Governo paranoico: Domiciano emite edital que proíbe plantio de novas vinhas

Decreto polêmico para conter expansão das vinhas na Roma Antiga criado por Domiciano impactou produção de vinho

Arnaldo Grizzo Publicado em 31/07/2024, às 12h00

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O imperador Domiciano, o último dos "12 Césares" de Suetônio, é conhecido por seu governo tirânico e paranoico. Em meio à sua perseguição implacável contra supostos traidores, Domiciano emitiu um decreto em 92 d.C. que proibiu o plantio de novas vinhas na Itália e ordenou a destruição de metade das vinhas nas províncias.

Este édito, resultante de uma colheita abundante de uvas e escassez de grãos, visava conter a expansão das vinhas e proteger a produção de trigo. A história revela como a política imperial moldou o comércio e a agricultura do vinho na Roma Antiga.

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“Ele se tornou objeto de terror e ódio para todos, mas foi finalmente derrubado por uma conspiração de seus amigos e libertos favoritos, da qual sua esposa também tinha conhecimento. Há muito que ele tivera uma premonição do último ano e dia da sua vida, e até mesmo da hora e forma da sua morte. [...] Portanto, ele estava sempre tímido e preocupado, e ficava extremamente inquieto até mesmo com as menores suspeitas. Pensa-se que nada teve maior efeito em induzi-lo a ignorar a sua proclamação sobre o corte das vinhas do que a circulação de notas contendo as seguintes linhas: ‘Roa minha raiz, e você o fará; mesmo assim terei suco em abundância, Para derramar sobre ti, ó bode, quando estiveres no altar”.

A narrativa de Suetônio sobre a vida do imperador Domiciano, o último dos “12 Césares”, findando na verdade uma dinastia chamada de Flaviana, não é nem um pouco lisonjeira.

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Esse historiador fez questão de apontar todos os defeitos de Domiciano, especialmente as falhas de caráter, mostrando-o como um governante tirânico e paranoico com a questão de traições, julgando pessoas sem provas, censurando e condenando a torto e a direito quem ele bem entendesse para tentar manter o controle em suas mãos.

Até que, de tão odiado, acabou morto em uma conspiração de pessoas próximas, com mostra a narração de Suetônio no começo deste artigo. 

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Esse pequeno trecho retirado do livro “A vida dos doze Césares”, dá uma pista ainda de outro detalhe da vida de Domiciano que impactou diretamente no vinho da época. No ano de 92 da era cristã, ele baixou um decreto curioso.

“Certa vez, por ocasião de uma abundante colheita de uvas, acompanhada de escassez de grãos, pensando que os campos estavam negligenciados devido à demasiada atenção às vinhas, ele fez um decreto proibindo qualquer pessoa de plantar mais vinhas na Itália e ordenando que as vinhas nas províncias fossem destruídas ou, no máximo, metade delas permanecesse de pé; mas ele não persistiu em executar a medida”, conta Suetônio.

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De acordo com alguns acadêmicos, a promulgação do édito surgiu em um contexto de estagnação no comércio de vinho. Especificamente, os patrícios romanos, que eram grandes produtores de vinho, buscavam evitar a competição externa. Havia uma clara intenção protecionista, como evidenciado por Cícero em De Re Pubblica (55-51 a.C.): “Não permitimos que os povos transalpinos cultivem a oliveira e a vinha, para que nossa olivicultura e viticultura continuem superiores”.

Outros estudiosos sugerem que o édito também foi uma medida para conter a expansão descontrolada das vinhas na época, visando evitar possíveis crises de escassez de trigo.

Sem efeito?

Uma litografia francesa do século XIX, presente em “Les mervielles de industrie moderne” de Louis Figueir (1875), retrata de forma idealizada a suposta destruição das vinhas na Gália por centuriões romanos, seguindo o édito de Domiciano. No entanto, não há certeza se tal destruição de fato ocorreu. 

Várias explicações foram apresentadas a respeito deste decreto: para favorecer os grandes produtores que o apoiavam, o Imperador teria tentado proteger o vinho italiano e manter preços elevados face à concorrência dos vinhos produzidos nas províncias; mas a proibição também pode estar ligada à preocupação do governo com a escassez de trigo, devido à conversão de um grande número de terras cultiváveis em vinhas mais rentáveis, e a uma atitude protecionista em relação aos vinhos italianos, após a erupção do Vesúvio em 79 que erradicou todos os vinhedos da região de Pompéia, uma importante região produtora. 

Confrontado com a impopularidade do seu decreto e os protestos que se seguiram, o imperador Domiciano decidiu não aplicá-lo com rigor, especialmente porque a colheita do trigo voltou ao normal no ano seguinte. O que se sabe é que houve uma interrupção na viticultura europeia, que persistiu até a revogação do édito por Probo, no final do século III. 

Antes mesmo de Probo, o declínio da viticultura na Itália fez com que vários imperadores trabalhassem para reverter esse édito. Por exemplo, por volta de 275 d.C., Aureliano distribuiu escravos gratuitamente aos proprietários de terras, desde a Etrúria até os Alpes Marítimos, incentivando-os a expandir suas vinhas. 

A viticultura na Itália estava em acentuada decadência, em parte devido à opressão burocrática e aos impostos cada vez mais esmagadores. Cassiodoro, escritor romano, relata que os produtores chegaram ao extremo de cortar suas próprias vinhas para evitar encargos fiscais insustentáveis. No Código Teodosiano (413 d.C.), é registrado que aqueles que recorriam ao corte das vinhas para fugir das autoridades fiscais eram sujeitos à pena de morte e ao confisco de seus bens. “Se alguém cortar com uma foice uma videira blasfema...”

Fim da proibição

Marco Aurélio Probo, imperador romano de 276 a 282, destacou-se como um general habilidoso e um administrador dedicado. Durante seus seis anos de reinado, ele promoveu a prosperidade nas províncias do interior e enfrentou com sucesso inúmeras invasões de tribos bárbaras em várias frentes. 

Registros históricos revelam que, por volta de 280 d.C., Probo empreendeu a plantação de vinhas nas províncias romanas da Panônia (próxima da Hungria), Gallia Narbonensis e Moesia. Essa iniciativa foi uma resposta à decisão do imperador de revogar a proibição imposta por Domiciano ao cultivo de uvas fora dos Apeninos. 

Sob o governo de Probo, suas legiões foram empregadas na transformação das colinas da Gália e da Panônia em vastos vinhedos. Dois locais em particular se destacam, sendo um deles conhecido como Monte Alma, próximo a Sirmio, a terra natal de Probo. Ele nutria um forte afeto por essa região e se esforçou para retribuir sua gratidão, convertendo extensas áreas pantanosas em campos férteis e produtivos. 

Para garantir a fidelização das populações situadas nas fronteiras do Império, Probo autorizou a plantação de vinha e a produção de vinho em todo o norte da Gália e da Borgonha.

A expansão, que se estendeu até Trier, bem como às margens do Reno e aos territórios que abrangem as atuais Hungria, Áustria, República Checa e Eslováquia, foi possível graças ao desenvolvimento de novas castas, mais adaptadas aos invernos rigorosos e graças ao aperfeiçoamento das técnicas de vinificação. 

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