Com a maior ressaca da história, o vinho quase comprometeu a revolução russa em 1917
por Arnaldo Grizzo
É quase impossível compreender o contexto social da Revolução Russa em 1917, a famosa Revolução de Outubro, que deu origem ao golpe de Estado que levou a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e perdurou até 1991.
A Revolução Russa é fruto de uma intrincada junção de peças socioculturais, econômicas, políticas etc. que curiosamente quase foi comprometida devido ao vinho e outras bebidas alcoólicas. Historiadores chegam a dizer que, em certo momento, Petrogrado (atual São Petersburgo e, na época, capital russa) foi palco da maior ressaca da história. Diante de tanta desordem social, os bolcheviques precisaram intervir duramente para garantir o sucesso da revolução.
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O período e as nuances sociológicas são tão conturbados que fica difícil entender como exatamente aquele povo majoritariamente camponês e sob o regime do Czarado da Rússia, uma monarquia autocrata foi capaz de se insurgir e, apesar das inúmeras diferenças de opinião, chegar ao final da guerra civil com uma nova república, controlada por um novo tipo de visão e que se tornou uma potência global que influenciaria o mundo, mas criou um governo ainda mais tirânico.
Não bastassem as milhares de peças desse quebra-cabeças sociopolítico, a dita Revolução de Outubro torna-se ainda mais complicada de compreender quando pensamos que ela, na verdade, ocorreu em novembro. Sim, na época, a Rússia do Czar Nicolau II ainda adotava o calendário Juliano, abandonado no ano seguinte em favor do Gregoriano.
A Rússia foi um dos últimos países do mundo a deixar o antigo calendário instituído no período Romano, por Júlio César. Mas, enfim, considera-se o início da revolução no dia 25 de outubro de 1917, que corresponde ao dia 7 de novembro no calendário Gregoriano.
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Na época, não só os russos, mas toda a Europa estava em polvorosa, com seus exércitos lutando na sangrenta Primeira Guerra Mundial. O contingente russo, por sinal, estava indo de mal a pior, o que acabou forçando, de certa forma, a abdicação do Czar ainda em março de 1917 e, em seguida, todos os eventos revolucionários que viriam.
Nos meses seguintes, mesmo já com um governo provisório, a tensão continuou crescendo entre as massas de proletários e camponeses, que não aceitavam mais qualquer tipo de controle das antigas oligarquias e setores patronais.
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Foi assim que os bolcheviques (a facção mais acirrada do Partido Socialista Revolucionário), liderados por Vladimir Ilyich Ulyanov (Lenin), e Leon Trótski, conseguiram assumir o comando das ações, instigando a insurreição proletária, que, ao final, levou à revolução em novembro. No entanto, mesmo entre os grupos socialistas não havia consenso.
Muitos não queriam derrubar o governo provisório liderado por Alexander Fyodorovich Kerensky, um socialista moderado, mas visto pelos bolcheviques como alguém que estava atrasando a verdadeira revolução e trabalhando em favor das antigas elites. Apesar das divergências, no dia 7 de novembro, os bolcheviques ordenaram a dissolução do governo de Kerensky e cercaram o Palácio de Inverno, sua sede em Petrogrado.
Há relatos divergentes sobre o que ocorreu logo após a entrada da Guarda Vermelha no suntuoso Palácio de Inverno. Há quem diga que a sede imperial foi pilhada e devastada de cima a baixo, com quadros sendo furados com as pontas das baionetas, louças chinesas quebradas, lustres e cristais esmigalhados no chão. Sendo que o pior de tudo viria quando os soldados descobriram a magnífica adega de Nicolau II, considerada a maior do mundo.
O antigo palácio dos czares logo foi sitiado pelos guardas vermelhos – a milícia bolchevique. Kerensky já havia partido e poucos soldados leais (entre eles cossacos e até mesmo um batalhão de 137 mulheres) ficaram para guardar o local.
A tomada do palácio foi rápida, já que o lugar estava sob mira dos canhões do cruzador Aurora, estacionado nas águas do rio Neva (a sede do governo fica às margens do rio), e da fortaleza de Pedro e Paulo, na outra margem.
Contudo, há quem garanta que o saque foi contido ao máximo pelos próprios revolucionários. Em seu clássico “10 dias que abalaram o mundo”, John Reed, o repórter americano presente durante os eventos, escreveu que viu os Guardas Vermelhos se debruçarem sobre caixas empilhadas na adega, tentando abri-las a todo custo dando coronhadas. Nelas haviam tapetes, linho, porcelana, cristais etc.
Segundo ele, a pilhagem estava apenas começando quando alguém gritou: “Camaradas! Não toquem em nada! Não levem nada! Isso é propriedade do povo”! Em seguida, diversos homens obrigaram os saqueadores a devolver o que havia sido pego enquanto alguns montavam guarda para proteger os pertences do palácio contra a pilhagem.
Nos corredores ouviam-se brados de “Disciplina revolucionária”! Por fim, com a ordem já estabelecida, um guarda gritou: “Liberem o palácio! Vamos, camaradas, vamos mostrar que não somos ladrões e bandidos. Todos para fora do palácio, exceto os comissários, até que as sentinelas estejam a postos”.
No entanto, mesmo que os soldados tenham resistido à tentação de saquear os tesouros dos czares em um primeiro momento, sabe-se que, no fim do mês, essa postura “sóbria” havia mudado. Segundo Reed, no final de novembro, com a revolução já em andamento, ocorreram diversas revoltas, insubordinações e outros problemas – além dos opositores ao novo regime.
Um deles foram os “pogroms” do vinho – a pilhagem de depósitos de vinho, a começar pelas adegas do Palácio de Inverno. Pogrom é uma palavra russa para ataques violentos. O termo inicialmente foi usado para apontar massacres contra judeus, mas depois serviu para designar insurreições brutais contra determinados grupos de pessoas. Acredita-se que os “pogroms do vinho” tenham sido estimulados por forças contrarrevolucionárias que distribuíam mapas mostrando a localização de estoques de bebida entre os regimentos.
Diz-se que os soldados logo entraram na adega subterrânea de Nicolau II e lá encontraram um vasto suprimento de seu vinho favorito, o Château d’Yquem da consagrada safra de 1847, além de grandes quantidades de vodca, que foram “contrabandeadas”.
Ao todo, estima-se que a adega imperial valia na época mais de US$ 5 milhões (cerca de US$ 100 milhões atualmente). Mas o Palácio de Inverno foi apenas um dos locais saqueados. Petrogrado estava repleta de palácios com adegas cheias, alvos fáceis para saqueadores beberrões.
No começo, os comissários bolcheviques pediram para seus camaradas que parassem com a pilhagem. Contudo, a desordem apenas aumentou, dando vazão a verdadeiras batalhas entre soldados e guardas vermelhos. Em pouco tempo, os bolcheviques perceberam que não eram capazes de controlar a situação, pois cada destacamento da Guarda Vermelha designada para impedir os saques logo ficava bêbado.
Assim, eles tentaram inundar as adegas do Palácio de Inverno ou mesmo murá-las. Ainda assim, a população derrubava as barreiras. Diz-se que os bolcheviques tentaram até canalizar o vinho para fora da adega, deixando-o correr pelo Neva, mas encontraram quem ficasse em volta dos drenos esperando a bebida sair. Depois, pensaram em explodir o lugar, mas isso iria danificar o palácio. Por fim, sugeriram exportar a bebida para a Suécia. Foi somente com a lei marcial, em dezembro de 1917, que a situação pôde ser controlada.
Historiadores chegam a afirmar que o caos causado pelos “pogroms do vinho” matou mais russos do que as batalhas contra o governo provisório. Para controlar a multidão, o Comitê Militar Revolucionário, liderado por Trótski, declarou estado de sítio na cidade, autorizando companhias de guardas a abrir fogo, sem aviso, contra qualquer tentativa de pilhagem.
Antes disso, Trótski teria sugerido jogar todos os estoques de vinho e vodca de Petrogrado no Neva, sem cerimônia. Além disso, criou-se o Comitê para o Combate à Bebida, liderado por Vladimir Bonch-Bruevich, além de um Comitê contra a Sabotagem e Combate à Contrarrevolução, sob liderança de Felix Dzerzhinsky – um dos responsáveis pela intensa repressão política que daria origem ao período de “Terror Vermelho”, com prisões e execuções em massa.
A cargo do serviço de manutenção da ordem social estavam basicamente os marinheiros de Kronstadt, “flor e orgulho das forças revolucionárias”, segundo Trótski, pois tinham uma disciplina de ferro. Ou seja, além de verdadeiramente guardarem as adegas sem delas dispor, abriam fogo impiedosamente contra os desordeiros. Muitos foram mortos.
As adegas do Palácio de Inverno chegaram a ser inundadas em um primeiro momento, mas depois as bebidas foram transferidas para Kronstadt (cidade próxima a Petrogrado) e destruídas. Comitês especiais destruíram outros depósitos pela cidade usando machados e dinamites. Culpados de distribuição, venda e aquisição de bebida alcoólica eram imediatamente presos e submetidos às mais severas punições.
Segundo historiadores, em janeiro, “Petrogrado, talvez com a maior ressaca da história, finalmente acordou e voltou a ter ordem”. Depois disso, seguiu-se um período de “sobriedade” em toda a Rússia, quando todas as pessoas envolvidas com a produção ou distribuição de bebidas (agora sob controle estatal) eram vistas como inimigas do estado.
Lenin chegou a dizer: “Um comunista modelo é um abstêmio, um estado modelo não negocia com álcool”.
O gosto (e o abuso) dos russos pela bebida já era bem conhecido, inclusive por seus governantes, talvez por isso os bolcheviques tenham sido tão duros na repressão do consumo.
Em 1904, durante a guerra contra o Japão, credita-se muito da derrota russa à bebedeira desenfreada das tropas. Há relatos de que, em seu caminho para o front, os batalhões saqueavam lojas de bebidas e restaurantes. “Quem derrotou os russos? Os japoneses não conquistaram, mas o álcool triunfou”, chegou a afirmar um correspondente britânico na época.
Esse fato certamente motivou o Czar Nicolau II a fechar todas as lojas e cortar as “rações” de bebidas para as tropas quando a Rússia entrou na Primeira Guerra Mundial. Com isso, ele queria melhorar a efetividade de seu exército. No entanto, a medida serviu para ajudar a derrubar seu governo.
A receita com impostos caiu em um terço, os camponeses passaram a destilar vodca com os grãos excedentes (antes vendidos a preços mínimos), o que fez com que a produção de pães diminuísse e, por falta de recursos, houvessem deserções em massa de soldados, enfim, uma série de eventos que levou à Revolução de 1917.