Câmara Setorial da Viticultura, Vinhos e Derivados encaminha sugestão de adoção de selo fiscal para vinhos nacionais e estrangeiros e cria polêmica entre os setores envolvidos
por Christian Burgos E Sílvia Mascella Rosa
Alguns fatos bastante óbvios sobre o Brasil. Em primeiro lugar, somos um país burocrático. Em segundo, somos um país que paga uma das maiores cargas tributárias do mundo. E em terceiro, somos um país que consome pouco vinho (menos de dois litros por pessoa ao ano) e nem todo ele de qualidade. Mas, cabe aqui um quarto (e nada honroso) ponto: somos um país que adota como prática cotidiana o “jeitinho” e a propina.
Sendo assim, qualquer pessoa que resolvesse comercializar um produto no Brasil e desejasse ganhar mercado de forma limpa e honesta lutaria qual batalha? Parece óbvio responder que a batalha da qualidade e da simplicidade. Menos burocracia, menos impostos, mais qualidade e transparência nas relações com um consumidor que já é frequentemente aviltado pelo governo e pelas corporações.
No últimos meses, no entanto, o que tem se observado é uma ação contrária. Embora uma grande pesquisa realizada em 2008 – numa parceria entre governo e iniciativa privada – tenha mostrado que o consumidor de vinho (e também o vendedor) precisa urgentemente de informação para aprender a beber melhor e com responsabilidade, uma parte do setor vitivinícola parece determinado a investir tempo e dinheiro em burocracia.
Paradoxo brasileiro
Apesar de iniciadas algumas ações muito necessárias de aprimoramento da imagem do vinho (especialmente do brasileiro), o tão desunido setor conseguiu se juntar para, paradoxalmente, criar mais uma burocracia na comercialização dos seus próprios vinhos.
A Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Viticultura, Vinhos e Derivados – entidade consultiva junto ao Ministério da Agricultura – aprovou o encaminhamento de uma solicitação à Receita Federal para que todos os vinhos, nacionais e importados, sejam obrigados ao uso do Selo de Controle Fiscal durante dois anos. Esse selo já é usado em produtos como o cooler e os uísques e significa, dentre outras medidas, que o produto pagou o IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados.
Em princípio, não parece nada absurdo, uma vez que um dos problemas mais graves aqui é a entrada de vinhos contrabandeados. O selo, em parte, permitiria um maior controle dos produtos e mesmo o reconhecimento por parte do consumidor de que ele está comprando um produto selado, teoricamente oficial. E como a ilegalidade é coisa de polícia, o fato de o selo existir permitiria que a Receita Federal atuasse contra os marginais do vinho, coisa que o Ministério da Agricultura não consegue fazer.
Os entraves
O enorme “porém” que se apresenta (e que divide o setor, ainda que a maioria dos dirigentes tenham concordado com a medida publicamente, visto que mais de 70 vinícolas brasileiras protocolaram no Ministério da Fazenda um abaixo assinado contra a implementação do Selo Fiscal) é que o selo é um retrocesso que vai punir os que já trabalham corretamente e criar somente mais um entrave a ser transposto para aqueles que operam por baixo do pano.
É uma iniciativa que já deu errado em outros países e foi cancelada. Os selos teriam que ser pedidos às delegacias regionais da Receita com antecedência pelas empresas, e cada vinícola teria que selar as próprias garrafas. Para as grandes empresas nacionais e estrangeiras, isso seria somente mais um detalhe administrativo e mais uma fase em sua linha de rotulagem.
Para os pequenos e médios, isso seria um entrave administrativo e um impacto nas contas já apertadas desses produtores que lutam para fazer bons e diferenciados vinhos atuando na legalidade e pagando seus impostos corretamente. Ou seja, um golpe em uma indústria que tanto luta para crescer no País e que só ganha público enquanto mantêm sua diversidade.
Tudo isso sem contar as importadoras, que teriam que comprar e enviar selos para uma enormidade de produtores ao redor do globo e tentar convencê-los da necessidade de selar suas garrafas para vendê-las em um País que bebe tão pouco vinho, uma vez que os selos devem ser colocados no local de origem do produto.
Dentro da legalidade
É preciso deixar claro que ninguém pode ser contrário à correta arrecadação de impostos e à venda com nota fiscal, fato que, em longo prazo, poderia até ser argumento na negociação de valores mais baixos na carga tributária, gerando condições de igualdade entre brasileiros e estrangeiros.
Para atuar com correção, é necessário reivindicar uma legislação mais moderna e justa e uma eficaz fiscalização governamental, que seja capaz de conter os descaminhos dos vinhos falsificados de qualquer parte e controlar produtores que trabalham em parcas condições de higiene e qualidade.
Mas, nada disso precisa ser feito com a criação de mais burocracia e com a geração de maior custo aos produtores. Uma discussão democrática deve propor (e cobrar) que o Governo faça a sua parte, fiscalizando e controlando, e que o produtor se encarregue da qualidade de seu produto, que conquistará o mercado por seus méritos e pela divulgação correta e não pela exclusão da concorrência leal e pela burocratização.
Em busca de soluções
ADEGA defende, como princípio básico, ações éticas que tragam ao leitor vinhos melhores e mais baratos aos brasileiros. Assim sendo, qualquer ação antiética ou de encarecimento do vinho é contrária à nossa missão e merece repúdio.
Não basta apenas levantar um brado contra o selo, mas compreender que os problemas elencados de contrabando e sonegação (e porque não de saúde pública), são sérios e merecem atenção. O que não podemos é aceitar aplicar a medicação errada para a doença. Ou a aplicação em tal medida que produza mais efeitos colaterais do que traga a cura. Efeito este que, neste caso, será sentido em todas as empresas sérias e também no bolso do consumidor.
É fato que já existem leis e punições estabelecidas para sonegadores e contrabandistas, não carecendo de novos dispositivos. Cabe perguntar se a capacidade de fiscalização nas fronteiras do País e em suas estradas e estabelecimentos comerciais sofrerá alguma mudança com a implementação do selo. Acreditamos que não e, dessa forma, o selo não resolve o problema.
Vale implementar, isso sim, uma campanha de consciência do consumidor sobre os riscos à sua saúde, ao seu bolso e à cidadania ao adquirir produtos falsificados, contrabandeados ou sem autorização sanitária. Ao mesmo tempo em que essas ações de fiscalização devem ser intensificadas e divulgadas pela imprensa séria.
Mais ainda, devemos ter em mente que o setor todo se beneficiaria mais com ações positivas voltadas à qualidade, ao aumento do consumo responsável, à diminuição de custos e ao aumento da produtividade.
#Q#Atrás das causas
É impossível não pensar que cada garrafão de vinho ilegal rouba o consumo de um vinho legal, e isso pode ser um dos responsáveis pelo grande acúmulo de vinhos não comercializados nos estoques dos produtores. Mas, novamente pensamos mais nos sintomas mais visíveis do que nas causas.
Uma dessas causas é: por que a lei da oferta e procura não funciona em nosso mercado? Para respondê-la é preciso pensar que a equação que compõe a oferta de vinhos engloba uma variável difícil, o terroir. E como os produtores historicamente lutam contra o terroir que possuem, eles, muitas vezes, travam uma luta inglória contra seu próprio mercado, gastando dinheiro para fazer um algo que não terá a qualidade exigida.
Um exemplo: chove muito no verão da Serra Gaúcha, o que dificulta o cultivo de várias uvas tintas que necessitam de longa maturação. Isso é simplesmente uma variável do terroir daquela região. No entanto, algumas uvas brancas encontram excelente espaço para crescer. Por que não trocar alguns desses vinhedos por variedades mais eficientes no terroir e no mercado?
Pensando no espumante
Em conversa com o vinicultor Juarez Valduga, ele apontou que existe um enorme potencial adicional de mercado para o vinho brasileiro, principalmente para o produto mais emblemático da Serra Gaúcha, o espumante. Juarez crê que existe uma demanda reprimida e um público esperando para ser conquistado com a qualidade já alcançada. Isso sem contar o potencial de exportação, que já se mostra nos números do programa ‘Wines from Brazil’.
Assim, parece um contrassenso não utilizar o poder de mobilização do setor junto ao governo para atacar a raiz do problema e iniciar de pronto um programa de reconversão de vinhedos, erradicar hectares de uvas de mesa ou tintas com menor potencial em seu terroir, para replantio de castas destinadas à produção de espumantes, cujo valor o mercado já reconhece e aprecia.
É importante defender, também, a viabilidade econômica do ponto de vista do incentivo fiscal. O Estado está promovendo leilões insuficientes para comprar o excesso de produção e gastando dinheiro nisso. Não somos contra fazê-lo, pois esta é uma medida emergencial, mas seria muito mais importante, passada a emergência, que o Estado fornecesse recursos fiscais para transformar custo por hectare em receita por hectare de vinhedo. Como? Fazendo a seguinte conta: cada hectare de vinhedo produtor de uvas para espumantes produz entre 8 e 15 mil quilos, a grosso modo entre 8 e 15 mil garrafas de espumante. Tomemos 10 mil garrafas para facilitar a conta. Cada garrafa de espumante gera R$ 7,5 reais de impostos ao Estado, ou seja, cada hectare gerará, em média, R$ 75 mil em impostos. O custo para a reconversão de 1 hectare de vinhedo é de cerca de R$ 25 mil. Some-se a isso o custo de operação deste vinhedo até que se torne produtivo e teremos R$ 45 mil por hectare. Ganha o Estado e ganham os produtores.
Da mesma forma que, ao qualificarmos a população para trabalhar, fazemos melhor por todo o desenvolvimento da nação do que simplesmente distribuir cestas básicas. É possível pensar em “batizar” um novo projeto de “Qualificação de Vinhedos” para retirá-los da marginalidade do mercado e transformar ações tacanhas e superficialmente estudadas em uma realidade em que toda a cadeia produtiva seja beneficiada, sem que se tenha que lamber um só selo.
Chega de medidas aparentemente mágicas e protecionistas! Vamos parar de trabalhar na direção inversa do interesse do consumidor e chega de contar com favores do governo. Vamos imediatamente buscar soluções viáveis para as causas dos problemas e não para os sintomas. Afinal de contas, vinho é saúde e prazer, e não burocracia e briga entre vizinhos!
Isso é coisa de polícia |
A ação é praticamente inédita e ironicamente conveniente ao momento, mas seu resultado é, de qualquer forma, estarrecedor. Nos primeiros quinze dias de abril, uma fiscalização no Rio Grande do Sul apreendeu, em dez municípios, 3.982,8 litros de vinhos irregulares, em garrafões e garrafas de dois litros sem procedência definida. O selo resolveria esse problema ou a contínua fiscalização seria mais eficaz? Curiosamente a informação sobre o resultado desta grande operação não aponta uma garrafa de vinho fino sequer, apenas vinho de mesa. Não seria o caso de aproveitar a sugestão de que o selo seja adotado experimentalmente por dois anos e implementá-lo nos vinhos de mesa, para então avaliar a utilidade também no vinho fino? |