, quando houve a mania de ovos de cimento, fomos atrás. Se gostamos, vamos fazer. Se não gostarmos, para quê? Então testamos. Mas você não pode fazer apenas pela moda. Pois meu papel é colocar um gosto de Apalta naquela garrafa, que todos os anos obviamente muda um pouco devido ao clima. Todos os anos tenho que ler a vinha, ler a colheita e dar-lhe a melhor expressão possível daquele lugar naquela garrafa com um estilo de Lapostolle. Outra pessoa pode dar-lhe outro estilo. Somos o estilo de que gostamos como família. Se há pessoas que dizem que não gostam desses vinhos, bem, há muitos outros vinhos e isso é bom.
Quais experimentos costumam fazer? Em nossa opinião, 90% do vinho é feito na vinha. O vinho é feito com uvas, então, com uvas melhores, melhor o vinho. Em seguida, vem a vinícola. Quando a pessoa já tem uma compreensão da sua vinha, pode testar. Começamos em 2013 a adicionar uma vinificação em barricas. E hoje já faz parte. Foi um processo paulatino, pois, se você mudar tudo ao mesmo tempo, como você sabe o que influenciou? Como sabe o que contribuiu ou o que não aporta nada? Cada experiência, tudo o que acrescentamos tem de ser super controlável e ver se acrescenta ou subtrai, ou não contribui em nada. Não mudamos apenas para mudar, mudamos e vemos como isso contribui com algo para o vinho e se, nesse caso, a experiência de beber se torna mais interessante.
A questão da sustentabilidade permeou o trabalho de Lapostolle no Chile desde o início. Como está isso hoje? Isso é fundamental para nós. Somos pioneiros em muitas coisas. Tenho primos do lado do meu pai que são donos do Domaine Leflaive na Borgonha; e Anne-Claude Leflaive foi realmente uma influência mundial sobre o tema da biodinâmica. Nos anos 2000, minha mãe conversou com ela, compreendeu o tema e começamos a fazer no Chile. Obviamente, o primeiro passo é a parte orgânica. Na indústria agrícola hoje é difícil, mas temos a obrigação de tentar. Porque, às vezes, não podemos, mas posso tentar de forma diferente. Existem problemas estruturais da indústria, mas temos que fazer o esforço para ter o máximo de orgânicos possível. Há produtos que ainda não há substituição biológica e, por isso, às vezes, discuto um pouco com extremistas que dizem que é tudo ou nada. E essa parte nos desencantou em relação à certificação.
Como assim? No início, era realmente uma onda de pessoas que queriam tentar melhorar o processo, fazer algo melhor para a terra, para nossos filhos, para as pessoas que vivem ao redor, para todos. Mas, de repente, tudo desligou. Uma certificação não é gratuita e havia muita contradição, muitas coisas que não entendíamos. Regras que se aplicavam no Chile e não se aplicavam na França. A razão é que, se for aplicada na França, ninguém consegue ser biodinâmico. Mas é uma filosofia. Então acho que não posso ser uma pessoa boa em um país e uma pessoa ruim em outro. Ou somos ou não somos. E foi aí que vimos muitas contradições e não gostamos, porque tentamos ser pessoas consistentes. Então retiramos os certificados orgânicos e agora estamos recertificando novamente como orgânicos, mas com outra empresa, a Ecocert, francesa, que entende os problemas da agricultura, que não é preto ou branco. E também nos certificamos no tema de sustentabilidade do Chile – cujo selo é superior e não vê apenas a parte da vinha. Qual é o seu papel na sociedade? Seu papel em sua região? Como vende o seu vinho? Isso também tem que ser sustentável. Então, no final, eles entenderam que a sustentabilidade não é apenas a produção, a sustentabilidade é da empresa toda e, para se sustentar ao longo do tempo, as mudanças têm de ser graduais e controladas. Morrer não é sustentar. É definitivo.
Deixaram de ser certificados, mas mantiveram o manejo? Nem tudo, porque fazíamos coisas que não entendíamos e que não faziam sentido. Por que aplicar uma regra alemã no Chile? São dois lugares diferentes. Por exemplo, você pode usar uma tonelada de compostagem na Europa, que são solos muito mais ricos do que no Chile. Aqui é um granito decomposto, tenho zero matéria orgânica, então tenho que adicionar cinco vezes mais. Há muitas coisas que não fazem sentido. Cada lugar é diferente. Então, como você pode ter uma só regra para todos? Agora, para ser justo, eles mudaram porque entenderam que, no final, havia problemas e eles não poderiam continuar assim, com uma regra mundial.
Por que seguir essa linha biodinâmica? É uma filosofia, não é uma técnica, e é uma filosofia que tem a ver com expressar o lugar e tem a ver com uma compreensão que vai além da vinha, tem a ver com as pessoas, com a floresta que está à volta, com os animais que vivem, é um lugar integrado. No final, a sustentabilidade não é apenas sobre ser certificado, porque existem certificações que são inúteis. Sustentabilidade é acreditar que, no fim, temos um papel importante na preservação de um lugar. Então, voltamos um pouco ao que eu disse antes, que as mudanças têm que ser graduais e controladas. Sempre fico com medo quando é tudo ou nada. Porque sabemos muito bem que a vida nunca é assim.
Não é uma religião... A biodinâmica tem que ser algo que contribua e, se não contribuir, você não precisa acreditar. Então foi mais ou menos isso que começou a incomodar – o discurso inconsequente das pessoas que se tornaram aiatolás da ideia. Você tem que ter cuidado com discursos extremistas. Dizer que convencional é ruim, orgânico é bom, porque é o melhor? Não.
Esse discurso muitas vezes é usado como desculpa para um vinho dito natural, mas que apresenta defeitos... Acredito que os vinhos naturais, entre aspas, devem ser definidos. Acho que os meus vinhos são bastante naturais, pois se analisarem não encontrarão um único produto químico. Então primeiro você tem que definir, mas segundo, há também uma realidade de que os vinhos viajam e, sendo um produto natural, existem elementos orgânicos que podem ter uma evolução. Você não pode mais controlar a evolução da garrafa. Se as pessoas gostam desse gosto, perfeito. Eu não julgo, mas não é o meu gosto.
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