Yes, nós temos vinhos

Preconceito, excesso de impostos, tecnologia ainda em desenvolvimento são alguns dos desafios que o vinho nacional enfrenta para se posicionar no mercado

por Silvia Mascella Rosa

Responda com sinceridade: Você torce o nariz discretamente quando lhe oferecem uma taça de vinho brasileiro? Passa rapidamente pelas gôndolas das lojas e dos supermercados onde estão os rótulos nacionais e nem se detém para olhar? Eventualmente compra uma garrafa somente para temperar alguma carne ou preparar um risoto? Se você respondeu que sim a qualquer uma dessas questões, não há necessidade de se envergonhar nem de se vangloriar. Mas é necessário dizer que você está deixando de descobrir muita coisa interessante e, de quebra, ficando de fora da evolução sem precedentes da indústria vinícola nacional.

Desde Cabral, que trouxe consigo nas caravelas os vinhos de sua pátria, passando por Brás Cubas que talvez seja o responsável por ter trazido a primeira videira, através dos vinhos espanhóis, franceses e portugueses que abasteciam o Brasil colônia, a nossa história do vinho só foi tomar rumo com a chegada maciça dos imigrantes italianos, alemães e espanhóis, no final do século XIX. Na pouca bagagem, alguns deles trouxeram as habilidades do cultivo das uvas e as técnicas da preparação dos vinhos. E, muito embora o terroir fosse desconhecido e as videiras nem sempre de uvas viníferas, elas passaram a cobrir os vales e as planícies do sul do Brasil. Essa produção tornou-se o sustento de centenas de famílias.

No entanto, passaram-se quase 100 anos para que os descendentes desses imigrantes começassem a sentir a necessidade de mudanças em seu cultivo, transformando o excesso da bem adaptada uva Isabel em vinhedos de castas européias. Na década de 70 do século passado, as empresas iniciaram uma lenta modificação após muitos anos de estagnação. “Não foi fácil, a mudança foi vagarosa e passamos por muitos altos e baixos, devidos principalmente a mudanças políticas e econômicas do país”, revela Antônio Salton, superintendente da empresa que ostenta seu sobrenome e que, há quatro anos, é líder na venda de espumantes.

Villa Francioni

Em muitos aspectos ainda não é possível dizer que a indústria nacional alcançou um bom patamar, semelhante ao de outros países do Novo Mundo que conquistaram o respeito interno e externo com seus produtos, como a Austrália e o Chile. Entretanto, seria ignorância deixar de afirmar que a modernização é estupenda, embora lenta. Aos olhos da enóloga portuguesa Marta Agoas, que trabalha na Vinibrasil (o bem sucedido projeto conjunto da Dão Sul com a Expand), no vale do rio São Francisco, muitas empresas brasileiras já estão no mesmo patamar tecnológico de qualquer boa vinícola européia. “Vim para o Brasil pela primeira vez em 2005 e pedi para voltar de vez neste ano. A mudança que percebi nesse curto espaço de tempo é extraordinária, tanto no interesse dos consumidores, quanto na movimentação da indústria em todo o país”, conta Marta, que recebe pedidos de enólogos para estudar o terroir do nordeste.

Essa movimentação à qual Marta Agoas se refere é uma questão de sobrevivência para o setor. Ela é necessária para se conseguir fazer frente à quantidade dos vinhos importados que conquistaram as prateleiras das lojas e para conquistar o consumidor com um produto de qualidade. Tanto que o Brasil passou a contar com entidades mais participativas, como a UVIBRA, a APROVALE (que conseguiu, em 2001, o selo de procedência para o Vale dos Vinhedos), a ACAVITIS (que congrega os produtores de Santa Catarina), entre outras envolvidas na busca da profissionalização e da auto-regulamentação do setor. A profissionalização abrange a seleção rigorosa de castas (com a compra de mudas no exterior, por exemplo), a aquisição de maquinário para as cantinas, a preparação de técnicos, o desenvolvimento de novos terroirs e o trabalho intenso no vinhedo, baixando, inclusive, a quantidade produzida por hectare. “Isso é uma mudança de conceito muito importante. Os produtores tiveram que diminuir sua produção por hectare de 20 toneladas para cinco toneladas, pois esse é um fator essencial para a produção de boas uvas que se tornarão bons vinhos”, explica Juarez Valduga. Por outro lado, Juarez conta que a luta pela auto-regulamentação também visa controlar desvios do setor, como alguns pequenos produtores que fazem vinhos tipo Moscatel com uvas Niágara. “Temos que trabalhar em conjunto para atingirmos o mercado fortemente, e para isso a qualidade conjunta de nossos produtos precisa estar acima de tudo”, completa o diretor da vinícola Casa Valduga, que também investe pesadamente em enoturismo como forma de aproximar o público dos vinhos brasileiros.

Entre as causas do preconceito em relação ao vinho nacional, encontramse os anos de estagnação, os produtos de qualidade inferior e a necessidade do brasileiro de se reconhecer como “cidadão do mundo”, consumindo produtos de outros países. “O brasileiro tem um valor de base de que o importado é sempre melhor. Em muitos casos – e em muitas faixas de preços –, precisamos ser mais bairristas, como fazem os argentinos e os chilenos, e consumirmos o produto nacional” afirma Jane Pizzato, filha de Plínio Pizzato.

Família Pizzato: investimentos no vinhedo

A família, que era produtora de uvas no Vale dos Vinhedos, decidiu, no final da década de 90, fazer vinhos, além de vender uvas. Com menos de 10 anos de mercado, e alguns sucessos entre suas garrafas, a Pizzato Vinhas e Vinhos já percebeu com quantos parreirais se faz um vinho de qualidade. “O investimento no vinhedo tem que ser constante para conseguirmos boas uvas, e como somos pequenos, praticamente tudo o que entra é reinvestido para aprimorar o produto”, revela Jane, responsável por desbravar o mercado do sudeste para seus vinhos.

“Temos que matar um leão de manhã e um tigre de noite para sobreviver neste mercado, temos desafios todos os dias”, admite um dos mais bem sucedidos produtores brasileiros de vinho, Fábio Miolo, cuja empresa tem parceiros no Brasil e no exterior. Para ele, o mercado brasileiro está cada vez mais profissional e competitivo e muitos produtores ainda não entenderam que, comercialmente, eles têm que estar mais ativos. “Você tem que fazer vinho bom e ao mesmo tempo cuidar de sua marca, divulgá-la, reforçá-la”, explica Miolo.

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Nesse sentido, se há um ponto em que todos os produtores são unânimes, é a questão do marketing, independentemente da diferença de volume de engarrafamento entre eles. Todos os sobrenomes de famílias, que são nomes de empresas (Salton, Miolo, Valduga, Pizzato, Dal Pizzol etc), e as novas empresas, Dezem (do Paraná), Villa Francioni (de Santa Catarina) e ViniBrasil (em Pernambuco), entre outras, sabem que no país o preconceito com o produto nacional é tão pesado quanto a carga tributária. Contra ele, só as armas do marketing. Entre elas, uma tentativa ainda frustrada de fazer o vinho entrar na categoria dos alimentos (como já é realidade em outros países), por conta de seus benefícios comprovados para a saúde. Desafortunadamente, as autoridades brasileiras ainda não se convenceram de que as pessoas que bebem vinho fino raramente são alcoólatras de mesa. Outra idéia importante é fazer uma ação conjunta para reforçar a imagem do vinho brasileiro que mais ressonância tem no mercado: o espumante. Consagrado aqui e no exterior, a qualidade dos espumantes brasileiros deixa orgulhosos os produtores e os consumidores, mas ainda falta muito.“Precisamos mudar o conceito de que espumante é só para festas de final de ano e comemorações específicas”, diz Juarez Valduga. Uma forma de fazer isso, explica Jane Pizzato, é explorando o potencial da enogastronomia brasileira: “O Brasil tem uma culinária rica e variada, vinda de múltiplas influências, isso facilita muito a harmonização com nossos vinhos tranquilos e com os espumantes” afirma.

Juarez Valduga

Mas mesmo o marketing agressivo esbarra em alguns problemas tipicamente brasileiros: “Eu costumo dizer que para cada garrafa de 750 ml de vinho, nós pagamos de impostos o equivalente a 320 ml, por conta dos tributos em cascata que incidem tanto sobre os insumos do vinho quanto sobre o produto final”, desabafa Fábio Miolo. Além disso, os produtores afirmam que há, em marcha, uma competição desleal: a enxurrada de vinhos estrangeiros de baixa qualidade com preços que os brasileiros jamais serão capazes de enfrentar com a carga de impostos. E mesmo que esse fenômeno seja autolimitante – o apreciador de vinhos pode até ser tentado a provar um vinho barato estrangeiro, mas ao perceber que o vinho não é bom, ele não o comprará mais –, em princípio, ele cria uma concorrência que o produto nacional ainda não tem cacife para enfrentar, principalmente ao levar-se em conta a decisão primária tendendo ao vinho importado. “Nosso problema não são os vinhos importados que custam mais de 25 reais por garrafa, mas sim os vinhos que custam cinco reais a garrafa. Contra eles temos que fazer divulgação de nosso produto, pois o brasileiro, apesar de preconceituoso, não é trouxa. Ele percebe que esse barato sai caro”, explica Antonio Salton.

Para que o vinho brasileiro conquiste o lugar que merece em nossas taças, é necessário que a indústria busque continuamente a evolução que refutou no passado e a inovação, coisa que alguns novos produtores, como a Villa Francioni, em Santa Catarina, já estão fazendo. “Eu estou otimista, o vinho que fazemos nesta região fria está tendo uma excelente resposta do mercado, isso me faz pensar que estamos no rumo certo, embora eu reconheça que temos algumas dificuldades no caminho”, afirma João Paulo de Freitas, proprietário da Villa Francioni. As dificuldades, que João Paulo já reconhece, resumem os desafios comuns a todos os produtores de vinhos no Brasil: racismo interno, impostos altos para compra de garrafas, rolhas, barricas e plantas, posicionamento no mercado, além da deficiência na área tecnológica. Mas mesmo ele, empresário experiente do setor de pisos e revestimentos, reconhece mais um fator positivo em comum com os demais produtores: a paixão em fazer vinhos é imensa e a soma dos prazeres é grande, mesmo frente às dificuldades.

Pupitres da Casa Valduga

Nenhuma empresa nasce grande. Da mesma forma que a vinha vai ao fundo do solo para buscar seu alimento, muitas vinícolas tiveram que se reinventar para conseguir melhorar a cada safra. E elas têm conseguido. Concursos internacionais e provas às cegas vêm atestando, ano após ano, que nossos vinhos são bons. O que falta agora é o mercado perceber isso. Ainda é difícil entender porque o brasileiro refuta tanto o vinho de sua própria terra. Os estrangeiros que aqui vivem, ou que visitam o país, têm um olhar muito diferente do nosso. “Recebemos turistas e pessoas que estão no país a negócios. Para elas, após provar a caipirinha, é essencial provar o vinho nacional, pois fazem isso em seus próprios países, principalmente os europeus. E a resposta deles ao produto brasileiro é muito boa, compram até para levar para casa”, conta o francês Guillaume Paupy, diretor de alimentos e bebidas do Hotel Grand Hyatt de São Paulo.

"Meu sonho é um dia ver o vinho brasileiro na primeira página de todas as cartas dos nossos restaurantes"
Jane Pizzato.

Outro representante de um grande país produtor que faz questão de ter vinhos brasileiros em sua carta é o italiano Vincenzo Venitucci, sócio e da La Rita all’Osteria dei Venitucci, em São Paulo, que, sem nenhum rodeio, afirma achar uma cafonice não provar vinhos brasileiros: “Não entendo por que algumas pessoas são tão pávidas diante de um copo de vinho. Basta pegar, provar e dizer se gostou ou não. No mínimo você vai se divertir”, diz com um sorriso no rosto. Basta ao mercado seguir o conselho do italiano.

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