O levante dos vinhateiros em Dijon de 1630 foi uma das revoltas populares mais marcantes da história da França
Arnaldo Grizzo Publicado em 11/07/2024, às 09h00
É noite do dia 27 de fevereiro de 1630. Cerca de 50 pessoas fazem algazarra no centro da cidade de Dijon, na Borgonha. Era um prenúncio do que poderia acontecer. O ambiente era tenso diante de uma reforma administrativa e fiscal aprovada pelo Cardeal Richelieu, o famoso primeiro ministro do rei Luís XIII.
No dia seguinte, viticultores, liderados por Anatoire Changenet, reúnem-se logo cedo e tocam o sino da igreja de Saint Michel convocando uma das revoltas populares mais marcantes da história francesa.
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Changenet, um vinhateiro, conhecido como “le Roy Machart”, usava uma coroa de hera e estava vestido com uma capa multicolorida, sobra do carnaval recente. Quatro bateristas e um líder, carregando uma bengala à qual estava presa uma toalha, completaram o desfile do grupo que estranhamente lembrava uma marcha militar.
Estavam acompanhados por uma multidão de mulheres e crianças e todos cantavam a plenos pulmões o refrão de uma canção popular, o “Lanturelu”, daí o nome com que ficou conhecida essa manifestação: “Révolte du Lanturlu” ou “l'Émeute des Lanturelus”.
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A palavra “Lanturlelu” é na verdade composta por "la" + "turelure", onomatopeia usada em alguns refrões de canções populares, do nome de um instrumento musical que designa uma gaita de foles, um flautim. Tornou-se o refrão de uma música que zombava de Richelieu, indicando, seja uma recusa, seja uma resposta evasiva (dizia-se: é sempre a mesma “turelure”: é sempre a mesma coisa).
Os viticultores estavam revoltados. Por um édito de junho de 1629, Richelieu decidiu impor à Borgonha, então um país de Estado, um regime administrativo diferente do que a regia desde o século XIV. Vale lembrar que, na época, o ducado da Borgonha tinha certa independência diante do poder real, elegendo representantes e sendo capaz de angariar e distribuir os impostos provinciais da forma como lhe aprouvesse.
Mas o rei Luís XIII buscava, no início do século XVII, garantir a autoridade real, a submissão fiscal (era necessário assegurar os gastos para a Guerra dos Trinta Anos) e o fortalecimento do absolutismo, em detrimento das liberdades provinciais. O rei Henrique II já havia tentado instaurar seis eleições em 1554 na Borgonha, em vão. Luís XIII queria tentar novamente.
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Em novembro de 1629, após o édito real, uma delegação com representantes dos “três estados” da Borgonha (clero, nobreza e burguesia) tentou uma representação junto ao rei, mostrando-lhe o quanto essa decisão era desvantajosa para a província e contrária aos seus privilégios, mas não teve efeito. E a tensão foi aumentando.
Os viticultores então consideraram-se os primeiros a serem afetados pelo novo edital, pois os eventuais novos impostos seriam sobre o vinho. Até então, o vinho só era tributado quando enviado para fora da Borgonha, não internamente. E isso provavelmente mudaria.
Assim, os eventos começaram em 27 de fevereiro, depois de um rumor de que a Câmara de Contas iria aprovar a reforma real e aceitar os novos eleitos.
Segundo o artigo de Mack P. Holt chamado “Culture populaire et culture politique au XVIIe siècle : l'émeute de Lanturelu à Dijon en février 1630” (Cultura popular e cultura política no século XVII: o motim de Lanturelu em Dijon em fevereiro de 1630), o pequeno grupo reunido na noite do dia 27 “dirigiu-se à rue Vannerie em direção à residência de Nicolas Gagne, tesoureiro geral da França e defensor resoluto dos novos governantes eleitos.
Os viticultores começaram por atirar pedras à sua porta enquanto gritavam que iam queimar toda a sua casa. Depois, na esquina da rua, pararam na casa de Jean Legrand, um dos juízes da Câmara de Contas, a quem lançaram as mesmas ameaças e insultos. Por fim, dirigiram-se à Place St-Michel onde cantaram e gritaram ainda mais, para terminar o desfile nas muralhas, ainda cantando, na esperança de encorajar os habitantes de outras freguesias a virem juntar-se a eles.
Embora a noite estivesse fria e chuvosa, e tivessem ficado acordados a noite toda sem dormir, por volta das cinco horas da manhã soaram os toques das igrejas de St-Michel e St-Philibert, bairros onde a maioria dos viticultores de Dijon residia.
Isso foi suficiente para alertar toda a cidade e o pequeno grupo de cinquenta pessoas rapidamente se transformou em uma multidão de cerca de 500 a 600 pessoas, com Anatoire Changenet à frente.
Todos voltaram à casa de Nicolas Gagne, na rue Vannerie, arrombaram a porta e devastaram tudo que encontraram em seu caminho. Gagne e sua família deixaram o local assim que o alerta matinal foi dado.
Ninguém poderia impedir os danos. Todas as suas roupas, tapeçarias, móveis e livros, que constituíam uma das melhores bibliotecas da Borgonha, foram transportados para o pátio exterior e queimados. A sua adega foi saqueada e o seu vinho consumido, tudo isto ao ritmo do tambor e da canção de ‘Lanturelu’. A menos de 200 metros da Câmara Municipal, o presidente da Câmara e os vereadores assistiram ao espetáculo lá de cima, horrorizados”.
Durante as horas de vandalismo, os manifestantes queimaram um retrato do rei e saquearam sete casas de notáveis, pertencentes à Câmara de Contas ou representantes do poder real.
“Por volta das onze horas da manhã, seis horas após o início da confusão, e mais de quinze horas após o início da manifestação, os capitães e tenentes finalmente conseguiram mobilizar tropas suficientes para enfrentar os desordeiros. Atacaram um grupo na rue de Paultet que estava em processo de saque da casa de Humbert de Loisie, outro juiz pertencente à Câmara de Contas. Uma salva de balas foi suficiente para matar cerca de doze manifestantes no local e ferir muitos outros. O resto do grupo fugiu. A milícia perseguiu-os até à rue St-Philibert, onde conseguiram capturar alguns deles. Alguns outros viticultores foram mortos na multidão. A ordem foi restaurada meia hora após a mobilização. Apesar de uma longa busca que durou vários dias, ninguém conseguiu pôr as mãos em Anatoire Changenet ou mesmo nos seus cúmplices mais próximos. No entanto, dois pobres bodes expiatórios foram presos, julgados e depois enforcados. Todos os outros viticultores presos foram finalmente libertados para evitar possíveis represálias. No total, sete casas e o seu conteúdo foram destruídos, vinte pessoas mortas, o dobro de feridos, e dois executados durante o motim de Lanturelu em Dijon em fevereiro de 1630.”
Luís XIII, então em visita a Troyes, foi a Dijon em 26 de abril de 1630. Os habitantes foram perdoados pelo rei, mas este impôs pesadas sanções.
“A punição pelos motins de Lanturelu foi severa e ninguém sofreu mais do que os viticultores, o prefeito e o conselho municipal. Os viticultores foram de fato expulsos tanto do corpo político como do corpo social. O rei proibiu-os de participar em futuras eleições e ordenou-lhes que abandonassem a cidade, obrigando-os a instalar-se nos subúrbios e aldeias vizinhas. No entanto, esta disposição não foi cumprida; o governador real recorreu imediatamente. Mas isto, no entanto, mostra o grau de severidade com que Changenet e o seu bando foram punidos. Quanto aos magistrados de Dijon, os seus ‘antigos direitos e privilégios’ foram significativamente reduzidos. Em vez de deixar espaço para eleições livres anuais como no passado, Luís XIII elegeria o prefeito para os próximos seis anos. Além disso, o conselho municipal seria reduzido de vinte para seis magistrados que, tal como o alcaide, seriam nomeados pelo rei”.
Contudo, o novo governador, Henrique II de Bourbon-Condé, obteve, em 26 de março de 1631, a revogação do edital de eleição de Richelieu, a restauração dos privilégios de Dijon e a eleição dos escabinos em sua forma anterior, bem como a preeminência dos “Três Estados” sobre a Câmara de Contas e o Parlamento.
Ou seja, a revolta dos vinhateiros não foi exatamente uma vitória, mas mostrou aos absolutistas o poder de mobilização das massas em uma época em que isso ainda era impensável.
Essa revolta permanece na memória popular e o lado folclórico ligado à canção permanece. No século XIX, uma peça baseada nos acontecimentos foi escrita por Eugène Fyot. E, a saber, a música dizia: “O rei, nosso senhor, Por boas razões, Que não nos atrevemos a dizer, E que mantemos em silêncio, Nos proibiu de cantar Lanturelu, Lanturlu, lanturllu, lanturlu, lanturlure”.