“Você já tomou esse vinho? E aí? Vale a pena?” É uma pergunta capciosa, mas, na maioria da vezes, equivocada
Arnaldo Grizzo Publicado em 04/12/2021, às 16h00
“Qualquer coisa que custe US$ 500 não se trata de vinho"
Talvez a questão que toda a equipe de ADEGA – e não somente nós, mas todos os críticos de vinho do planeta – mais “enfrenta” é: “Esse vinho vale a pena?”.
Como especialistas em vinho e também críticos, essa é a pergunta que mais ouvimos quando alguém nos interpela em qualquer situação, seja em uma loja de vinhos, seja em um supermercado, seja em um restaurante etc.
Todos, especialmente os que estão iniciando sua jornada de descobrimento nesse fantástico mundo do vinho, querem saber se o que estão bebendo é bom e, mais ainda, se a relação qualidade-preço, o famoso custo-benefício, daquele rótulo também é bom.
Algumas vezes, as pessoas nem sempre estão preocupadas com o valor. Elas podem estar tomando vinhos que chamamos “de entrada”, com preços baixos, mas ainda assim querem saber se há uma “aprovação”, ou se por acaso encontraram uma “joia perdida” nas prateleiras do supermercado, algo que possa, em suas cabeças, equivaler a um rótulo muito mais caro. Quem sabe encontrar um novo “Petrus” por R$ 50? Lamentamos dizer, essa é uma ideia pueril em nossos dias.
A maioria das pessoas que questionam se um vinho “caro” vale a pena tendem a pensar que ele nada mais é do que uma bebida à base de uva fermentada
Outra situação ainda mais comum encontrada é quando, em uma loja que ostenta rótulos icônicos e com preços obviamente altos, alguém se dirige até nós com uma garrafa bastante cara em mãos e questiona: “Você já tomou esse vinho? E aí? Vale a pena?” É uma pergunta capciosa, mas, na maioria da vezes, equivocada. Pois geralmente ela parte de algumas premissas erradas. Então vamos detalhar isso.
A maioria das pessoas que questionam se um vinho “caro” vale a pena tendem a partir do pressuposto de que ele nada mais é do que uma bebida à base de uva fermentada, ou seja, supostamente teria um patamar máximo de valor – e talvez sabor – que poderia ser alcançado. O patamar de valor se daria pelos custos de produção. Um estudo de custos de produção da Embrapa de 2006, por exemplo, trazia algumas aproximações sobre os diversos valores gastos pelos produtores e o quanto isso representaria no custo mínimo de uma garrafa – considerando uma produção de 35 mil garrafas. Com uvas custando R$ 1,5 o quilo, na época, a estimativa do valor mínimo de uma garrafa era de aproximadamente R$ 6. Alguns, ao ver isso, falarão da suposta “ganância” de produtores e suas “enormes margens de lucro”, ignorando diversas outras questões que compõem o preço final de uma garrafa de vinho.
Mas falando ainda de custos de produção, podemos discorrer sobre os valores de uva, mão-de-obra e materiais em diferentes locais. Por exemplo, em Champagne, o preço do quilo da uva pode ultrapassar 8 euros. Ou seja, em valores atuais, somente de matéria-prima básica, ou seja, uva (sem contar tantas outras coisas, como garrafa, rolha, rótulos etc.) um Champagne já parte de mais de R$ 70 de custo. “Mesmo assim, o que justifica os preços astronômicos?”, alguém questionará.
Em seu curioso livro “Cork Dork”, a jornalista Bianca Bosker aponta que, em termos de custo, puro e simples, pode até existir um patamar máximo. Para isso, ela questionou Orley Ashenfelter, professor de econometria da Universidade de Princeton – que entre outras coisas criou uma fórmula para prever o valor de alguns vinhos icônicos no futuro. “Qualquer coisa que custe US$ 500 não se trata de vinho. Você não está comprando vinho. Isso é um item de coleção”, afirma Ashenfelter. Deixando de lado a especulação ou o valor sentimental, segundo ele, quando se trata de sabor, “não há justificativa para uma garrafa de vinho de US$ 500. Garanto que posso conseguir um que custará apenas US$ 100 e você não conseguirá distinguir a diferença”, garante o professor.
Pois bem, aí está a prova de que não vale a pena gastar muito em um vinho, certo? Errado. “Mas eu não quero um vinho para colecionar, quero para beber. E se não há diferença entre eles, posso optar por um mais barato”. Se o seu deleite está apenas na fruição de uma bebida alcoólica, talvez. Mas o vinho para você é só isso? Para quem entra nesse mundo, raramente é. “Saber que vinho você está bebendo faz parte do prazer do vinho”, aponta o enófilo e neurocientista Daniel Salzman, da Universidade de Columbia. Ou seja, há muito mais envolvido.
Quando compramos uma garrafa de um Mouton-Rothschild, por exemplo, mais do que pelo líquido, pagamos por uma história secular, de um produtor que construiu sua reputação de criar grandes vinhos ao longo de muitos e muitos anos, valorizando sua marca para que hoje ela pudesse se diferenciar – especialmente em termos de preço. Além disso, tornar-se um benchmark para diversas outras que surgiram e ainda surgem.
“Saber que vinho você está bebendo faz parte do prazer do vinho”, aponta o enófilo e neurocientista Daniel Salzman
No caso de Mouton, por exemplo, cada garrafa evoca a memória de alguns feitos de seus produtores, como terem sido pioneiros no engarrafamento de seus vinhos no próprio château, isso sem contar o lado artístico dos rótulos que são elaborados por artistas comissionados exclusivamente para cada safra. Ou seja, com o tempo, Mouton transformou seu produto em algo que vai muito além de uma bebida, criando algo comparável a uma obra de arte, de série limitada, o que, de certa forma, justifica seu preço. Mas há muito mais coisas envolvidas.
Ao abrir uma garrafa de um ícone “caro” e sorver seu líquido, qual a sensação? Entra-se em um estado de êxtase? O sabores são tão divinos que nos levam a um estado de catarse? Há uma sensação de descobrimento tal qual uma epifania? Se é isso o que você espera, talvez não seja vinho o que pretende encontrar na garrafa, mas alguma droga alucinógena. Ainda assim, para os apreciadores, as sensações serão sublimes e não dependerão do sabor do líquido em si, mas da conjuntura da experiência que estão vivendo.
Como assim? Há diferentes níveis qualitativos que podemos encontrar nos vinhos. Eles não são todos iguais e seu nível de qualidade não depende exclusivamente do preço. Pode-se encontrar vinhos de excelente qualidade pelos mais variados valores. Daí a tentativa dos críticos de quantificar essas referências por meio de notas. Uma forma objetiva de comparação. Ou seja, acreditamos que vinhos de 95 pontos, por exemplo, possuem qualidades similares. Se um custa R$ 200 e outro R$ 2.000, a relação qualidade-preço está clara. Isso significa que o de R$ 2.000 está “caro” e deve ser relegado? Ou significa que encontramos um novo futuro ícone por uma bagatela? Nem um, nem outro. Mesmo com “qualidades equivalentes”, sua experiência diante deles pode ser completamente diferente.
Há diferentes níveis qualitativos que podemos encontrar nos vinhos. Eles não são todos iguais
Você pode pensar que aquele vinho “caro e famoso” pode “não valer o quanto pesa”, mas ele vai deixar uma marca. Geralmente são vinhos que “dizem algo”, algo que vai muito além do sabor da bebida – raramente decepcionante deve-se frisar. Quanto vale degustar um clássico do ano de seu nascimento no seu aniversário de 40 anos, por exemplo? Será que você não teria uma sensação diferente, não sentiria algo além do que o próprio sabor da bebida é capaz de proporcionar? Degustar um vinho raro da safra do nascimento do seu filho quando ele completa 18 anos, não significaria nada além de abrir uma simples garrafa?
Há quem diga que se decepcionou diante de um vinho “caro” acreditando que talvez não o tenha compreendido. Mas a verdade é que o que a pessoa não compreendeu não foi o vinho em si, mas a vivência do momento. Acredite, abrir um vinho consagrado traz uma epifania, uma revelação que se dá por algo que vai além do líquido, uma relação com uma história, um momento, uma experiência, um estado de espírito, coisas que suplantam sensações básicas de paladar.
Qual a diferença real entre um carro popular e uma Ferrari? Os dois não servem a um único propósito: transporte? Por que então o preço de uma Ferrari é tão mais alto? A diferença de motor? Os acessórios? Mas o custo desses materiais justifica um valor tão diferente? Certamente não. Então onde está a resposta? Por que alguém compraria uma Ferrari no lugar de um carro popular?
A sensação que você teria ao dirigir uma Ferrari seria a mesma? Se sentar no banco de couro e fazer roncar o motor não lhe dá um arrepio, não leva sua mente a outros lugares, talvez ter um carro de luxo não seja a sua praia e você – por diferentes razões – não se importe com isso. O mesmo vale para o vinho. Se as sensações que você tem ao abrir garrafas icônicas são as mesmas que teria ao abrir vinhos mais simples, talvez isso não seja suficientemente importante para você a ponto de levá-lo a investir em uma experiência diferente.
Você pode pensar que aquele vinho “caro e famoso” pode “não valer o quanto pesa”, mas ele vai deixar uma marca
Um escrito do pensador francês Michel de Montaigne diz um pouco sobre essa relação de “indiferença” de alguns diante de “grandezas” inalcançáveis: “Visto que não podemos alcançar as grandezas, depreciamo-las por vingança; se é que descobrir defeitos em alguma coisa a deprecia, pois não há coisa que não os tenha, por mais bela e desejável que seja. [...] Acho que damos às grandezas mais importância do que merecem, e também que valorizamos demasiado a resolução dos que as desprezam ou a elas renunciam espontaneamente”.
Ou seja, para muitos, que não compreendem, ou por alguma razão não querem compreender certas “grandezas”, é mais fácil depreciá-las. Portanto, questionar se “este vinho vale a pena”? não faz sentido. Todo o vinho é uma descoberta. Não se deve buscar uma “compreensão” na bebida, mas em si mesmo. A “resposta” não estará dentro da garrafa, mas de você. Aprecie, desfrute, viva o momento e certamente ele valerá a pena.
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