Um dos vinhos mais célebres do Vale do Rhône, na França, tem sua história e segredos ligados às Cruzadas
por Arnaldo Grizzo
Os cerca de 30 anos que durou a Cruzada Albigense, também conhecida como Cruzada contra os Cátaros, foram de extremo genocídio. Incitada pelo papa Inocêncio III, ela foi iniciada em 1209 e visava diminuir a força do catarismo (uma dissidência católica) no sul da França, especialmente no Languedoc.
Segundo a lenda, em 1224, já perto do final das sangrentas batalhas, um cavaleiro cruzado, Henri Gaspard de Stérimberg, ferido, quis voltar para a casa. Devido a seus serviços prestados, a rainha regente da França, Branca de Castela, deu-lhe a permissão e ele se instalou numa colina às margens do Rhône, no local que hoje é conhecido como Tain-l’Hermitage. Lá, Gaspard viveu o resto de sua vida como ermitão, plantou um vinhedo e ergueu uma capela em homenagem a São Cristóvão – curiosamente, uma das lendas sobre o santo diz que ele teria sido educado por um eremita.
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Assim nasceu a lenda de um dos mais celebrados vinhos do Vale do Rhône e também de toda a França. O nome Hermitage (que também pode ser grafado como Ermitage) é venerado por enófilos do mundo todo. Ele já foi um dos vinhos preferidos do rei Luís XIV, de alguns czares russos e até mesmo de Alexandre Dumas, autor dos “Três Mosqueteiros”.
Em seu poema “Repas Ridicule” (“Refeição Absurda”), presente em suas famosas Sátiras, o poeta Nicolas Boileau já fazia menção ao vinho Hermitage em 1665. Na época, ele dizia que dois vinhos foram misturados e vendidos como Hermitage, mas o blend acabou por ser uma “terrível decepção”.
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Apesar da lenda, acredita-se que os vinhedos da colina sejam anteriores à época do cavaleiro cruzado, remontando ao período galo-romano. No começo do século XVIII, o famoso historiador e escritor de vinho André Julien chegou a classificar Hermitage como um dos três principais vinhedos da França, junto com Château Lafite, em Bordeaux, e Romanée-Conti, na Borgonha.
Os vinhedos de Hermitage estão entre os mais valorizados da região. São apenas 136 hectares, majoritariamente cultivados com Syrah (mas que contam ainda com pouco mais de 25% das brancas Marsanne e Roussanne), que produzem 3.640 hectolitros. Essa colina de face sul, na margem esquerda do Rhône, fica protegida da exposição solar extrema e também dos ventos gelados do norte, e sofre a influência do Mediterrâneo.
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O seu histórico terroir é composto de areias graníticas cobertas de xisto e gnaisse, além de pedras aluviais redondas. A colina pode ser dividida em três seções. A primeira, à oeste, é Bessards: um terroir com solos graníticos desiguais, produz os tintos da denominação, onde fica o vinhedo Hermite. Depois, a parte central é dividida em duas: na parte superior, conhecida como Méal, encontra-se solo de calcário e sílica com uma superfície de seixo.
Na base, conhecida como Greffieux, a terra, resultante da erosão, é mais fértil. Por fim, as áreas de Murets e Dionniers são cobertas por solo argiloso em uma inclinação mais íngreme. O leste geralmente é onde são produzidos os brancos. Os tintos podem ser feitos de Syrah, mas podem levar até 15% de Marsanne ou Roussanne.
Historicamente, os vinhos de Hermitage sempre foram muitos robustos e potentes, capazes de envelhecer por décadas. Houve época, em que os vinhos de Bordeaux chegaram a ser “hermitagés”, ou seja, misturados com Hermitage para terem mais cor, taninos e, dessa forma, preços mais elevados. Aliás, no século XVIII, os Hermitage chegaram a ser mais valorizados do que os vinhos bordaleses e, curiosamente, os brancos eram os mais caros. Somente em 1937 a Denominação de Origem Controlada foi estabelecida.
A parte mais aclamada do vinhedo certamente é a que ronda a capela erigida por Gaspard e que, desde 1919, está nas mãos de um único produtor: Paul Jaboulet Aîné, que vinifica o mítico “La Chapelle”, assim como o branco “Le Chevalier de Stérimberg”. Por sinal, os 136 hectares de Hermitage são repartidos entre poucos produtores, entre eles Michel Chapoutier, Jean Louis Chave, Guigal etc.
A fama dos vinhos fez com que o nome Hermitage fosse conhecido no mundo todo e sua fórmula de sucesso, copiada. O mais conhecido vinho australiano, o Penfolds Grange, por exemplo, nasceu sob inspiração desses grandes vinhos do Rhône. Em 1950, o enólogo Max Schubert decidiu criar um ícone baseado em Shiraz e deu-lhe o nome de Grange Hermitage, título que esteve no rótulo até 1990, quando a legislação da União Europeia decidiu que nenhum vinho estrangeiro que entrasse na Europa poderia conter o nome de uma denominação de origem reconhecida.
Até hoje, os vinhos cujo nome eternizaram a lenda do cruzado ermitão vivem cercados de uma mítica capaz de arrebatar o coração de qualquer enófilo. É um dos poucos vinhos no mundo que, como o nome dá a entender, faz-nos pensar em reclusão, em solidão, em tomar a garrafa só para si e, assim, dividindo esse momento apenas com nossos pensamentos, encontrar a paz.