O papel do vinho nas peças de William Shakespeare

Comédia, tragédia e drama. O papel do vinho nas peças de William Shakespeare

Arnaldo Grizzo Publicado em 11/01/2023, às 12h00 - Atualizado às 18h45

William Shakespeare -

“Rogo a ti, não se apaixone por mim, pois sou mais falso que os votos feitos sob o efeito do vinho”. Também pudera, ao dizer tal frase, Rosalinda, personagem da comédia “Como gostais” (“As you like it”, no original), estava disfarçada de homem. Essa é apenas uma das muitas passagens em que o vinho aparece na obra de William Shakespeare, o maior dramaturgo da língua inglesa.

Seja na comédia ou no drama, a bebida está presente nas peças que, de uma maneira ou de outra, acabavam por retratar o rico período elisabetano em que “o Bardo” viveu. Há quem tenha contado a aparição da palavra “vinho” nos escritos de Shakespeare, seriam 86 vezes. O autor, contudo, não cita o vinho apenas genericamente, chegando a mencionar exatamente a “marca” da bebida em algumas ocasiões. Entre seus preferidos estão os vinhos das Ilhas Canárias, o Malmsey e o Sack.

Falstaff e Otelo

Há mais de 30 citações somente sobre o Sack, termo elisabetano para os vinhos de Jerez. A mais célebre passagem sobre o Sack ocorre, como não podia deixar de ser, com o personagem Sir John Falstaff. O boêmio e bonachão amigo do príncipe Harry fala sobre a audácia do futuro rei durante a peça “Henrique IV”:

“Um bom copo de Jerez é de duplo efeito; sobe-me ao cérebro, seca-me ali todos os vapores tontos, obtusos e ásperos que o envolvem, deixando-o sagaz, vivo, imaginoso, cheio de formas leves, petulantes e deleitosas, que, entregues à voz, recebem vida da língua e se convertem em excelente espírito. A segunda propriedade do vosso excelente Jerez é a de aquecer o sangue, que, por ser naturalmente frio e pesado, deixa o fígado branco e pálido, sinal certo de pusilanimidade e covardia; mas o Jerez o aquece e o faz correr do interior para as partes extremas, ilumina o rosto, que, como farol que é, chama às armas a esse pequenino reino denominado homem. E então todos os moradores e os pequenos espíritos da província se congregam em torno do seu chefe, o coração, que, aumentado e envaidecido com o cortejo, torna-se capaz de qualquer empreendimento de valor. Todo esse valor vem do Jerez, a tal ponto que a habilidade no manejo das armas de nada vale sem o Jerez, que é o que a põe em movimento. O saber não é mais que uma mina de ouro guardada por um demônio, que só vale depois que o Jerez a explora e a põe em obra e uso. É daí que vem a valentia do príncipe Harry, porque o sangue frio que ele herdou naturalmente do pai, tal como terreno mesquinho, desnudo e estéril, foi por ele lavrado, adubado e cultivado com o excelente esforço de beber grandes e grandes quantidades do fértil Jerez, que deixou o príncipe ardente e valoroso. Se eu tivesse mil filhos, o primeiro princípio humano que lhes inculcava, seria absterem-se de bebidas fracas e entregarem-se ao Jerez”.

Pouco antes dessa exaltação ao Jerez, o mesmo Falstaff reclama de outro personagem ao justificar por que nenhum homem é capaz de fazê-lo sorrir. “Pudera, ele não bebe vinho”, diz.

O vinho, por sinal, é o veículo para a vingança de Iago contra Otelo, em uma das obras mais conhecidas de Shakespeare. Nela, Iago embebeda Cássio, que havia sido promovido ao posto de tenente (almejado pelo primeiro), e fazendo com que ele brigue em uma festa e perca, assim, sua promoção. “Ó espírito invisível do vinho! Se não és ainda conhecido por nenhum nome, recebe o de demônio”, proclama Cássio, sem lembrar do que havia feito.

Canárias e Madeira

O vinho mais popular na época de Shakespeare definitivamente era o Jerez, mas o dramaturgo cita ainda o vinho das Ilhas Canárias em duas obras: “Noite de Reis” e “As Alegres Comadres de Windsor”. Nesta última, novamente é Falstaff o personagem que irá apreciar o vinho do arquipélago espanhol na costa na África. Acredita-se que o vinho produzido no local era um branco doce, muito similar ao Malmsey. O dramaturgo chega a exaltar o vinho das Canárias: “Um vinho maravilhoso e penetrante, perfuma o sangue, fazendo com que se pergunte: ‘O que é isso?’”.

Por volta de 1640, mercadores de vinho ingleses chegavam a classificar a bebida das ilhas como “o vinho luxuoso de Tenerife” (uma de suas capitais, juntamente com Las Palmas). Ele era mais doce do que o Jerez e feito com Malmsey (Malvasia), no entanto, um vinho conhecido como Vidonia (outro nome para a variedade Verdelho) era relativamente seco, tivesse acidez elevada e envelhecesse bem.

Da mesma forma, o Malmsey também está presente nas obras de Shakespeare, como “Trabalhos de Amores Perdidos”, “Ricardo III” e “Henrique IV”. Uma passagem curiosa ocorre em Ricardo III, quando os homens contratados para assassinar o Duque de Clarence propõem ocultar seu cadáver em um barril de Malmsey. Pouco antes de morrer, porém, o inadvertido personagem solicita uma taça de vinho, ouvindo dos assassinos a pronta resposta: “Você terá vinho suficiente, Sir”.

Na Ilha da Madeira, não muito distante das Canárias, as pipas de Malmsey geralmente ficavam ao ar livre e o vinho oxidava, tomando uma cor marrom, mas a temperatura elevada acabava por lhe dar um bom sabor. Acredita-se, porém, que os primeiros vinhos ditos Malmsey que chegaram à Inglaterra, na verdade, tenham vindo da Grécia ainda na época medieval.

E, por mais falso que o traidor Iago tenha sido ao dizer sua célebre frase, Shakespeare resume aqui um pouco da relação da humanidade com o vinho: “Vamos, vamos; o bom vinho é um camarada bondoso e de confiança, quando tomado com sabedoria; não continueis a falar mal dele”.

*Texto originalmente publicado na edição 138 da Revista ADEGA, de abril de 2017, e republicado após atualização.

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