Para paladares bem treinados, as bebidas amargas são um prazer recompensador
Sílvia Mascella Rosa Publicado em 24/05/2019, às 17h00
Grande parte das crianças não apreciam os alimentos verdes e nem os amargos. A ciência hoje é capaz de explicar isso de uma forma muito interessante: quando nada éramos além de uma das partes mais frágeis da cadeia alimentar (ainda na pré-história), escolher o que comer era uma questão de tentativa e erro.
Desse tempo ficou em nossos genes uma memória ancestral que avisa que alimentos (e bebidas) verdes podem ser potencialmente letais ou de sabor desagradável. É somente através da experimentação e da evolução do paladar que aprendemos que alguns frutos, legumes, verduras e bebidas, apesar de verdes e amargos, não farão mal à nossa saúde - muito pelo contrário.
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O que há de mais interessante nessa evolução é que no século XVIII as bebidas compostas com ervas, raízes e frutos amargos se desenvolveram como cura de doenças. A maior parte dos licores e alguns poucos destilados eram, em sua criação, elixires e não algo que se po-dia pedir no balcão de uma estalagem. Dos que chegaram até nós, os principais são os amaros, uma classe de bebidas cujo próprio nome explica sua principal característica.
Os amaros (ou bitters) são o líquido resultante da destilação de uma mistura de ervas, cascas, raízes e plantas, maceradas em álcool. Normalmente o produto final retêm uma boa parte desse álcool, por volta de 45% e, por conta disso, essas bebidas são comumente utilizadas em pequenas quantidades para aromatizar coquetéis ou são diluídas para se transformarem em bebidas únicas, retendo seus sabores tão distintos.
Uma característica, no entanto, é comum à quase todos os bitters, a sua capacidade de ajudar na digestão e também de abrir o apetite. Algumas gotas de angostura, por exemplo, colocadas em um copo de água podem ajudar a combater a náusea e até algumas dores de estômago.
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Essa recomendação vem diretamente do farmacêutico que a criou, no século XIX, para os males de estômago de seus pacientes, um deles o general Simon Bolívar, libertador de tantos países sulamericanos.
O farmacêutico batizou a bebida (uma mistura de rum forte com raízes e flores de genciana e ervas) com o nome de uma vila da Venezuela, a vila de Angostura, e até hoje a bebida continua sendo produzida segundo a sua receita original de 1824, na ilha de Trinidad y Tobago, onde a empresa foi estabelecida por ele.
Outra combinação amarga, mas com notadas propriedades medicinais é o Underberg. Preparado com ervas vindas de 43 países, sua capacidade de estimular os sucos gástricos e ajudar na digestão tem uma história peculiar.
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Seu criador, o alemão Hubert Underberg, era um apreciador de um exilir preparado nos Países Baixos, feito com ervas diluídas em Genebra - um popular destilado da região. Em sua cidade natal, Rheinberg, ele passou a estudar esses elixires e fazer sua própria mistura, com o objetivo de deixá-la mais equilibrada e uniforme.
Em 1846 nasceu o Underberg como é feito na Alemanha até hoje - a receita está nas mãos de cinco pessoas: o tetraneto do fundador, sua esposa, sua filha e dois monges beneditinos.
No Brasil, o Underberg já foi uma bebida muito conhecida, em suas garrafas de quase um litro. No entanto, essa bebida que era fabricada aqui com uma receita de base alemã passou a se chamar Brasilberg. Desde então, o nosso País recebe a bebida original como é comercializada no resto do mundo, em garrafinhas de 20 mililitros, equivalentes a uma dose do digestivo.
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Como preza a etiqueta, após a refeição, cada garrafinha deve ser vertida em um cálice de 24 cm de altura, criado especialmente para a bebida em 1867.
Apesar de terem em comum o sabor amargo, essas bebidas gozam de uma popularidade mundial expressiva (o Underberg, por exemplo, comercializa anualmente mais de um milhão de garrafinhas), onde os italianos parecem ser mestres.
Algumas de suas marcas de aperitivos amargos dispensam apresentação, como o Campari (criado em 1860), o Carpano Punt e Mes (uma espécie de vermute mais amargo), o Aperol (de 1919), o Cynar (feito com folhas de alcachofra do vale do rio Pó) e a Fernet Branca, um digestivo que surgiu em 1845, preparado com 27 ervas de quatro continentes e envelhecido por um ano em barris de carvalho.
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Na Europa, ainda é possível encontrar outros amaros com características de seus países de produção, como o Unicum, feito na Hungria e com sabor ligeiramente mais suave, o Amer Picon francês, o Hoppe Oranje da Holanda e o Jagermeister da Alemanha entre dezenas de outros.
Em comum, a grande maioria dos bitters têm os aromas e sabores da genciana (planta alpina utilizada há séculos na medicina), o quinino (tão conhecido dos brasileiros na água tônica e por seu uso no tratamento da malária), as laranjas amargas (sabor dominante do Campari e dos amaros holandeses), os cravos e o ruibarbo.
Na hora de servir cada uma dessas bebidas têm seu estilo próprio. Os do tipo aperitivo podem ser servidos com gelo, rodela de limão ou laranja e até mesmo club soda. Os digestivos devem ser servidos em temperatura ambiente e em copos delicados, quase como licores.
Quando utilizados em coquetéis os bitters do tipo da Angostura ou o Peychaud americano devem ser colocados em pequenas gotas, seu excesso pode arruinar a bebida. Para um coquetel com sabor da Londres dos anos 1940, é necessário uma dose e meia de bom gin inglês e algumas gotas (2 ou 3) de Angostura.
Em um copo de coquetel, pingue as gotas de Angostura e gire o copo de modo a espalhar a bebida pelas paredes. Retire o excesso e coloque o gin. Duas pedras de gelo podem ser utilizadas para suavizar. Esse coquetel clássico e tradicional é conhecido como Pink Gin, por conta da coloração levemente rosada que a Angostura deixará na bebida.