O ritual milenar de beber juntos transformou a história da humanidade e moldou a nossa cultura ocidental
Arnaldo Grizzo Publicado em 08/07/2024, às 12h00
Na Grécia antiga, as refeições eram divididas em duas fases: primeiro, alimentos sólidos como cereais e carnes; depois, a segunda parte do banquete, o famoso "simposion". Este evento social helênico era mais do que apenas beber vinho – era uma oportunidade para debates, celebrações e entretenimento.
Realizados nos aposentos masculinos, os simpósios reuniam aristocratas para discussões filosóficas, jogos e música, o que deu origem inclusive a uma das obras primas da humanidade, a República, de Platão. Com o tempo, essa tradição evoluiu, influenciando os banquetes etruscos e romanos, e moldando a cultura das reuniões sociais e intelectuais que perduram até hoje.
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Na Grécia o vinho era diluído em água em grandes crateras (vasos), em proporções debatidas entre os convivas. Após limparem as mesas dos restos da refeição, copos e jarros entravam em cena. Cada indivíduo se preparava, lavando as mãos, aplicando perfumes e adornando a cabeça com uma coroa.
O simpósio grego era uma instituição social helênica fundamental. Era um fórum para os descendentes de famílias respeitadas debaterem, conspirarem, se gabarem ou simplesmente se divertirem com os outros. Eles eram frequentemente realizados para celebrar a introdução dos jovens na sociedade. Também eram organizados por aristocratas para comemorar ocasiões especiais, como vitórias em competições atléticas ou poéticas.
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Os simpósios geralmente eram realizados no andrōn, aposentos masculinos da casa. Os participantes, ou “simposiastas”, se reclinavam em divãs almofadados dispostos contra as três paredes do quarto, longe da porta. Dependendo da ocasião, o encontro poderia incluir jogos, músicas, com escravos executando várias atividades de entretenimento.
O simpósio mais famoso de todos, descrito no diálogo homônimo (Συμπόσιον, traduzido como Banquete ou Simpósio) de Platão, foi organizado pelo poeta Agatão por ocasião de sua primeira vitória no concurso teatral de Dionísio de 416 a.C. Segundo o relato de Platão, a celebração foi ofuscada pela entrada inesperada do orgulho da cidade, o jovem Alcibíades, entrando bêbado e quase nu, acabando de sair de outro simposion.
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O anfitrião do evento, chamado simposiarca, tinha a responsabilidade de garantir o bom andamento da festa, promovendo harmonia e encorajando a elevação do espírito coletivo. Ele incentivava os convivas a declamar poemas, tocar e cantar músicas, consumir bebidas e se entreter. O simpósio representava não apenas uma prática social, mas também um ritual em torno do qual se erigia parte da identidade cultural grega.
Participar de um banquete era um indicador de pertencimento à elite aristocrática. Para ser respeitado pelos demais e ser visto como um indivíduo culto, era crucial saber se comportar adequadamente. Vale ressaltar que, com exceção das hetairas (cortesãs ou prostitutas), as mulheres não eram admitidas nesses eventos.
O simposiarca também decidia quão “forte” seria o vinho, dependendo se discussões sérias ou indulgência sensual estavam iminentes. Vale lembrar que gregos e romanos costumavam servir o vinho misturado com água, pois beber vinho puro era considerado um hábito dos povos bárbaros. Em um fragmento de sua peça “Semele ou Dionísio”, Eubulus descreve o consumo adequado e impróprio:
“Para os homens sensíveis preparo apenas três vasos: um para a saúde (que bebem primeiro), o segundo para o amor e o prazer, e o terceiro para o sono. Depois que o terceiro é drenado, os sábios vão para casa. O quarto vaso não é mais meu – pertence ao mau comportamento; o quinto é para gritar; o sexto é para grosserias e insultos; o sétimo é para lutas; o oitavo é por quebrar móveis; o nono é para depressão; o décimo é para a loucura e a inconsciência”. O simposiarca, portanto, deveria evitar que as festividades saíssem do controle, mas isso nem sempre ocorria.
Um dos entretenimentos dos simpósios era um jogo chamado “cottabe”, amplamente difundido entre os séculos VI e IV a.C. Era um jogo erótico popular nos banquetes da época e, além disso, era considerado um tipo de jogo de destreza. Os participantes lançavam, com um gesto preciso – braço estendido e pulso flexionado –, as últimas gotas de vinho de suas taças em direção a um recipiente chamado cottabe, posicionado no centro dos convivas. Era essencial que o líquido atingisse o alvo produzindo o máximo de ruído possível.
O ato de lançar era dedicado a uma pessoa presente, seja um jovem ou uma hetaira, cujo nome o jogador mencionava ao arremessar as gotas de vinho. Alcançar o alvo significava expressar seu amor por ela e demonstrar seu desejo.
Um detalhe curioso: a expressão “In vino veritas” é atribuída à obra de Atenágoras de Náucratis (séculos II-III d.C.), intitulada “Deipnosophistae”, também conhecida como “O Banquete dos Sofistas” ou “O Banquete dos Homens Sábios”. Neste livro, os personagens, convivas eruditos do banquete, discorrem sobre gastronomia, utensílios de mesa e etiqueta à mesa, fazendo uso de citações de obras mais antigas para ilustrar seus pontos de vista.
A tradição dos simpósios permaneceu e evoluiu na civilização antiga. Na região da Etrúria, as vinhas prosperavam e a descoberta de numerosas ânforas atesta que o vinho produzido pelos etruscos era exportado por todo o Mediterrâneo.
A partir do século VIII a.C., os banquetes etruscos, influenciados pela cultura grega, eram organizados pelos nobres. Essas celebrações eram altamente cerimoniais, embaladas pelo som de flautas ou liras, onde homens e mulheres se reuniam para degustar o vinho servido por escravos.
Essas festividades ostentavam opulência. Os utensílios para servir o vinho eram trabalhados em metais preciosos. O vinho, armazenado em vasos ditos pansus ou stamnoi, era diluído com água em grandes panelas (patera), vasos ou caldeirões (lebès), e então disposto no centro da festa. Daí, era retirado com conchas (simpula) para ser transferido das jarras (oenochoés) para as taças individuais.
A partir do século II a.C., o consumo de vinho se popularizou entre os romanos, mas os banquetes, conhecidos como convivia, permaneceram reservados às classes privilegiadas. Para a aristocracia romana, os convivia eram uma forma de lazer. Ao contrário do simposion grego, o vinho era consumido durante toda a refeição, geralmente misturado com água, podendo ser servido quente ou frio conforme a preferência dos convidados.
Os banquetes ofereciam um ambiente de relaxamento, onde os prazeres sensoriais, como a comida e a bebida, acompanhavam conversas espirituosas, permitindo aos anfitriões demonstrar sua cultura e erudição.
Diferentemente dos banquetes gregos, onde havia certa igualdade, nos convivia romanos as hierarquias sociais eram claramente marcadas. Eles também eram caracterizados pelo consumo de vinhos nobres, muitas vezes importados, especialmente os vinhos gregos como Chio e Lesbos, considerados de alta qualidade.
Somente a partir do último quarto do século II a.C. é que os vinhos italianos começaram a ser mais valorizados. A menção mais antiga reconhecida a um Grand Cru que aparece em uma ânfora é a de um “Falerno”, colhido em 102 a.C.
Além dos banquetes da antiguidade, vale lembrar dos bacanais, as festas orgiásticas associadas ao culto de Baco, em que a embriaguez e os excessos eram considerados características essenciais, refletindo os comportamentos atribuídos ao próprio deus e a seu séquito.
Além disso, o termo também se referia a rituais específicos de iniciação nos mistérios dionisíacos, originalmente importados da Grécia para a Etrúria e posteriormente inseridos em Roma.
Inicialmente, essas iniciações eram realizadas durante o dia e exclusivamente para mulheres, ocorrendo três vezes por ano. No entanto, uma sacerdotisa chamada Paculla Annia, originária da Campânia, introduziu modificações significativas ao trazer esses rituais para Roma. Sob sua influência, as cerimônias passaram a ser realizadas à noite e cinco vezes por mês, abertas também aos homens, com todos os participantes obrigados ao sigilo.
Com o tempo, os bacanais se transformaram em verdadeiras orgias, onde todos os tipos de excessos e crimes eram tolerados. De acordo com relatos de Tito Lívio, nenhuma ação era considerada moralmente proibida durante esses eventos. Os “iniciados” que se recusavam a participar ou não se submetiam às práticas exigidas eram frequentemente punidos com a morte ou simplesmente desapareciam.
Diante de tantos excessos, contudo, em 186 a.C., o senado romano promulgou uma lei que proibia os bacanais: “E se houver alguém que ouse atuar em contrário ao que está escrito acima, será condenado à pena de morte. Para efeitos de justiça, o Senado decreta que esta decisão deve ser gravada em placa de bronze, e ordena que uma cópia em tábua seja colocada onde mais possa ser fácil de ler e ser conhecida. Faça saber as Bacanais, se houver, excetuando assuntos sagrados, como está estabelecido, que sejam dissolvidas dentro de um prazo de dez dias a contar da data da entrega desta notificação.”
Passando para a Idade Média, os banquetes constituíam um ponto alto da vida social. Os nobres se reuniam em festas suntuosas, abundantes e concorridas, onde não apenas se desfrutava de boa comida em excelente companhia, mas também se apreciava música, teatro e se exaltava o anfitrião, meticuloso em destacar cada detalhe para ressaltar seu status.
Qualquer motivo era razão para celebrar um festim cortesão, seja um evento político, como uma vitória militar ou a visita de um dignitário ilustre, ou eventos familiares, como casamentos, nascimentos ou batizados, até mesmo funerais, além das festas religiosas.
Dentro de uma grande sala, os convivas se distribuíam conforme a hierarquia. O anfitrião ocupava uma mesa exclusiva, posicionada de forma mais elevada em relação às demais, coberta por um dossel e iluminada de forma especial. Os convidados ficavam dos dois lados da mesa, com os de maior status mais próximos ao anfitrião. Geralmente, sentavam-se apenas de um lado da mesa, em bancos cobertos com almofadas ou tapetes, tendo a comida disposta à sua frente.
Os banquetes de grande porte consistiam em vários serviços, geralmente entre três ou quatro, embora haja registros na Itália de eventos com até dez serviços. Cada serviço era composto por uma variedade de pratos dispostos na mesa, permitindo que cada comensal escolhesse o que desejava.
O desejo de ostentação por parte do anfitrião levava a uma profusão de pratos, destacando-se o famoso banquete do faisão oferecido pelo duque de Borgonha em 1454, em Lille, no qual cada serviço consistia em 44 pratos. Em relação ao vinho, era costume que fosse servido pelos criados sempre que os convidados solicitassem, ou seja, não havia jarras à mesa.
Como se vê, essa tradição de reuniões gastronômicas onde se discutiam diversos tópicos evoluiu ao longo dos séculos. Durante o Iluminismo, por exemplo, eram comuns os ditos “salões”, que desempenharam um papel crucial como espaços de encontro intelectual e debate de ideias.
Os salões eram frequentemente organizados por mulheres influentes da alta sociedade, conhecidas como “salonnières”, que recebiam filósofos, escritores, cientistas e artistas em suas residências para discutir questões políticas, sociais, culturais e filosóficas.
“Não sei se meus vinhos devem sua reputação aos meus livros ou meus livros a meus vinhos”, chegou a se questionar em uma ocasião um dos mais proeminentes nomes do iluminismo, Charles-Louis de Secondat, também conhecido como Barão de Montesquieu.
Esses encontros perduraram e deram origem também aos cafés e salões literários nos séculos posteriores. Nesses locais encontravam-se artistas, escritores e pensadores em um ambiente propício para discussões sobre literatura, arte, política, filosofia. Diversos movimentos artísticos surgiram em meio a esses encontros sempre regados a comida e, obviamente, vinho.
Atualmente, contudo, um simpósio é um evento acadêmico ou científico no qual especialistas se reúnem para discutir e apresentar trabalhos sobre um determinado tema ou assunto de interesse comum. Hoje em dia, os simpósios assumiram uma forma mais formal e estruturada, geralmente realizados em locais como universidades, centros de pesquisa, conferências acadêmicas ou eventos científicos.
Mas, até hoje, reunir-se ao redor da boa mesa e compartilhar o vinho é uma atividade social apreciada, mesmo que as discussões nem sempre não sejam tão intelectualizadas quanto às dos primeiros simpósios gregos.
* Colaborou Edmundo Ubiratan