Entre os muitos usos incomuns do vinho na antiguidade estava de um poderoso tônico até suplemento para o sangue
por Arnaldo Grizzo
O vinho está na história da humanidade há milênios. Os primeiros textos sumérios já apontavam para a tradição de produzir a bebida a partir da uva, ou seja, muito antes da “invenção da escrita”, alguém já tinha dominado a técnica para fazer vinho.
Obviamente que, nos primórdios, o ser humano não tinha ideia de como aquele suco de uva se transformava em vinho. O processo de fermentação só foi entendido e explicado bem pouco tempo atrás, até então digamos que era tudo na base do empirismo.
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E como bem sabemos, quando não há uma explicação científica para algum fenômeno, abre-se margem para especulações. Não à toa, o vinho sempre esteve ligado aos cultos religiosos desde os tempos mais antigos, quando os deuses eram responsáveis conceder aos homens a dádiva da bebida, como Dionísio ou Baco, por exemplo.
A simbologia do vinho ultrapassa quase todas as fronteiras religiosas, indo do paganismo, ao cristianismo e além.
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O mito da criação do vinho perpassa diversas culturas, ocidentais e orientais. O uso da bebida mostrou-se muito diverso e curioso ao longo do tempo. Se hoje bebemos basicamente para desfrutar e até mesmo usufruir de suas benesses à saúde como várias pesquisas médicas já constataram, antigamente podíamos encontrar usos bem menos ortodoxos.
Na Bíblia, há muitas passagens em que o vinho é citado e o seu principal personagem, Jesus, está ligado a várias delas. Seu primeiro milagre, aliás, teria sido transformar água em vinho nas famosas “bodas de Canaã”. Mas a grande relação está na transubstanciação, ou seja, o vinho se torna o sangue de Cristo na Santa Ceia.
Mas essa história de vinho se transformar em sangue já era algo que vinha na cabeça de muitos há muito tempo. Diz-se que médicos da Grécia antiga, seguidores de Hipócrates, acreditavam que o vinho poderia, sim, transformar-se em sangue quando consumido pelo homem.
Já imaginou? Está tendo uma hemorragia? Uma taça de vinho resolveria. Brincadeiras de lado, essa ideia perdurou por muitos e muitos séculos. Tanto que um cirurgião francês medieval chamado Henri de Mondeville teria dito: “O bom vinho é o alimento mais adequado para gerar sangue e, consequentemente, para gerar carne”.
Os vinhos tintos eram, sim, vistos como substitutos do sangue. Na medicina hipocrática, incentivava-se o consumo de vinho seja após um sangramento nasal intenso, seja para distúrbios cardíacos. Ou seja, pode-se dizer que toda a pesquisa que fazemos hoje para entender a relação dos benefícios à saúde proporcionados pelo vinho tem origens bastante longínquas.
Na Idade Média, aliás, o vinho era usado para “tratar” quase tudo. Era um revigorante, um tônico. Trótula de Salerno, tido como uma das primeiras ginecologistas da história, tinha uma recomendação interessante para que as mulheres concebessem filhos homens. Para que isso ocorresse, recomendava que o marido bebesse vinho misturado com útero e vagina de coelho secos e a mulher bebesse vinho com testículo de coelho.
Sim, o vinho servia para remediar de picada de cobra até dor de cabeça, passando por catarata e reumatismo. Diz-se que um tratamento comum para enxaquecas, por exemplo, era ferver ervas em vinho e banhar a cabeça nelas durante a noite.
Já na antiguidade, além de remédio, o vinho podia ser visto como meio de alcançar certos milagres. Plínio, o Velho, por exemplo, acreditava que algumas bebidas tinham poderes mágicos.
“Há algumas propriedades milagrosas em certos vinhos. Diz-se que na Arcádia se cultiva um vinho que produz fecundidade nas mulheres e loucura nos homens"
E Plínio continuava sua história explicando que "enquanto na Acaia, e mais especialmente nas proximidades da Carínia, há um vinho que provoca o aborto; um efeito que é igualmente produzido se uma mulher em estado de gravidez só come uma uva da videira na qual é cultivada, embora no sabor não seja diferente das uvas comuns; novamente, afirma-se com segurança que aqueles que bebem o vinho de Trcezen nunca têm filhos. Thasos, diz-se, produz duas variedades de vinho com propriedades completamente opostas. Um tipo produz sono, outro impede alguém de dormir. Há também na mesma ilha uma videira conhecida como theriaca, cujo vinho e uvas são uma cura para as picadas de serpentes... Por outro lado, há na Lycia uma certa uva que se mostra adstringente ao estômago quando relaxado. O Egito também tem um vinho, conhecido como ‘ecbolas’, que é indutor de aborto”.
Além do vinho de uva, os antigos também produziam fermentados diferentes, aos quais, muitas vezes, também davam o nome de vinho. Os egípcios, por exemplo, davam muito valor ao vinho (de uva), enterrando seus faraós com centenas de jarros para que os mortos pudessem se refestelar no pós vida.
Eles também usavam um outro tipo de vinho com os cadáveres – o de palma, que era usado no ritual de limpeza interna dos corpos. Depois de retirados os órgãos, a cavidade era limpa e lavada com esse vinho e algumas especiarias. Acredita-se que isso fazia com que os corpos não cheirassem tão mal com o tempo.
Já os maias tinham o costume de usar enemas de vinho (neste caso um tipo feito da seiva fermentada de uma espécie de cacto) para se comunicar com os mortos. Diz-se que esses enemas geravam uma náusea violenta, e os vômitos eram uma parte fundamental da “purga” necessária para se aproximar da vida após a morte.
Por fim, voltando ao vinho de uva propriamente dito, em meados do século XIX, houve uma bebida muito famosa chamada “Vin Mariani”. Foi um vinho desenvolvido pelo químico Angelo Mariani, que misturou um tinto bordalês com folhas de coca moídas. Para promover seu “tônico”, ele percorreu a Europa oferecendo a celebridades e políticos.
Entre os que dizem ter apreciado a bebida estão a rainha Vitória, o escritor Émile Zola, a atriz Sarah Bernhardt, mas talvez o principal promoter de Mariani tenha sido o Papa Leão XIII. Ele chegou a dar uma medalha a Mariani e permitiu que sua imagem e comentários fossem usados nas propagandas do vinho.