Nobre desde o nascimento

Almaviva, um dos maiores ícones do Novo Mundo, surgiu da junção de um clássico francês e um clássico chileno

por Arnaldo Grizzo

Num domingo de fevereiro de 2006, uma vasta plateia estava no Teatro Municipal de São Paulo para um concerto de ópera. Na programação, Mozart. Aquele era o ano de comemoração dos 250 anos do nascimento do compositor austríaco. A ópera a ser encenada naquele dia era uma de suas mais famosas, "As bodas de Fígaro".
Quem não se lembra da cena do Pica-Pau do desenho animado, em que ele canta um dos trechos mais populares de ópera: "Largo al factotum"? Essa ária, na verdade, é do "Barbeiro de Sevilha", peça operística composta por Rossini, também baseada numa obra de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais. Contudo, tanto no "Barbeiro" quanto n"As bodas", dois personagens se destacam: Fígaro - o factotum, uma espécie de serviçal que faz tudo - e o Conde Almaviva - retrato caricato da nobreza permissiva do fim do século XVIII.

NOME É BASEADO EM PERSONAGEM
FAMOSO DE ÓPERAS BUFAS
DE MOZART E ROSSINI


Ambas são óperas bufas (cômicas). No "Barbeiro", a história se desenrola até o conde conseguir raptar Rosina, protegida de um importante médico da cidade, para casar-se com ela. Depois de diversas tentativas engenhosas, arquitetadas por Fígaro, Almaviva acaba conseguindo seu intento através da força e de sua posição social. N"As bodas", é Fígaro quem vai se casar, mas o conde, que há pouco havia abolido o direito da "primae noctis" em seus domínios - no qual o senhor feudal tinha o direito de se deitar com as virgens antes das núpcias -, parece estar cortejando sua futura esposa. Depois de diversas confusões que despertam o ciúme tanto do conde e da condessa, quanto do servo e sua noiva, tudo termina em festa e reconciliação entre os casais.

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Savoir-faire do Velho Mundo e engenhosidade do Novo Mundo
Ao final do espetáculo no teatro, a plateia paulistana estava extasiada. Saindo de lá, alguns enófilos certamente optaram por degustar um vinho que combinaria bem com o espírito da noite após um espetáculo que acolhia um tom clássico com o divertimento. Foi pensando nesse tipo de combinação que, em 1996, um clássico do vinho bordalês, a casa Baron Phillipe de Rothschild - detentora do lendário Mouton Rothschild -, decidiu voltar seus olhos para uma das promissoras potências do Novo Mundo do vinho, a chilena Concha y Toro - que faz os mundialmente conhecidos rótulos Casillero del Diablo, por exemplo.
Nascia Almaviva, uma joint venture, um vinho e posteriormente uma vinícola - de desenho futurista que foi concluída no ano 2000. A baronesa Phillipine de Rothschild, seguindo o empreendedorismo do pai, lançava-se ao Novo Mundo. Desde 1979, Rothschild já tinha uma operação conjunta na América, mas nos Estados Unidos, com Robert Mondavi, para a produção do aclamado Opus One.
Junto com a Concha y Toro, atualmente considerado o segundo maior grupo vinícola do mundo, Rothschild criou algo novo e que logo começou a ser cultuado. Para esse trabalho em conjunto, a vinícola chilena - que possui terroirs por toda a extensão do país andino - separou uma parcela de 85 hectares em Puente Alto, no Vale de Maipo, onde ela já produzia o maior ícone da casa, o vinho Don Melchor.

ALMAVIVA É UMA JOINT VENTURE
ENTRE ROTHSCHILD E CONCHA Y TORO.
A PRIMEIRA SAFRA É DE 1996

Cultura mapuche e bordalesa
O nome, Almaviva, veio do personagem espanhol criado por Beaumarchais, um autor francês. O rótulo utiliza a escrita original do dramaturgo, que, por seu deboche aos costumes da nobreza francesa do século XVIII, teve "As bodas de Fígaro" censuradas durante muito tempo por Luís XVI, que acabou revogando a ordem por influência de Maria Antonieta.
Além disso, a composição ainda tem três símbolos estilizados da bandeira mapuche, povo indígena da parte central do Chile que resistiu bravamente ao domínio inca, à colonização espanhola e às guerras de independência chilena, sobrevivendo até hoje. O desenho, encontrado sobre os tambores feitos para um ritual indígena, simboliza a visão do universo dos mapuches. As linhas em forma de cruz representam os quatro pontos cardeais e, dentro, há desenhos simbolizando as quatro estações do ano.

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O vinho
Sintetizadas as influências francesas e chilenas, o primeiro vinho, de safra 1996, foi lançado em 1998 e prontamente aclamado pela mídia especializada. O primeiro blend tinha 75% de Cabernet Sauvignon, 19% de Carménère e 6% de Cabernet Franc, que foi envelhecido por 16 meses em barricas francesas de primeiro uso. Era a junção do tradicional corte bordalês com uma uva que acreditava-se desaparecida e logo se tornaria emblemática no Chile.
Durante os anos seguintes, o blend mudou pouco. Em algumas safras, a Cabernet Franc não foi usada (2000 e 2004) e, nas mais recentes (2006 e 2007), acrescentou-se uma ínfima parte de Merlot - cerca de 2% - à mistura das Cabernets e da Carménère.
Notas de groselha, cedro, fumaça, carne assada, combinadas com uma fabulosa textura e opulência, além de taninos suaves e ricos, que sugerem um envelhecimento digno de um grande vinho de Bordeaux, costumam formar o paladar desse novo-clássico chileno, que tão logo nasceu já alcançou um status fenomenal e foi dito como sendo um Grand Cru Classé. Como no Chile não há uma classificação de vinhos oficial - como na região francesa -, ele foi nomeado como "Primer Orden".

BLEND ATUAL É UM
CORTE DE CABERNET SAUVIGNON,
CABERNET FRANC,
MERLOT E "CHILENA" CARMÉNÈRE

Terroir
A região de Puente Alto é reconhecida por oferecer as condições ideais para a Cabernet Sauvignon, tanto que, desde 1987, a Concha y Toro usa as uvas desse terroir para compor o Don Melchor, vinho que homenageia o fundado da vinícola. Na base da Cordilheira do Andes, o solo é pedregoso, o clima frio e os invernos chuvosos. No verão, os dias são quentes e as noites geladas.
A colheita é toda manual e o mosto vinificado em tanques de aço inoxidável. Depois da maceração, o vinho é colocado em barris de carvalho francês novos, em uma grande sala chamada Grand Chai. Eles ficam lá por 10 meses para depois passarem a uma sala de segundo ano de envelhecimento, onde permanecem de seis a oito meses antes de serem finalmente engarrafados. São produzidas de 8 a 12 mil caixas por ano.
Assim como os grandes vinhos de Bordeaux, o Almaviva também é vendido pelo sistema de negociantes. Ele foi o primeiro vinho de fora das denominações bordalesas a ser comercializado dessa maneira no mundo. Sucesso de vendas, este Almaviva, ao contrário do personagem que lhe deu nome, prova que não está aí para brincadeiras.

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