Conheça como Aníbal Barca e Cartago influenciaram a vitivinicultura do Mediterrâneo

Passados dois milênios a influência de Aníbal e Cartago ainda segue presente na vitivinicultura do sul do Mediterrâneo

Arnaldo Grizzo Publicado em 09/05/2019, às 17h00 - Atualizado em 13/02/2023, às 08h00

Aníbal e seu exército quase tomaram Roma. No fim, contudo, Cartago foi devastada, mas, apesar disso, boa parte da produção de vinho do sul da Espanha e da França ainda hoje tem heranças cartaginesas -

No vinho, assim como na história, um detalhe pode significar uma mudança drástica. Um dia de chuva durante a colheita pode, por exemplo, comprometer um ano todo de clima bom e, dessa forma, todo o vinho produzido. 

Imaginemos, então, que no século III a.C., Cartago tivesse conseguido conquistar Roma durante a Segunda Guerra Púnica. Como o mundo teria evoluído sem a influência romana até os nossos dias? Apesar de o general cartaginês Aníbal Barca – filho de Amílcar Barca, comandante da Primeira Guerra Púnica – não ter invadido e dominado Roma, sua influência e também a de Cartago, cidade no norte da África, permaneceu durante muito tempo no que futuramente se tornaria o Império Romano.

Obviamente, o influxo mais direto ocorreu no campo militar, pois o cartaginês aniquilou os exércitos romanos com suas táticas – que futuramente foram incorporadas pelos generais de Roma, mas também influenciaram Napoleão e outros líderes militares. 

No entanto, apesar da comprovada genialidade em batalha, outra grande influência da passagem avassaladora de Aníbal pelo sul do Mediterrâneo ocorreu na vitivinicultura. Boa parte da produção do sul da Espanha e da França ainda hoje tem heranças cartaginesas. O avanço cartaginês. Acredita-se que a cidade de Cartago, na atual Tunísia, tenha sido criada pelos fenícios.

Reprodução da pintura “Tempestade de Neve: Aníbal e o seu Exército a Atravessar os Alpes” de William Turner. Diz-se que Aníbal só conseguiu a travessia graças ao vinho que derramou sobre rochas queimadas

 

Após perder o controle sobre as ilhas da Sardenha e de Córsega depois da Primeira Guerra Púnica, travada por seu pai, Amílcar Barca, Aníbal instalou-se nos territórios da Hispânia (atual Espanha), retomando a “Nova Cartago”, hoje Cartagena, no litoral espanhol. Prontamente, o domínio cartaginês foi da Andaluzia à Catalunha. 

Durante sua investida contra Roma, que contou com mais de 100 mil homens e valeu-se de elefantes, ele atravessou a Gália chegando até o Alpes – que os romanos julgavam intransponíveis – especialmente durante o inverno. Segundo historiadores romanos, havia uma lei cartaginesa que proibia o vinho para os soldados, assim como para os escravos, para os magistrados durante o exercício da função, para os comandantes de navios e também para todas as pessoas antes de realizarem um ato sexual.

A população chegou a ser descrita como “sóbria e frugal”. Não se deve esquecer, porém, que Cartago sofreu grande influência helenística e cultivava o hábito de beber vinhos gregos, além dos seus próprios. No entanto, sabe-se que o vinho foi fundamental para o avanço do exército de Aníbal. 

Na época, consumir água “pura” era perigoso devido ao risco de contaminação, portanto, o vinho era a alternativa para que os soldados não ficassem doentes. No lombo dos cavalos e dos elefantes que atravessavam as terras inimigas, os homens de Aníbal levavam consigo grandes quantidades de vinho de todos os tipos e lugares, fossem da Grécia, da Campania, da Cantábria etc. 

Acredita-se ainda que a travessia dos Alpes só tenha sido possível graças ao vinho. Diante de passagens estreitas e congeladas, bloqueadas por grandes rochas, Aníbal teria ateado fogo sobre as pedras e depois derramado vinho (alguns dizem que era vinagre) para que elas se tornassem mais frágeis e pudessem ser facilmente quebradas por seus soldados.

Legado para a vitivinicultura

 

Apesar de os relatos sobre os costumes cartagineses serem poucos e terem desaparecido (Roma aniquilou Cartago ao final das Guerras Púnicas), acredita-se que essa passagem do exército de Aníbal pelo sul do Mediterrâneo tenha deixado um grande legado para a vitivinicultura. 

Alguns dizem que o general cartaginês cultivava suas próprias vinhas e incentivou esse hábito pelos locais por onde passou, especialmente no sul do Rhône, Languedoc-Roussillon e norte da Itália, especialmente no Vale de Aosta. Os cartagineses eram famosos por produzir um vinho fortificado no estilo de Jerez, que os romanos classificavam como “passum”, feito com uvas parcialmente secas.

Aliás, acredita-se que os vinhos de estilo passum tenham ficado famosos no Império Romano após serem trazidos de Cartago para Roma. Uma das evidências disso é que Columella – o mais importante autor romano sobre tratados de agronomia – tenha atribuído a Mago, famoso agrônomo cartaginês, uma de suas receitas de passum: 

“Colher os grãos muito maduros. Empurrar no solo, a uma distância de quatro pés, garfos que estão ligados com varas; colocar sobre as palhetas que expõem as uvas ao sol; cobrir uma noite para que o orvalho não molhe. Quando secos, coloque os grãos em um frasco; adicione o mosto, coloque-o em uma cesta, pressione e recolha o líquido. Em seguida, pise adicionando mosto fresco feito com outras uvas que foram deixadas ao sol por três dias. Misture bem, coloque na prensa. Coloque o líquido produzido por essa segunda prensa imediatamente em vasos tipo alaúde para que ele não se torne amargo. Então, depois de 30 dias, quando a fermentação cessar, clarifique em outros vasos”.

Mago consolidou o conhecimento vitícola de seu tempo e escreveu 28 volumes sobre agricultura. Em seus escritos, ele detalha a influência da topografia na vinha e chega a recomendar que se usem as encostas de face norte das colinas para as plantações, assim as videiras ficariam protegidas do forte sol da África. 

Seus estudos eram tão relevantes que o senado romano decretou que sua obra fosse traduzida para o latim. Quando Roma destruiu Cartago, este foi um dos poucos livros salvos na biblioteca da cidade. Contudo, hoje não há resquícios das obras de Mago e tampouco de sua tradução, apenas citações em obras de outros autores gregos e romanos.

Aníbal sobreviveu

Os vinhos de estilo PASSUM ficaram famosos no Império Romano após serem trazidos de Cartago – pintura Batalha de Zama

Aníbal acabou derrotado por Cipião Africano na Batalha de Zama. Anos depois, exilado, o general cartaginês morreu. As causas da morte são discutidas até hoje, sendo a mais provável um suicídio por envenenamento para não cair nas mãos de seus inimigos. No entanto, mesmo após sua morte, sua “sombra” continuou a causar medo entre os romanos. A frase latina “Hannibal ante portas” seguiu ecoando pela cidade toda vez que havia algum perigo iminente e entrou para a história. 

Ainda hoje, as referências a Aníbal e aos cartagineses são vastas em todos os territórios por onde ele passou com seu exército. No sul da Itália, na Puglia, há até mesmo uma vinícola chamada Tenuta Annibale, que produz rótulos que remetem à história cartaginesa. No entanto, há diversas homenagens ao conquistador de Cartago, com rótulos de vinícolas na Úmbria, Calábria, Toscana etc. Até mesmo nos Estados Unidos, há a Barca Wines, fundada por supostos descendentes de Aníbal. Assim, sua lenda continua viva.

* Texto originalmente publicado em maio de 2019 e republicado após atualização.

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