Vinho alemão se tornou sinônimo de vinho doce e barato
Tufi Neder Meyer Publicado em 14/03/2021, às 15h00 - Atualizado em 06/04/2021, às 14h17
O centenário vinhedo de Liebfrauenstift-Kirchenstück continua gerando ótimos vinhos – só que não são Liebfraumilch
Muitas pessoas acham que vinhos alemães são sempre “sweet and cheap” – docinhos e baratos, como eram (e ainda podem ser) aqueles vendidos com o nome Liebfraumilch no rótulo. Definitivamente, não são, pois a Alemanha hoje, e desde sempre, produz alguns dos grandes vinhos clássicos do mundo. Infelizmente, o Liebfraumilch e seus assemelhados criaram, em determinado período, uma imagem pejorativa difícil de apagar. Mas essa imagem já foi bem diferente, acredite.
A bela e antiga cidade de Worms fica próxima do rio Reno, no Rheinhessen. Esta é a maior região produtora de vinhos alemães. Nessa cidade, em 1276, começou a construção de uma igreja, concluída em 1465, e dedicada a Nossa Senhora – Liebfrau, em alemão. Daí seu nome: Liebfrauenkirche, Igreja de Nossa Senhora. Um monastério foi acrescentado e, como era costume durante muitos séculos, os monges tinham um vinhedo e produziam vinho. Monge, em alemão antigo, era “Minch” (hoje seria “Mönch”). Os peregrinos que passavam pelo local podiam beber um vinho cuja fama era grande, e cujo nome acabou sendo transmutado de “vinho do Liebfrauminch” – dos monges de Nossa Senhora – para Liebfraumilch. Milch é leite, e não monge, mas o nome agradou e pegou, como se fosse “o leite da Virgem Maria”. Alguns traduziram algo literalmente, e errado, para “leite da mulher amada”, de novo uma expressão agradável e comercialmente eficaz.
Também durante muitos anos, o Liebfraumilch só podia ser produzido de uvas provenientes de vinhedos alcançados pela sombra da alta torre da Liebfrauenkirche, ou seja, um terroir bastante reduzido. Naqueles tempos, tratava-se de um vinho de alta qualidade e grande reputação. Em 1808, Napoleão dominou a área e obrigou todas as propriedades eclesiásticas a vender suas terras. O vinhedo da igreja, quase totalmente de Riesling de alta qualidade, era chamado Liebfrauenstift-Kirchenstück, ou simplesmente Madonna.
Há inúmeros outros chamados Kirchenstück na Alemanha, por terem um dia também pertencido à Igreja. A maior parcela ficou nas mãos de Peter Joseph Valckenberg, um negociante de vinhos muito eficiente e esperto. Em alguns anos, auxiliado pela reputação prévia do vinho e do vinhedo, a demanda pelo Liebfraumilch aumentou drasticamente. De certa forma, Valckenberg criou uma das primeiras marcas comerciais bem-sucedidas de vinhos. Na virada do século XIX, o produto alcançava, nos grandes restaurantes europeus, os mesmos preços dos melhores crus classés de Bordeaux.
Com o passar das décadas, a demanda aumentou muito, mas a oferta era limitada pelo pequeno território de vinhas. A concorrência – além da própria P.J.Valckenberg, empresa do primeiro dono pós-eclesiástico – passou fabricar outros vinhos, rotulados também como Liebfraumilch, inclusive com uvas que não a Riesling.
Em 1908, foi promulgada uma nova lei de vinhos na Alemanha, com aspectos similares aos do futuro sistema francês de denominações de origem, isso é, ligando local ao vinho. O Liebfraumilch não foi conectado ao vinhedo original; em vez disso, sua produção ficou permitida em uma larga área do país, inclusive em regiões além do Rheinhessen, tais eram os interesses comerciais envolvidos.
Já o vinho proveniente do Liebfrauenstift-Kirchenstück, este sim, ficou restrito ao vinhedo original, o que foi corroborado pela Lei do Vinho Alemão de 1970. E continua a ser produzido, tanto pela P.J.Valckenberg, quanto por outros proprietários de pequenas parcelas do total de apenas 17 hectares. São vinhos de alta qualidade – um dos produtores, o Weingut Gutzler, faz um GG (Grosses Gewächs, ou Grand Cru), 100% Riesling. Gutzler é membro da VDP, prestigiosa associação de produtores e garantia de alta qualidade. O centenário vinhedo, portanto, continua gerando ótimos vinhos – só que não são Liebfraumilch.
Este continuou a ter uma portentosa história comercial até os anos 1980. Nesta época, os vários Liebfraumilch chegaram a alcançar perto de 60% de todos os vinhos exportados pela Alemanha. As determinações legais, frouxas, permitiam (e permitem, neste caso), o uso de diversas castas. Em grande maioria, os produtores usam Müller-Thurgau, Kerner, Sylvaner e quase nada, ou nada, de Riesling. O estilo continua a ser de um vinho com teor alcoólico baixo e açúcar residual facilmente perceptível. O preço segue módico, mas o enorme sucesso de vendas há muito foi reduzido – mas de modo algum eliminado. A própria Valckenberg persiste elaborando o vinho, junto com outros produtores de altos volumes. No Brasil, ainda se encontra o Liebfraumilch Joseph Friederich, marca da Weinkellerei Einig-Zenzen, grande firma de “négociants” alemães.
O Brasil, curiosamente, também produziu e produz um Liebfraumilch nacional, vendido em grandes redes de supermercados. Seu fabricante atual é a Cooperativa Vinícola Linha Jacinto, de Farroupilha, que o produz para a Campari do Brasil, a qual o comercializa. Ele é classificado como vinho branco meio seco fino (ou seja, feito com uvas viníferas). Riesling? Talvez Itálico, em parte, mas nada da Riesling verdadeira, a Renana, que no nosso país nunca conseguiu prosperar.
Há muitas restrições dos enófilos aos vinhos adocicados que, em certo momento, foram muito populares no nosso país. Muitos se lembrarão dos “vinhos da garrafa azul”, de todo modo ainda presentes no mercado. Um fato, no entanto, é inegável. Para tantos consumidores que, antes de tais vinhos, eram adeptos dos vinhos de mesa, produzidos de Isabel e outras uvas americanas ou híbridas, o Liebfraumilch foi um degrau superior. Nele pisando, muitos de nós continuaram escada acima, baseados em um nível de qualidade maior. Cumpriu, pois, um papel útil. Quiçá possa ficar na memória como algo que se recorda com uma simpatia, digamos, distanciada, mas sorridente e positiva, como acontece quando olhamos para um tempo e para uma idade que não voltarão mais.
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