Terroir Brasil

A safra das safras

Excepcional e histórica, safra 2020 no Brasil encanta enólogos

por Arnaldo Grizzo

“Impressionante, a gente olhava a previsão e parecia que nunca mais ia chover”. Talvez em outros países, esta frase do enólogo Edegar Scortegagna, da vinícola Luiz Argenta, em Flores da Cunha, poderia parecer ter um tom de alarmismo. Mas, na época da colheita na Serra Gaúcha, a expressão reflete um regozijo pelo excepcional clima que houve no período. “Assim você vinifica com tranquilidade, toma a decisão de colher com tranquilidade. O fruto está maduro, colhe, coisa que quase nunca acontece por aqui”, afirma.

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Sim, o clima no Rio Grande do Sul e também Santa Catarina, especialmente durante a vindima, fez com que quase todos os enólogos e produtores trabalhassem com o sentimento de estarem vivendo um momento ímpar na vitivinicultura brasileira. “Houve um índice de chuva muito baixo, inclusive causando problemas hídricos nas cidades, mas, para o vinho, foi fantástico. A safra 2005 foi muito boa, 2011 foi boa, 2018 foi boa, mas este ano impressionou em todas as variedades. Não choveu. Nos tintos houve maturação fenólica plena. Foi um ano espetacular”, comemora Flávio Zilio, enólogo da vinícola Aurora.

Os índices mais baixos de chuvas foram determinantes para amadurecer as uvas de maneira uniforme, tanto os açúcares quantos os fenóis, na maioria das regiões, e, além disso, oferecer a “segurança” de poder colher quando esses grãos atingissem a plena maturação sem medo da diluição ou podridão que a chuva pode trazer. O “clima perfeito” começou, segundo dados da Embrapa Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, ainda em novembro, com chuvas abaixo da média desde então. Dados enviados pela pesquisadora Maria Emília Borges Alves revelam ainda que as temperaturas estiveram acima da média, assim como o quociente de maturação.

Começo complicado

No entanto, se há entusiasmo com a safra agora, no começo houve, na verdade, muita preocupação. O inverno de 2019 contou com poucas horas de frio, abaixo do normal, o que comprometeu a brotação em algumas áreas e variedades. Seguido a isso, durante a floração, houve um grande volume de chuvas, dificultando a “pega dos frutos”. Tudo isso já denunciava uma quebra de produção. Produtores aguardaram a fase final, que determinaria se essas uvas teriam qualidade ou não. E aí, como já dito, ocorreu a grande virada, com um verão raramente visto no sul do país.

“A forte estiagem que começou no início de dezembro até a segunda semana de janeiro – e depois se estendeu com chuvas de pouco volume e bem distribuídas ao longo dos meses – fez com que a maturação ocorresse por completo, com uvas sadias, sem podridões, concentradas em açúcar e compostos. Foram predominantes dias de verão com temperaturas moderadas, com noites de céu claro, que favorecem um gradiente de temperatura, beneficiando a biossíntese de pigmentos (cor) e preservando a acidez”, apontou Mauro Zanus, engenheiro agrônomo da Embrapa.

Condições perfeitas em geral?

Um dos entusiastas da safra 2020 é o enólogo uruguaio Alejandro Cardoso, que trabalha em projetos em diversas regiões do sul. “Choveu muito na primavera, aí pensou que poderia complicar, mas, a partir de dezembro, começou a secar e não choveu. Com temperatura alta, as uvas foram amadurecendo. Na Serra, foi seco, mas nem tanto, caiu uma garoa, uma chuva esporádica, que mantinha o grão inchado. Depois, em janeiro, caiu a temperatura à noite, com dias batendo 30ºC e noites indo a 22ºC, 18º. Ou seja, uma maturação lenta, com uvas sadias. Na Campanha já foi muito mais seco, uma seca histórica, com muito calor”, aponta.

Quem também aponta um panorama ligeiramente diferente na Campanha Gaúcha é o enólogo português Miguel Almeida, do grupo Miolo, que, segundo apontou, passou 71 dias direto em vindima no projeto do Seival. “Foi a maior safra do Seival, com mais de 2 milhões de quilos de uvas. Anos de muita quantidade é difícil aliar qualidade, mas neste ano foi possível. Sanidade, qualidade de maturação com um verão extremamente seco e quente. É efetivamente um grande ano, se será histórico só tempo dirá. Para brancas tivemos equílibro entre açúcares e álcool. Nas tintas, um pequeno desequilíbrio para sobrematuração, mas são desafios do ano”, afirmou.

Na Serra Catarinense, o cenário visto em terras gaúchas se repetiu. “Brotação com períodos instáveis, alternando períodos secos com períodos frios e chuvosos. Floração em período frio e chuvoso. Temperaturas abaixo do normal até mudança de cor das uvas. Da mudança de cor em diante, tudo mudou, o ideal virou realidade: dias quentes, noites com temperatura amena à fria. Chuva muito abaixo do normal para o período. Em geral menor produtividade com excepcional qualidade”, resume Anderson De Césaro, enólogo da Villaggio Bassetti.

Menos, mas melhor?

“A falta de chuvas de janeiro, de certa forma, nos prejudicou em termos de quantidade, pois fez com que as uvas sofressem para se desenvolver, por conta da estiagem. Porém, em termos de qualidade, uma super maturação que, por consequência, nos agraciou com esta qualidade excêntrica”, afirma Deise Tem Pass, enóloga da Peterlongo. Ela afirma que a vinícola estima uma safra 40% menor, mas de qualidade excepcional.

Zilio, da Aurora, revela que a empresa também aguardava um safra menor: “Passamos dos 62 milhões de quilos. Havia uma previsão um pouco menor. No início se achava que a perda ia ser maior, mas não se refletiu”. Já Daniel Dalla Valle, enólogo da Casa Valduga, diz: “A nossa estimativa é que vamos ficar com 10% a menos, uma quebra não tão grande quanto se pensava nas viníferas. Mas imagino que, para as uvas americanas, houve quebra maior”. Carlos Abarzúa, da Cave Geisse, em Pinto Bandeira, afirma que algumas variedades podem ter tido baixas de 25 a 30%.

Mauro Zanus, da Embrapa, aponta: “Estima-se que a produção total da safra de uva no Rio Grande do Sul seja um pouco inferior a 2019 (que foi de 614 milhões), ficando entre 550 a 590 milhões de quilos”.

Safra histórica?

Indubitavelmente a safra 2020 no sul será lembrada. “Falamos da safra dos sonhos”, afirma De Césaro. “Para mim e acredito que para muitos outros enólogos, esta safra é única, excepcional, posso até arriscar que a melhor”, entusiasma-se Deise. “Talvez esta tenha sido a nossa grande safra”, aponta Renato Savaris, enólogo da Maximo Boschi. Diante de tamanha qualidade, ele revela que está comprando grandes quantidades de uva para suas linhas já tradicionais e também outras variedades: “Nesta safra estamos trabalhando novas variedades, além das tradicionais Merlot, Cabernet Sauvignon e Chardonnay, como Tannat e Marselan”.

“Foi um ano ímpar”, pondera Alejandro Cardoso e continua: “Este ano foi totalmente diferente e vai pesar muito nas regiões com três faixas de temperatura no verão: na Campanha, muito seco e bastante calor, na Serra com início quente e com chuvas esparsas, e Vacaria que foi mais fresco e choveu como na Serra. Vai-se notar bem essas características nos vinhos futuramente”.

“Na Serra Gaúcha, você nunca vai falar que um ano foi ruim para brancos e espumantes, mas numa grande safra é porque tudo foi bom, inclusive os tintos. Os tintos no clima seco conseguiram concentrar muito açúcar, 23, 24, 25 grau Babo (que representa a quantidade de açúcar, em peso, existente em 100 g de mosto), que não é normal, e também conseguiu concentrar cor, tanino, estrutura. Somando tudo, tivemos uma safra das melhores”, avalia Edegar Scortegagna, que afirma ainda que 2020 certamente superará a fama de 2005: “Se comparar a qualidade da safra e somar isso à ‘maturidade’ das vinícolas, esta realmente não tem igual”.

“Acho que a safra 2020 vai se equiparar com 1991. Teve outras safras excelentes, mas essa foi fora da curva, excepcional. De 1991 não tenho muitas lembranças, pois comecei a estudar, mas aquela safra ficou na história e, pelo que comento com o pessoal do interior, eles fazem uma correlação com 1991. Depois de 30 anos depois, uma safra que fica na história de novo. Naquela época, não tinha os vinhedos preparados como hoje, nem tantas vinícolas e tecnologia. Agora temos uma qualidade excepcional em um momento de produção diferente”, contextualiza Daniel Dalla Valle.

“Nos últimos 36 anos (desde que moro no Brasil) nunca tinha visto essa qualidade e sanidade. Vai ser uma grande safra para os tintos, com muito corpo, estrutura, cor, tanino. Nunca vi colher uva com tanto tempo no vinhedo. Houve grandes safras como 1991, 1999, mas como esta, nunca”, comenta Carlos Abarzúa.

Os destaques

Diante de tanta qualidade, seria possível destacar algo? “Todas variedades vieram com alta qualidade. Na Serra, destacaria a Pinot Noir, tanto para base de espumante como para tinto, e a Sauvignon Blanc, sensacionais, além de Chardonnay e Merlot. De Campos de Cima, Sauvignon Gris e Albariño, esta última estava especial. Na Campanha, Pinot, Gewürztraminer, Tempranillo e Tannat. A variedade mais constante em todo lugar foi a Merlot”, resume Alejandro Cardoso, para quem, cada vez mais poderemos ver safras desse nível no Brasil: “O clima está mudando. Temos a sorte de estar onde estamos, temos água, temos um bom diferencial térmico, devido à altitude. Este ano é fora da curva, mas acho que isso pode ser uma tendência para os próximos. Vamos começar a ter condições de mudanças climáticas reais”.

“Esmagamos Pinot com 19 graus Babo, que é muito alto, e é uma variedade que tem dificuldade de maturação na Serra. O que mais surpreende é a Merlot, tem uma expressão mesmo com o vinho ainda não está finalizado. E sabemos que é uma casta que tem intolerância a climas mais úmidos”, afirmou Flávio Zilio.

“Para nosso Merlot, que provém de vinhedos de Encruzilhada do Sul, as uvas estavam surpreendentes, não só pela maturação enológica, mas principalmente pela fenólica. Esta variedade nos proporcionou um vinho com 14,8% de álcool potencial sem nenhum tipo de intervenção. Fantástico. Estamos ansiosos para ver os resultados”, conta Deise Tem Pass.

“O Merlot do Vale dos Vinhedos é uma coisa de outro mundo, com 23 graus Babo, maturação fenólica perfeita. De uma maneira geral, os Chardonnay amadureceram bem, em Encruzilhada tem a Viognier e a Pinot... foi um ano de excelência. Este ano vai ter que se esforçar bastante para fazer vinho ruim, mesmo com quarentena – devido à epidemia de coronavírus, pode deixar o vinho na adega e, quando voltar, ele vai estar bom”, brinca Dalla Valle, que complementa: “Uva excelente, madura, taninos maduros, carga de cor, é uma safra que abre um leque para poder lançar novos produtos”.

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