O uso de enxofre no vinho tem sido cada vez mais questionado

Enxofre é usado na vitivinicultura há séculos, mas seu papel vem sendo cada vez mais questionado

Arnaldo Grizzo Publicado em 02/10/2023, às 12h00

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Já imaginou como eram os vinhos até a Idade Média? Com técnicas ainda rudimentares e relativamente pouco conhecimento, eles tendiam a ser majoritariamente brancos e adocicados.

Isso porque o processo de fermentação (quando o açúcar se transforma em álcool) e o de maceração (em que as cascas das uvas tintas ficam em contato com o suco para lhes transmitir, entre outras coisas, cor) não tinham sido bem estudados.

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Portanto, mesmo quando o vinho era feito com uvas tintas, sua cor não era esse vermelho-rubi escuro ao qual estamos acostumados hoje, mas um tom pálido, mais no estilo dos rosés. E, além disso, nem sempre a fermentação “consumia” todo o açúcar presente no mosto, daí a sensação de doçura.

Mas a grande questão do vinho medieval era a sua “durabilidade”. Sendo um produto feito às pressas, sem muito cuidado, era natural que ele azedasse rapidamente. Então, havia urgência em vender, pois os barris poderiam estragar até mesmo no transporte para o mercado. O que mudou esse panorama foi o uso do enxofre, como um conservante.

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Acredita-se que o enxofre é usado pelos homens desde o século VI aC. Na época, era extraído de vulcões e usado pelos gregos para fumigar navios e casas infestadas de insetos e pragas, e controlar a população de ratos. No entanto, o primeiro documento “regulamentando” o uso só surgiria em 1487, na Alemanha – país célebre por produzir brancos e doces.

Supõe-se, todavia, que a adição de enxofre ao vinho seja uma prática mais antiga, pois há algumas vagas referências sobre isso em escritos de Plínio e Homero – que falavam de velas de enxofre usadas para evitar aromas de vinagre em ânforas na época romana.

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Voltando à Alemanha medieval, na época, encharcava-se um pedaço de madeira com enxofre em pó, ervas e incenso, e o queimava dentro de um barril que depois receberia o vinho. Logo percebeu-se que isso protegia a bebida, evitando o escurecimento e retardando a deterioração. Foi uma revolução.

Até hoje, o dióxido de enxofre é usado para conservar os vinhos e ainda envolve muita controvérsia – tanto que produtores “naturais” costumam evitar, pois acreditam que atualmente há outras formas de conservar a bebida. Mas antes de debater o seu uso, vamos entender onde ele pode entrar.

Enxofre no vinhedo

Dois compostos diferentes contendo enxofre são comumente empregados nas vinícolas e nos vinhedos, cada um servindo a um propósito diferente. Na vinha, o enxofre elementar – não o dióxido de enxofre – é usado como antifúngico. Ele é inodoro até ser exposto ao calor ou à luz solar e se volatilizar. É um elemento químico reativo natural muito abundante que é extraído de depósitos de enxofre e é sólido à temperatura ambiente.

O uso mais importante do enxofre elementar no vinhedo é como spray para prevenir o oídio e o míldio. O oídio (oidium) é a doença fúngica mais significativa em termos de perda de rendimento e qualidade.

Como pode atingir rapidamente um vinhedo, os produtores geralmente tentam prevenir infecções pulverizando com fungicida em intervalos regulares durante a estação de crescimento. O míldio também afeta o tecido vegetal verde, mas ao contrário do oídio, espalha-se pela água. Quando o enxofre é misturado ao cobre para formar o sulfato de cobre, é muito mais eficaz no combate ao míldio.

Embora os esporos de mofo possam se tornar resistentes a fungicidas sintéticos se as pulverizações forem muito frequentes em áreas de alta pressão, o mofo não desenvolveu resistência ao enxofre.

Por isso, o enxofre continua sendo o padrão para a prevenção, mesmo após mais de séculos de uso. Além disso, ao contrário dos sintéticos, é permitido o uso na agricultura orgânica e biodinâmica. Além de sua confiabilidade, o enxofre é muito mais barato do que outros materiais orgânicos. É fácil de aplicar, e o seu resíduo não é preocupante porque é um elemento necessário para o crescimento da videira. Ainda assim, outras alternativas naturais vêm sendo estudadas como a flor do castanheiro por exemplo.

Dióxido de enxofre na vinícola

À medida que o pH aumenta, a concentração do íon bissulfito aumenta e a forma molecular do SO₂ diminui

 

Já na vinícola, o dióxido de enxofre (SO₂) pode estar na forma gasosa, líquida ou sólida. Ele é antimicrobiano, antienzimático e conservante, servindo também como antioxidante. É incolor e, ao contrário do enxofre elementar, tem um forte odor e seus vapores são tóxicos. Porém, nas quantidades presentes no vinho o consumo não é prejudicial para a maioria das pessoas.

O SO₂ pode ser adicionado à fruta durante o processamento, ao vinho envelhecido e ao vinho acabado antes do engarrafamento. Essas adições podem ocorrer na forma de pó como metabissulfito de potássio (K2S2O5) ou líquido (dióxido de enxofre líquido). O metabissulfito de potássio é muito mais seguro que o SO₂ líquido.

O dióxido de enxofre é muito reativo. Depois de adicionado ao vinho, uma porção (aproximadamente um terço) se liga a muitos produtos químicos. O SO₂ pode ser dividido em duas categorias: SO₂ livre e SO₂ ligado, que juntos são conhecidos como SO₂ total. O SO₂ livre é simplesmente SO₂ não ligado, e seus níveis geralmente ficam entre 20 e 50 miligramas por litro no vinho acabado.

O SO₂ livre é a porção que oferece proteção ao vinho e é representado pelas três formas químicas do SO₂, que se formam quando ele é dissolvido em água. Forma molecular (H2SO3), a forma antimicrobiana; forma bissulfito (HSO3-), que ajuda a retardar a oxidação; e forma de sulfito (SO32-), quase inexistente no pH do vinho.

Todas as três espécies estão em um estado contínuo de clivagem e combinação com H₂O, mas em um determinado pH, atingem um equilíbrio tal que a proporção de íons moleculares versus bissulfito é relativamente constante.

Isso é importante, porque o pH do vinho determina a quantidade de cada uma dessas três espécies de SO₂ presentes e porque cada uma desempenha um papel diferente na proteção do vinho, ou seja, a eficácia do SO₂ depende do pH.

À medida que o pH aumenta, a concentração do íon bissulfito aumenta e a forma molecular do SO₂ diminui. Como a forma molecular é mais abundante em pH mais baixo, o SO₂ é mais eficaz em alcançar a estabilidade microbiana em pH mais baixo.

Propriedades

O SO₂ não pode ser considerado um antioxidante sem outras medidas tomadas na vinícola para evitar a entrada de oxigênio: preencher as barricas, espalhar gases inertes e armazenar o vinho em temperaturas baixas

 

O SO₂ ligado não tem nenhuma consequência para a natureza protetora do SO₂ em relação ao oxigênio e aos micróbios. O SO₂ livre, que pode ainda ser dividido em formas moleculares e bissulfito, é a porção relevante para o enólogo.

Embora o SO₂ seja caracterizado como um antioxidante, ele tem muito pouca interação direta com o oxigênio. No entanto, o íon bissulfito reage com muitos outros compostos em um vinho, incluindo acetaldeídos, quinonas, antocianinas monoméricas, ácidos urônicos, cetoácidos, xilosona e glicose.

Compostos como acetaldeídos e quinonas são responsáveis pelas propriedades oxidativas do vinho e, quando o íon bissulfito intercepta qualquer um desses compostos, os processos oxidativos são prejudicados.

O papel do SO₂ molecular é melhor analisado no contexto do pH do vinho. Em níveis de pH mais elevados, o SO₂ molecular quase não está presente no vinho e, portanto, tem pouca capacidade protetora. Além disso, o dióxido de enxofre é muito mais eficaz contra bactérias do que contra leveduras.

Por estas razões, e porque a quantidade de SO₂ na garrafa diminui ao longo do tempo devido à oxidação, não se pode confiar no dióxido de enxofre para prevenir a atividade microbiana uma vez que o vinho está em garrafa.

Na presença de populações microbianas ativas, outras medidas, como filtração estéril, devem ser empregadas. Além disso, o SO₂ não pode ser considerado um antioxidante sem outras medidas tomadas na vinícola para evitar a entrada de oxigênio: preencher as barricas, espalhar gases inertes e armazenar o vinho em temperaturas baixas. À medida que o vinho se oxida, mais e mais SO₂ se liga e sua eficácia diminui.

Quantidades e limites

Aproximadamente 20-200 mg/L de SO₂ podem ser adicionados durante a vinificação e aproximadamente 10-50 mg/L são formados pela levedura durante a fermentação, que geralmente é ligada ao acetaldeído na formação.

Portanto, quando o vinho é analisado quanto à concentração de SO₂ total, uma pequena quantidade sempre será medida, independentemente de o dióxido de enxofre ter sido adicionado ou não durante o processo de vinificação.

Ou seja, os níveis naturais de SO₂ nos vinhos são geralmente em torno de 10-20 mg/L. Na maioria dos países, os vinhos que contêm sulfitos acima de 10 mg/L devem incluir uma declaração no rótulo alertando o consumidor sobre a presença de sulfitos. E vale lembrar que os sinônimos mais comumente usados para SO₂ são anidrido de ácido sulfuroso e óxido sulfuroso.

Os estudos em relação aos efeitos da ingestão de enxofre no ser humano ainda não são conclusivos, mas todos os países geralmente sugerem uma ingestão diária aceitável. Uma reação adversa é mais comumente uma intolerância. Embora o sintoma mais comum seja a asma, alimentos e aditivos alimentares não são gatilhos comuns para a asma.

Além disso, reações adversas ao SO₂ em indivíduos não asmáticos e não sensíveis são raras. No entanto, poucos estudos clínicos avaliaram o grau em que os aditivos de SO₂ contribuem para a asma induzida pelo vinho.

Os resultados desses estudos foram ambíguos e, portanto, as evidências diretas são limitadas. De qualquer forma, o debate em torno do uso não está apenas no que pode causar ao ser humano, mas na influência ao vinho como um todo. 

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