Barbe-Nicole Ponsardin, a Veuve Clicquot, criou uma das marcas de luxo mais importantes do mundo, conheça a história da Maison que celebra 250 anos
Arnaldo Grizzo Publicado em 03/10/2022, às 13h00
O mundo está em movimento perpétuo, e devemos inventar as coisas de amanhã. É preciso estar à frente dos outros, ser determinado e exigente, e deixar que sua inteligência dirija sua vida. Aja com audácia”.
Esse lema ficou eternizado em uma das milhares de cartas escritas por uma mulher que transcendeu seu tempo e criou uma das marcas de luxo mais importantes do mundo.
Basta ver a quantidade de cartas escritas ou recebidas por Barbe-Nicole Ponsardin para se ter ideia de sua determinação. Há mais de 100 mil nos acervos da casa Veuve Clicquot, o que representa cerca de 7 mil escritos por ano. A citação que abre este artigo está em uma das diversas correspondências da viúva para uma de suas netas. Certamente foi um conselho que ficou gravado não só na mente de seus descendentes, mas no coração de sua empresa, que, em 2022, completa impressionantes 250 anos de história.
E, graças à Barbe, essa trajetória é marcada por uma série de acontecimentos que determinaram não somente o sucesso da marca Veuve Clicquot como também o êxito de Champagne em se tornar uma das bebidas mais luxuosas do mundo. Definitivamente, de inovações técnicas a um marketing visionário, Barbe-Nicole Ponsardin ajudou a moldar todo o conceito de Champagne, transformando a bebida no sucesso que é hoje.
Mas como uma mulher foi capaz de fazer isso no século XIX? Barbe-Nicole era filha de um poderoso empresário do ramo têxtil de Reims. Ela nasceu em 1777 e viu o pai, Ponce Jean Nicolas Philippe Ponsardin, mudar de posição política pouco antes da Revolução Francesa, abarcando o jacobinismo. E isso fez com que os Ponsardin prosperassem no período pós-monarquia.
A bem educada Barbe-Nicole então já conhecia François Clicquot, seu futuro marido, pois ambas as famílias eram do ramo têxtil, concorrentes e viviam bastante próximas. Em 1772, Philippe, patriarca dos Clicquot, decidiu ampliar os negócios e, já possuindo vinhedos, abriu uma casa de Champagne. Pensando em manter e ampliar seus domínios, fez o que era costume na época e planejou casar seu filho com uma herdeira dos Ponsardin, numa espécie de casamento arranjado como era praxe nos tempos da monarquia.
Assim, aos 21 anos, Barbe-Nicole casou-se com François Clicquot. O jovem curiosamente interessou-se muito mais pelo comércio de vinhos do que pelo ramo têxtil. Contra a vontade do pai, que não queria expandir essa área de negócio, François passou à produção de vinhos e colocou a esposa a par de tudo o que estava aprendendo. Apesar de um início relativamente bem sucedido, em 1805 os negócios estavam quase à beira da falência. Para piorar, François adoeceu (provavelmente de febre tifoide) e morreu subitamente. Mas o que deveria ser o fim de um empreendimento acabou por se tornar uma oportunidade.
Devastado com a morte do filho, Philippe Clicquot encerraria a operação com vinhos. Contudo, diz-se que Barbe-Nicole, então com apenas 27 anos e ainda pouco conhecimento no comércio, teria dito ao sogro que gostaria de assumir o negócio e pediu que investisse nela – arriscando toda a sua herança. Surpreendentemente, Philippe consentiu. Antes, porém, fez com que ela passasse por algumas provações e aprendizados. Durante quatro anos, ela estagiou com um famoso enólogo da época, Alexandre Fourneaux, para entender do negócio do vinho espumante, mas, mesmo assim, a empresa não prosperou. Seu vinho não tinha o favor das cortes francesas na época, que “apadrinhavam” os Moët, por exemplo, e o colapso estava novamente à porta, muito devido aos conflitos de Napoleão Bonaparte.
Com as guerras napoleônicas em curso e as fronteiras da Europa fechadas para produtos franceses, era difícil acessar os consumidores estrangeiros e dar vasão à produção. Barbe-Nicole sabia do potencial de vendas para a corte russa, que era ávida pelos Champagnes doces da época (havia quase 300 gramas de açúcar na bebida), mas os bloqueios navais impediam o comércio. Ela, contudo, contrabandeou seus vinhos da França até Amsterdã, onde esperou que a paz fosse declarada. Assim que o acordo foi assinado, o carregamento foi para a Rússia, chegando lá antes de seus concorrentes.
Tão logo apreciou o Champagne da viúva, o czar Alexandre I declarou que era o único tipo que ele beberia e assim floresceu o marketing da empresa. Em pouco tempo, seus produtos se tornaram uma febre e isso gerou uma demanda extraordinária. Então foi preciso ligar com novos “problemas”.
O processo de produção de Champagne era (e ainda é) bastante lento. São duas fermentações e um longo tempo para tentar retirar as leveduras mortas e tornar o espumante mais límpido; e, com isso, bem mais atrativo para os consumidores. Foi então que Barbe-Nicole ajudou a desenvolver um método inovador, em que as garrafas ficavam em uma mesa, viradas de cabeça para baixo, e eram levemente giradas de tempos em tempos para que as leveduras se concentrassem no gargalo – e fossem posteriormente eliminadas com mais facilidade. Em 1816, ela então criou a mesa de remuage, método usado até hoje.
Isso lhe permitiu produzir espumantes mais límpidos e mais rapidamente, dando vasão à alta demanda. E a técnica ficou restrita ao seu conhecimento por tempo suficiente para que ganhasse ainda mais vantagem sobre seus concorrentes. Poucos anos depois, Barbe-Nicole também estaria por trás da produção dos primeiros Champagne rosés feitos com mistura de vinho tinto. Isso sem falar que, em 1810, ela teria sido uma das pioneiras em lançar um espumante safrado, mesmo ano em que criou sua própria empresa, a Veuve Clicquot-Ponsardin.
Quando faleceu em 1866, a Veuve Clicquot exportava vinhos para os confins do mundo e Champagne havia se tornado uma bebida sinônimo de luxo, apreciada principalmente pelas camadas mais altas da sociedade de seu tempo. Sua relação com seus clientes e fornecedores era sempre direta e por isso também a elaboração de tantas e tantas cartas ao longo da vida, já que ela nunca saiu da França. A viúva também não se casou novamente, pois, caso fizesse, provavelmente teria que abrir mão de sua empresa, o que, conhecendo sua personalidade bastante ambiciosa e empreendedora, certamente não seria uma opção. Graças a tudo isso, até hoje ela é considerada a Grande Dama de Champagne, pois foi quem moldou todo o mito em torno da bebida.
Junto com Moët & Chandon, que atualmente pertence ao mesmo grupo (LVMH), Veuve Clicquot é uma das marcas de Champagne mais vendidas do planeta. Seu emblemático rótulo amarelo foi registrado em 1877 e até hoje é a marca da casa, que possui em torno de 390 hectares de vinhedos, além de comprar uvas de cerca de 400 viticultores da região. Aproximadamente 95% dos vinhedos Veuve Clicquot são classificados como Grand ou Premier Cru. A composição é de 47% de uvas Chardonnay, 36% Pinot Noir e 17% Pinot Meunier.
O lema da casa é: “Apenas uma qualidade, a melhor”. Em sua história, houve apenas 11 chefs-de-cave na Veuve Clicquot, sendo que o mais recente é Didier Mariotti, que assumiu em 2019 após a saída de Dominique Demarville – que havia ficado 10 anos à frente dos espumantes da casa. Demarville certamente foi um dos mais “inovadores” no cargo, criando o rótulo Extra Brut Extra Old (feito só com vinhos de reserva), o Cave Privée (vintages envelhecidos por longo tempo), a linha Rich (voltada para a coquetelaria) e mudar a estrutura de La Grande Dame, que a partir da safra 2008 contou com mais de 90% de Pinot Noir. No entanto, talvez o nome mais marcante a passar por Veuve Clicquot tenha sido o de Roger Zèches, filho de Alfred Zèches, que havia ficado impressionantes 51 anos como chef-de-cave. Roger assumiu em 1941 e, com tanta experiência acumulada, consolidou o estilo da casa como se conhece atualmente.
Para manter o estilo do “rótulo amarelo”, a Veuve Clicquot tem hoje uma das maiores reservas de Champagne, com 400 tanques de 17 anos diferentes. Seu espumante base usa costumeiramente de 25 a 45% dos vinhos de reserva. “Nossos vinhos de reserva são envelhecidos cru por cru, variedade por variedade, safra por safra”, apontou Demarville à ADEGA em entrevista anos atrás. São 29 prensas para fazer todo o trabalho. A predominância de Pinot Noir (50-55%) fornece a estrutura típica de Veuve Clicquot, enquanto o Chardonnay (28-33%) acrescenta a elegância e finesse, e um toque de Meunier (15-20%) completa o blend. O envelhecimento nas históricas Crayères é de, no mínimo, três anos.
Em 1972, para marcar seu 200º aniversário, a casa lançou a cuvée La Grande Dame e criou o Veuve Clicquot Business Woman Award, um prêmio em homenagem ao espírito empreendedor de Madame Clicquot. A safra 2012, recentemente lançada, é a 23ª edição desse rótulo que já teve os vintages de 1962, 1964, 1966, 1969, 1970, 1971, 1973, 1975, 1976, 1979, 1983, 1985, 1988, 1989, 1990, 1993, 1995, 1996, 1998, 2004, 2006, 2008 e 2012.
Como dito, até 2008, La Grande Dame tinha um certo equilíbrio entre Pinot Noir e Chardonnay, mas sempre com porcentagem levemente maior da uva tinta. Desde aquele vintage, contudo, a proeminência de Pinot se elevou e a Chardonnay foi sendo usada mais para manter um toque sutil de frescor. Essa cuvée permanece por 10 anos descansando nas caves até ir ao mercado. E quando vai, merece também edições especiais, como a mais recente, elaborada pela renomada artista japonesa Yayoi Kusama. Até hoje, Veuve Clicquot honra o espírito de Barbe-Nicole, valorizando as mulheres e inovando sempre, mesmo em um mercado bastante tradicional. Seu legado certamente vai durar muito mais do que 250 anos.
Esse branco brut (6 g/l de açúcar) é elaborado pelo método tradicional a partir de um corte de 90% Chardonnay e 10% Pinot Meunier, sem fermentação malolática e mantido cerca de 8 anos em contato com as borras antes da degola. Paciência com ele na taça ou na garrafa. No início se mostra fechado, mas depois traz notas florais, de ervas e de especiarias envolvendo suas frutas brancas e de caroço maduras, tudo equilibrado por sua acidez elétrica e textura firme e cremosa. Tem final cheio e persistente, com toques tostados, cítricos, de umami e de frutos secos. Está excelente agora, mas tem tudo para ficar ainda melhor nos próximos 20 anos.
Este brut é elaborado pelo método tradicional e composto a partir de 50% Pinot Noir, 30% Chardonnay e 20% Pinot Meunier, sem fermentação malolática e mantido por, pelo menos, 36 meses em contato com as borras antes da degola. Impressiona pela vivacidade, pela tensão e pela acidez elétrica, uma versão tensa e vertical, de final persistente, com toques tostados, de fermento, de especiarias doces e de limão siciliano, que convidam a uma segunda taça.
Elaborado pelo método tradicional a partir de Pinot Noir, Chardonnay e Pinot Meunier, acrescido de 12% de vinho tinto de Pinot Noir e mantido, pelo menos, 36 meses em contato com as leveduras, essa é mais uma ótima edição desse vinho. Frutas vermelhas e de caroço envoltas por notas florais, tostadas, de fermento e de especiarias doces se sentem no nariz e se confirmam no palato. Estruturado, tem ótima cremosidade, bom volume de boca, acidez vibrante e final amplo e persistente, com toques salinos, cítricos, de frutos secos e de morangos.