Como o gosto dos consumidores influenciou e vai continuar influenciando a produção dos vinhos da renomada Nieto Senetiner
por Christian Burgos
RG: “Cadus passou por fases, mudanças sutis que, no fundo, têm a ver com as mudanças nos consumidores, pois os consumidores não são elementos estáticos” |
Roberto Gonzáles, enólogo da vinícola argentina Nieto Senetiner, é daquelas pessoas que sempre encanta por sua visão do vinho e surpreende com a capacidade de ensinar mais – mais profundamente e mais claramente do que a grande maioria dos enólogos. Indo muito além dos chavões da moderna vitivinicultura, sua sabedoria, muitas vezes, passa despercebida por seu comportamento quase sempre tímido e modesto, mas é certamente a chave da qualidade de seus vinhos.
Neste encontro exclusivo, ele e o agrônomo Tommy Hughes nos brindaram com uma verdadeira aula. Enquanto degustávamos seus ícones e novidades que chegarão no próximo ano, discorremos sobre vinificação, vinhedos e a história do gosto no mundo do vinho.
Dada a qualidade do que é produzido no Brasil, é muito difícil para um espumante argentino competir aqui. Mas seu Brut Nature é uma bela exceção. O que há de diferente em seu espumante?
Roberto Gonzáles - Primeiramente colocamos como objetivo trabalhar com 100% de Pinot Noir. Outra característica é que, quando começamos a trabalhar o conceito do espumante Nieto Senetiner, existia na Argentina uma premissa muito francesa que não tivesse cor. A verdade é que não havíamos nos dado conta de que esse conceito de eliminar a cor prejudicava a estrutura de boca do espumante. Priorizava a acidez, mas tornava-o muito leve. Além disso, as substâncias para diminuir a cor, em geral, também faziam perder os aromas. Então, com o objetivo de beneficiar a boca e o nariz, não tiramos a cor do Pinot Noir. Na Argentina, tivemos que aculturar as pessoas de que na França os grandes Champagnes, sobretudo aqueles com capacidade de guarda, são feitos com Pinot Noir.
E como você compara o Pinot Noir na Argentina versus França?
RG - Na Argentina, o Pinot Noir, junto com a cor, conserva muita fruta e potência sem perder o frescor. Creio que isso acontece em outras partes do Novo Mundo e que, neste nível de preço – abaixo dos R$ 100 –, o consumidor busca mesmo o conceito da fruta. Pela cultura alimentar do Novo Mundo, por exemplo, vocês brasileiros têm as frutas muito coloridas e aromáticas no alimento. O consumidor recorda este conceito e encontra as frutas saborosas e frescas neste tipo de espumante. Nos preços mais elevados, prioriza-se a capacidade de guarda, as leveduras e complexidade que caracterizam outra ocasião de consumo...
E a perlage?
RG - Tem muito a ver com o Pinot Noir que, tendo mais concentração de sólidos, faz com que a perlage seja menor e se desprenda mais lentamente. Ao passo que no Chardonnay a perlage é muito maior e se desprende mais rápido.
E as mudanças em seu ícone Malbec, o Cadus?
RG - Cadus tem um conceito que foi desenvolvido em 1995, 96, quando, no mundo, priorizavam- se os vinhos superconcentrados, com estrutura, e que ainda não eram produzidos na Argentina. Tinha a ver com o público consumidor que buscava esse estilo, muito influenciado também pelas mãos de Robert Parker e das revistas especializadas, cujo foco era o redescobrir dos Super Toscanos. Nessa linha, Nieto Senetiner buscou um Malbec concentrado com toda a potência que essa uva e nosso terroir poderiam dar. Tommy Hughes redesenhou o vinhedo para que as plantas pudessem nos dar a qualidade de uva que precisávamos. Evidentemente que Cadus passou por fases, mudanças sutis que, no fundo, têm a ver com as mudanças nos consumidores, pois os consumidores não são elementos estáticos que param em um momento de consumo pontual. Os consumidores vão mudando, e isso tem a ver com a entrada de novas gerações no consumo do vinho.
Tommy Hughes |
"Cada consumidor tem uma visão de mundo através de sua trajetória histórica e cultural, mas também do ponto de vista de moda. Nesse ponto, o conceito de Single Vineyard vem atender aos diversos gostos"
E como foram mudando?
RG - Refletindo um pouco, no ano 2000, os vinhos eram muito concentrados e usavam barrica de alta tosta. Era um conceito pontual da filosofia Cadus...
Era uma busca de equilíbrio por potência?
RG - Isso mesmo. E se você investiga o porquê deste conceito, verá que a geração “baby boomer”, que representava o consumo naquele momento, estava formatada em dois conceitos: em fumar – especificamente charutos – e no consumo de Coca-Cola como sua bebida principal. Havíamos entrado na globalização total e a Coca-Cola tinha tido grande impacto na sua formação, por exemplo, no que tange à cor. Então era o auge dos Super Toscanos e dos vinhos concentrados. Naquele ano, nosso vinho tinha o conceito de alta tosta, muita potência e muito impacto, que capturava a atenção do consumidor.
Isso muda em 2000?
RG - A partir de 2000 entramos numa fase de ir baixando a concentração sucessivamente e aos poucos, fazendo Cadus um pouco mais... calmo. Creio que tem a ver com novas gerações que chegavam ao consumo e que tinham na baunilha o elemento mais dominante de sua busca no consumo de vinho. Ou seja, a madeira era um atributo qualitativo, mas agora não do ponto de vista do impacto, mas, sim, da complexidade.
Esse conceito da baunilha era uma verdade em todo o mundo ou principalmente nos Estados Unidos?
RG - A baunilha é um conceito mais “americanizante”. Naquele momento, as revistas e Parker levavam o foco ao consumidor americano. Digamos que até 2002 e 2003, a forte vertente que ditava as linhas do consumo do vinho era a Inglaterra, e aí se priorizava outro conceito, um conceito mais clássico. Tenhamos em mente que onde se bebe mais Jerez e Vinho do Porto é Inglaterra. O modelo da baunilha vem de uma mudança rumo aos Estados Unidos, primeiro com a descoberta de Napa Valley, seguido de uma explosão das virtudes da baunilha nos meios de comunicação. Você pode encarar que o primeiro alimento industrial que o americano desfruta é o iogurte. E o primeiro aroma artificial que se agrega ao iogurte é a baunilha. Ou seja, o consumidor tem foco inconscientemente, apesar de envelhecer, no alimento que marcou sua infância, é o que lhe impacta dali para a frente.
É uma questão de conforto, segurança...
RG - Exatamente. Os alimentos que sua mãe lhe dá em seus primeiros anos são os alimentos mais seguros e impactam sua formação como consumidor. Por isso, você vê que todas as companhias que conseguem introduzir seus alimentos na primeira infância têm sucesso em colocar seus alimentos também em nossa etapa adulta
Além disso, temos os sorvetes nos Estados Unidos...
RG - Sim, o de baunilha é o mais clássico! Então esses aromas tem muito a ver com as gerações de consumidores. Você pode olhar a geração do Milênio; o que buscam como conceito são as especiarias, um vinho com fruta, com algum frescor, mas especiarias. E o próximo padrão de vinhos irá nessa direção. A verdade é que, desde os 2000, Nieto Senetiner, através de Cadus, busca atenuar a estrutura, a concentração, fazê-lo balanceado entre aromas e boca, e com características da baunilha. A verdade é que esta geração de 50, 60 anos vai perdendo o papel de protagonista para a nova geração com outros padrões de consumo.
Roberto Gonzáles |
"Digamos que até 2002 e 2003, a forte vertente que ditava as linhas do consumo do vinho era a Inglaterra, e aí se priorizava outro conceito, um conceito mais clássico. O modelo da baunilha vem de uma mudança rumo aos Estados Unidos"
Como se dá a mudança nos vinhedos para atender esses novos estilos?
Tommy Hughes - Tivemos que mudar também nossos “terrunios” (terroir na Argentina) de onde vem o Cadus Single Vineyard. Nos primeiros anos, vinha de Vistalba, onde está nossa vinícola e é, digamos, uma zona mais fria, mais úmida e com solo pobre. Em 2000, mudamos para Agrelo, numa maior altitude, porque, para nós, a altitude e o solo mudavam consideravelmente os vinhos. Degustando vinhos de outras vinhas percebemos que Agrelo produzia vinhos mais amáveis, com mais cor e frutas mais maduras. Agora estamos numa nova fase de separação dos varietais, ou seja, cada variedade em seu solo de maior expressão. Para Single Vineyard apostamos em Agrelo.
RG – A partir do ano que vem teremos dois Cadus Single Vineyard, um de Agrelo e outro de Alto Agrelo ou Vistalba. Um pouco redefinindo o conceito de descobrimento e valorização do terroir.
É fantástico ver os especialistas começarem a dizer “prefiro Agrelo ou prefiro outro terroir em Mendoza”...
RG - Exato. Quem degusta sente a diferença. Não é tão homogêneo. Neste ano, apresentamos o blend de Vineyards, sendo três terroirs distintos, e cada terroir aporta uma característica ao corte, de acordo com a personalidade de sua zona de cultivo.
E há clones distintos para cada zona?
RG - Exatamente. Os alimentos que sua mãe lhe dá em seus primeiros anos são os alimentos mais seguros e impactam sua formação como consumidor. Por isso, você vê que todas as companhias que conseguem introduzir seus alimentos na primeira infância têm sucesso em colocar seus alimentos também em nossa etapa adulta
É uma questão de conforto, segurança...
TH – Malbec não é um clone, mas uma população de videiras distintas. O que estamos fazendo é selecionar dentro desta população, em que há distintas plantas, aquelas que se comportam de forma igual. Assim, conseguimos obter distintas qualidades e características. A partir daí vamos provando e vendo quais plantas são melhores para cada lugar e condição. Também estamos escaneando o solo por profundidade e gerando um mapa que nos ajuda a escolher as melhores plantas – não clones – para cada solo. Também fazemos um trabalho de fotografia aérea todos os anos e descobrimos as pequenas diferenças que há em um lugar e outro da propriedade. Isso gera um mapa com coordenadas e, com o uso do GPS, você pode corrigir um problema que, às vezes, se dissimula tanto que você não consegue ver simplesmente caminhando pelo vinhedo.
Então seguimos para o Single Vineyard e depois para o Single Block?
RG - É isso. O futuro segue em direção à hiperespecialização.
Hoje a Argentina está numa situação cômoda com o Malbec?
RG - Sim, hoje mais do que nunca.
Mas especificamente no caso de Nieto Senetiner, o que fizeram com Bonarda se converteu num exemplo para o país como um todo. O que pode falar da Bonarda?
RG - Na verdade, Bonarda é muito importante para nós. Foi como redescobrir uma variedade muito antiga. Tenho livros ampelográficos que, em 1915, recomendavam a Bonarda como uma uva de qualidade na Argentina. Acontece que ficamos muito tempo brigando entre quantidade e qualidade, e a Bonarda caiu nas mãos da agricultura quantitativa e não qualitativa. Demos nossos primeiros passos com o Malbec e, em seguida, com o Bonarda que tínhamos em nossos vinhedos. A verdade é que tínhamos experiência em Bonarda, pois, em 1997, 98 e 99, já vendíamos Bonarda no mercado inglês com muito boa aceitação, embora o fizéssemos sem a marca Nieto Senetiner. Com o sucesso, passamos a engarrafá-lo com nossa marca e surpreendentemente essa nossa inovação passou a ter reconhecimento nacional e internacional. Foi um bom trabalho de equipe e modernizante para Argentina do ponto de vista de desenvolver outra variedade.
"A geração do Milênio busca as especiarias, um vinho com fruta, com algum frescor. E o próximo padrão de vinhos irá nessa direção"
Qual é a característica de Bonarda?
RG - A Bonarda tem uma relação folha versus fruto muito distinta das outras variedades. Do ponto de vista enológico também exigiu muita atenção, pois é uma variedade com pele muito sensível e que se rompe com facilidade. Então, temos que trabalhá-la com muito cuidado, fazendo com que a maceração fria seja muito importante para esse tipo de vinho. Além disso, a maceração não pode ser longa, pois esta pele muito fina pode liberar taninos indesejáveis, apesar de a Bonarda não ter grande quantidade de taninos. Outro grande segredo é encontrar uma madeira adequada. Com todos esses cuidados, nosso Bonarda entrou para história como o introdutor da Bonarda de qualidade na Argentina. Hoje estamos acompanhados de muitas outras vinícolas que estão colocando Bonarda como par do Malbec. Ademais, o blend de Malbec com Bonarda vem ganhando boas avaliações da crítica, como os de Suzana Balbo.
Você ressalta a questão da cor. Ela tem tanta importância assim para o consumidor?
RG - Para mim, a primeira coisa que impressiona em uma taça é a cor. O consumidor tem mais facilidade para apreciar a cor do que os descritivos aromáticos. Em geral, o consumidor é mais direto e simples em relação ao vinho: “gosto ou não gosto”. Ele tem a capacidade de perceber a elegância na cor do vinho e, em Nieto Senetiner, a cor equivale a uma mulher que está bem vestida. Em uma região com quase 10 horas diárias de luz solar ativa, que impacta sobre os pigmentos da uva, o vinho mendocino está definitivamente ligado à sua cor. Sem grandes complexidades, o que buscamos é concentração de cor e impacto visual.
Poucas pessoas falam do fator de incidência de luz à medida que se aumenta a altitude. Fala-se muito de amplitude térmica, queda de temperatura e mudança de solo, mas pouco sobre a incidência de luz...
TH – De fato, quando se vai subindo a montanha há mais raios ultravioleta lhe afetando. E, como os grãos são negros – e o negro atrai os raios UV –, a planta tenta se proteger dos raios, assim como nós quando produzimos melanina.
A reação é que a pele da uva fica mais grossa e, com isso, nos beneficiamos, pois temos mais taninos, cor, antocianinas etc. E se, além disso, opera-se uma pequena restrição hídrica no momento em que começam os grãos, você obtém grãos pequenos e maior relação sólido versus líquido. Assim eu consigo entregar mais cor e taninos para Roberto.
RG – Você deve se recordar que a planta da videira tem por função perpetuar a espécie. Não tem como conceito produzir vinho e tudo o que o homem quer fazer dela. O conceito é somente gerar e transmitir a espécie. O grão é seu futuro filho, portanto o que a planta busca em condições limitantes de altitude e amplitude térmica e condições restritivas – em geral de água ou outros componentes – é formar um grão o mais atraente possível, o mais doce possível, para que venha um pássaro o leve para uma zona mais benéfica para a vida. Isso para que possa seguir crescendo em outras condições ambientais mais favoráveis. Portanto, quando se vai mais para cima, em condições mais limitantes, a planta gera grãos capazes de atrair os pássaros e insetos, e isso é o que aproveitamos do ponto de vista humano para ter mais qualidade e fazer um bom vinho. Para nós, as melhores colheitas se dão quando as condições limitantes para a videira a fazem mais esforçada para a manutenção da espécie.
#Q#"A primeira coisa que impressiona em uma taça é a cor. O consumidor tem mais facilidade para apreciar a cor do que os descritivos aromáticos"
E para onde seguirá o consumo no futuro?
RG - Estamos fazendo muita pesquisa de terroir, pois acreditamos que o que vemos hoje como uma grande bolha de um consumidor globalizado não é tão homogêneo, nem tão globalizado. Cada consumidor tem uma visão de mundo através de sua trajetória histórica e cultural, mas também do ponto de vista de moda. Nesse ponto, o conceito de Single Vineyard vem atender aos diversos gostos – gostos de mais concentração, ou por mais acidez, ou por mais aromas de especiarias. São separações sutis que geram
sub-segmentações. Creio que isso tem muito a ver com a valorização dos terroirs.
Hoje também vemos que os consumidores no topo da pirâmide, com muitos anos de degustação, têm uma paixão pelos minerais... Haverá uma mudança nessa direção?
RG - Isso é verdade. Ao subir os terroirs na Argentina e a ênfase que se coloca em vales como o Vale de Uco, tem a ver com a busca da mineralidade e da acidez natural. E qual a importância disso? Isso assegura a longevidade e, sobretudo na fase de garrafa, tem a ver com a formação do que os franceses chamam de “bouquet”. Isso nos traz dois conceitos: um conceito pontual de acidez e mineralidade e um conceito de maior acidez volátil. Nós, técnicos argentinos, passamos pelo manejo microbiológico puro – na direção das restrições a bactérias acéticas –, e hoje se busca um desenvolvimento de bactérias acéticas até gerar 0,7 gramas por litro de ácido acético. Este ácido, depois do vinho engarrafado, gera, junto com o álcool do vinho, alguns compostos químicos que são os éteres; e estes denominam o “bouquet”. Os franceses sabiamente definem “bouquet” como um arranjo de flores, ou seja, são aromas de origem floral e que dão, digamos... aristocracia.
VINHOS PROVADOS | ||
Cadus Malbec 2008 - Blend Of Vineyards | R$ 120 | 92 pontos |
Nieto Senetiner Bonarda Limited Edition 2008 | R$ 102 | 91 pontos |
Nieto Senetiner Reserva Malbec 2009 | R$ 33 | 88 pontos |
Confira avaliações completas dos vinhos na seção CAVE (a partir da página 81)