Cahors tenta provar que a Malbec francesa merece tanto crédito quanto a irmã mais nova, porém mais famosa, argentina
Aguinaldo Záckia Albert Publicado em 29/03/2019, às 17h30 - Atualizado às 18h01
Originária de Bordeaux, a uva Malbec cruzou o Atlântico em 1852 e se instalou em Mendoza, Argentina. Sua adaptação às novas condições de clima e solo foi espetacular. Nesta zona de clima seco e com ampla utilização da irrigação artificial, ela se manteve à salvo da filoxera (a praga que devastou os vinhedos no fim do século XIX) e conseguiu apresentar a sua melhor expressão ali, constituindo-se hoje numa verdadeira bandeira do vinho argentino e grande sucesso no mercado mundial.
Enquanto isso, na sua Bordeaux natal, com seu caráter mais duro e tânico, ela continua desempenhando papel secundário no chamado "corte bordalês" - composição de uvas permitidas na região para a elaboração dos vinhos dessa appellation. Lá, ela é eclipsada pela Merlot, Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc e Petit Verdot. Na verdade, sua participação nessa mescla vem declinando nos últimos tempos, exceção feita à denominação de origem "Côtes de Bourg".
Existe, no entanto, outra região francesa - que já teve um tempo de muita glória - em que a Malbec reina soberana. Trata-se de Cahors, no sudoeste do país.
Abrangendo uma região que se estende de Bergerac aos Pirineus (cordilheira que separa a França da Espanha), essa porção de terra, conhecida também como Gasconha, possui a maior diversidade de castas vitivinícolas de todo o território francês. Além da Malbec - mais conhecida por Auxerrois e Côt Noir - encontram-se por lá a Tannat, a Fer Servadou, a Negrette, a Duras, a Petit Manseng, a Gros Manseng, a Mauzac e várias outras. Isso se citarmos apenas as uvas tintas, que representam 80% da produção regional.
Os vinhedos se espalham pelas subregiões de Madiran (Tannat principalmente), Tursan, Bergerac, Côtes de Bergerac, Côtes du Marmandais, Monbazillac, Gaillac, Fronton, Cahors e outras menos importantes. Por elas, correm os rios Lot, Cahors, Bergerac, Gaillac, Fronton, Puzat e Marmandais, a maioria deles tributários do estuário do rio Gironda. Seus vinhedos acompanham o caminho desses rios.
Parte do sudoeste francês e bem próxima à Bordeaux, Cahors sofreu forte influência de seu poderoso vizinho em sua dramática história. O vinhedo foi criado pelos romanos e, durante a Idade Média, seu prestígio teve expressivo crescimento. O casamento de Eleanor de Aquitânia com Henrique II, rei da Inglaterra, abriu as portas do grande mercado consumidor inglês, antes dominado pelos vinhos de Bordeaux.
No entanto, os poderosos produtores e comerciantes bordaleses, sentindo-se ameaçados, mobilizaram-se para pressionar Londres e conseguiram arrancar do rei da Inglaterra alguns privilégios exorbitantes, o que resultou num duro golpe para os produtores gascões. Além de sofrerem pesada taxação, os vinhos do sudoeste só podiam chegar à capital inglesa depois que toda a produção bordalesa estivesse vendida. Tal regra durou cinco séculos (foi interrompida apenas em três curtos períodos) e o vinho da região sentiu o golpe. Esta conduta só foi abolida em 1776, pelo liberal ministro de finanças de Luís XVI, Jacques Turgot, quando se iniciou um novo ciclo dourado dos fermentados de Cahors.
Apesar da Revolução Francesa e das guerras do Império já no século XIX, 75% do vinho da região era exportado e um terço das terras agriculturáveis eram dedicadas à vinha, que cobria a impressionante área de 40 mil hectares. A região enfrentou bem a praga do oídio (de 1852 a 1860) e a superfície plantada subiu ainda mais, chegando a 58 mil ha. Para se ter uma ideia da queda que viria mais tarde, a área do vinhedo de Cahors hoje é de apenas 4.200 ha.
Mas o território teve pior sorte ao enfrentar a filoxera no final do século XIX. Como se sabe, todos os vinhedos atacados no mundo tiveram de ser replantados, desta vez, de forma enxertada. Então, as vinhas de Malbec reagiram muito mal a esta nova situação, dando origem a fermentados medíocres, com qualidade muito abaixo da que tinha anteriormente. Apenas no final dos anos 1940, depois de muita pesquisa, chegou-se ao clone 587 da Malbec, que teve muito boa adaptação. Assim se retomou, então, sua marcha ascendente até chegarmos a 1971, quando Cahors é declarada região AOC (Appellation d'Origine Contrôlée, denominação de origem controlada).
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As normas dessa denominação determina que o vinho deve ser composto de, pelo menos, 70% de Malbec, sendo o restante feito com a tânica Tannat e a macia Merlot. A Cabernet Sauvignon e a Cabernet Franc não são permitidas. O vinho é bastante escuro e encorpado, com boa fruta e mais austero e seco do que o Malbec argentino. Dependendo da sub-região, pode ser mais leve e para consumo mais precoce, ou mais estruturado e passível de longa guarda.
Em recente degustação de Malbecs argentinos e cadurcianos, os franceses não decepcionaram, confirmando o bom momento da região. O escritor norte-americano Ernest Hemingway, que morou por longo período na França, era um fã declarado dos potentes vinhos de Cahors, que tanto se afinavam com sua personalidade.
No entanto, em termos de mercado internacional, os vinhos de Mendoza estão muito à frente. Sua área plantada é de 21 mil hectares (contra 4.200 de Cahors). A França toda tem 7 mil ha e o resto do mundo 5 mil. Favorecidos pelo critério adotado largamente no Novo Mundo de mencionar o tipo da uva em seus rótulos, além, é claro, da alta qualidade de seus vinhos, os argentinos vêm dominando o mercado.
Os franceses despertaram para isso e, contrariando a tradição, começam a mencionar no rótulo, além da Appellation d'Origine Contrôlée, o tipo da casta. Os bons resultados começam a ser sentidos. Os produtores de Cahors adotaram também a inteligente política de se ligarem a produtores argentinos na divulgação de seus produtos. Organizaram em 2008, em Cahors, as Premières Journées Internationales du Malbec. A segunda mostra aconteceu em 2009, na Argentina. O jornal francês Le Figaro noticiou recentemente que o próximo passo será um stand único para as duas regiões na próxima London Wine Trade Fair. Agora é aguardar os resultados.