Conheça a trágica história de amor entre o deus e um sátiro
Arnaldo Grizzo Publicado em 24/03/2022, às 16h00
“Nenhuma outra planta pode rivalizar com suas uvas – nem a rosa, nem o narciso colorido, nem anêmona, nem lírio, nem íris é igual à planta de Bacchos! Pois com os novos riachos de seus frutos esmagados sua bebida conterá todas as flores: essa bebida será uma mistura de todas, combinará em uma o perfume de todas as flores que sopram, suas flores embelezarão todas as ervas da primavera e grama do prado”.
Assim o deus do vinho, Dionísio, exalta o seu amor pelo jovem Ampelos, filho de uma ninfa com um sátiro. Nesse trecho, o deus glorifica a planta em que seu amante foi transformado após a morte, ou seja, numa videira – ampelos, em grego, significa vinha, daí o termo ampelografia, por exemplo, que é o estudo da videira.
O mito desse amor que resultou na vinha e também no vinho é contato por Nonnus de Panopolis, um dos mais celebrados poetas gregos. Em seu épico Dionysiaca, que consiste de 48 livros, ele conta a vida de Dionísio. Este é o mais longo poema sobrevivente da antiguidade greco-romana com 20.426 versos, composto em dialeto homérico e hexâmetros dactílicos. Acredita-se que o poema tenha sido escrito no século 5 dC.
Durante toda a trajetória da vida de Dionísio, Nonnus conta a relação do deus com o jovem sátiro. Diz que “Ampelos era um menino alegre que havia crescido nas colinas frígias”, um rapaz imberbe, na “flor dourada da juventude”, com “cachos de cabelos encaracolados que corriam soltos sobre seus ombros brilhantes prateados e flutuavam no vento sussurrante que os levantava com sua respiração”. “De seus lábios rosados escapava uma voz que respirava mel. [..] Onde seu pé prateado pisava o prado corava de rosas; se ele virasse os olhos, o brilho dos globos oculares brilhantes [...] era como a luz da lua cheia”. O deus do vinho então amava esse rapaz cuja beleza dava inveja aos outros deuses. Dionísio, porém, previu sua morte e o avisou para evitar touros.
Um dia, contudo, o rapaz resolveu cavalgar um touro feroz e irritou a deusa Selene (Lua). “Ele gritou se gabando para a lua. Selene olhou pelo ar com um olhar ciumento, ao ver como Ampelos montava no touro assassino e saqueador. Ela enviou um inseto; e o touro, continuamente picado pelo ferrão, galopou por caminhos sem caminhos”. O jovem foi jogado das costas do touro, caiu e morreu ao quebrar o pescoço. O touro ainda o chifrou e pisoteou.
Ao ficar sabendo da notícia de seu amante morto, Dionísio correu até ele, “espargiu rosas e lírios em seu corpo, e pendurou em seu cabelo uma guirlanda de flores de anêmonas que logo perecem, como se alguém caísse cedo demais por um golpe cruel. Em sua mão, ele colocou um tirso e o cobriu com seu próprio manto de púrpura; de sua própria cabeça, ele tirou uma mecha e a colocou no corpo como um último presente e símbolo”. Diz ainda que Dionísio trouxe ambrosia e derramou nas feridas do cadáver e, com isso, mais tarde, quando Ampelos assumiu sua nova forma (vinha), ele teria passado o perfume da ambrosia para seu fruto (uva).
Segundo o mito, Dionísio era um deus que nunca se lamentava por nada. No entanto, essa teria sido a primeira e única vez. Ele, “que nunca chorou”, lamentou tanto seu amor, que Atropo, uma das três moiras que regem o destino, resolveu consolá-lo. “Ele vive, eu declaro, Dionísio; teu menino vive, e não passará pelas águas amargas do Aqueronte. A tua lamentação descobriu como desfazer os fios inflexíveis do Destino inconstante, devolveu o irrevogável. Ampelos não está morto, mesmo que tenha morrido; pois transformarei seu menino em uma bebida adorável, um néctar delicioso.”
Atropo diz ainda que o rapaz “será adorado com o ritmo dançante”, será “o conforto da raça humana”. “Ampelos, você trouxe luto para Dioniso que nunca chora – sim, para que quando seu vinho de mel crescer, você possa trazer seu deleite para todos os quatro cantos do mundo, uma libação para o Beato, e para Dionísio um coração de alegria. Lord Bacchos chorou lágrimas, para que ele possa enxugar as lágrimas do homem!”
Assim que a moira foi embora com suas irmãs, um milagre ocorreu. Ampelos tomou a forma de uma serpente, mas à medida que o corpo mudava, “sua barriga era um talo longo e comprido, seus dedos se transformaram em tentáculos, seus pés criaram raízes, seus cabelos eram cachos de uvas, sua própria pele de fulvo mudou para a flor multicolorida da fruta em crescimento, seu longo pescoço tornou-se um cacho de uvas, seu cotovelo deu lugar a um galho curvado cheio de bagas, sua cabeça mudou até que os chifres tomaram a forma de tufos retorcidos de drupas. Cresceram fileiras de plantas sem fim; ali havia um pomar de videiras, feito por ele mesmo, enroscando ramos verdes em volta das árvores vizinhas, com guirlandas de frutas desconhecidas e coradas de vinho.”
Dionísio regozija então ao ver aquilo, exaltando a planta em que seu amado havia se transformado. “Eu fornecerei não apenas bebida, mas comida para homens mortais!” E compara o vinho ao “o néctar e ambrosia de Zeus”. E diz como fará para ter seu amante sempre consigo: “Naquele gole delicioso, absorvo Ampelos para estar em casa em meu coração.”
Já segundo Ovídio, outro famoso poeta romano, a fim do amante de Dionísio teria sido outro. Em seu poema Fasti, ele diz que “Ampelus, filho de uma ninfa e de um sátiro, era amado por Baco nas colinas ismarianas. A ele o deus concedeu uma videira que se arrastava dos galhos frondosos de um olmo, e ainda assim a videira leva do menino seu nome”. A subir na videira para colher uvas, ele teria caído e morrido. Quando caiu; o deus Liber (outro nome para Dionísio) “levou a juventude perdida para as estrelas”, transformando-o em uma constelação.
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