O novo Douro

Região deixou de priorizar somente o Vinho do Porto para ser reconhecida por outros tipos de vinho; e a Quinta do Crasto tem papel fundamental nesse processo

por Christian Burgos

Tomás Roquette é um dos portugueses mais brasileiros do mundo do vinho. Os anos de juventude vividos no Rio de Janeiro lhe renderam, entre outras coisas, a habilidade de falar português com perfeito sotaque carioca e se passar por brasileiro nato.

Habilidades linguísticas à parte, Tomás vem ao Brasil pelo menos duas vezes ao ano apresentar os vinhos elaborados por ele na vinícola da família - e um dos grandes símbolos do novo Douro -, a Quinta do Crasto. Na última dessas viagens nos reunimos para conversar sobre o Douro e seus vinhos.

Como a empresa começou?
O Crasto é uma empresa que está na minha família há mais de 100 anos. Somos a quarta geração. Meu bisavô por parte de mãe, Constantino de Almeida, foi uma grande referência no setor de vinhos de Portugal e, quando vendeu sua empresa, manteve a Quinta do Crasto na minha família.

E como chega à sua geração?
Quando era adolescente, moramos seis anos no Rio de Janeiro. Em 1982, voltamos para Portugal quando meu pai foi convidado por Artur Santos Silva - um grande banqueiro - para criar o BPI, o quarto maior grupo financeiro de Portugal. E fomos comprando algumas partes dispersas da empresa na família, e hoje a Quinta é 90% dos meus pais e 10% de irmãos da minha mãe.

"O grande desafio do enólogo é entender a mensagem que a natureza lhe passa"

Como o Crasto foi dos Vinhos do Porto aos vinhos de mesa (como são chamados os vinhos finos em Portugal)?
O Crasto ficou conhecido pela produção de Vinho do Porto, assim como toda a região do Douro, que foi demarcada pela ação do visionário Marquês de Pombal. Assim, o Vinho do Porto foi responsável pelo desenvolvimento da região sob o sistema chamado de "benefício" - uma autorização do governo de Portugal que permite a você transformar uma determinada quantidade de uvas em Vinho do Porto. Isso fez com que, ao longo dos séculos, as melhores uvas fossem usadas para preencher essa regulamentação e, no final, se sobrassem uvas, você as usava para vinhos de mesa. Nesse processo, era natural que se usasse as piores uvas para os vinhos de mesa.

E quando muda o foco para a produção de vinhos de mesa de qualidade?
Considero que 1986 é uma data muito importante para a região, porque o governo passou a autorizar que os produtores exportassem seus vinhos engarrafados diretamente. Nessa data, as portas se abriram para o Douro e foi uma mudança muito importante. Depois, na década de 1990, é claramente quando começa a atuar uma geração nova de enólogos, gestores e de pessoas do vinho. Fomos um dos pioneiros em produzir vinhos de mesa. Começamos em 1994, e estamos há cerca de 15 anos os produzindo.

Como era o Crasto antes de 1986?
Éramos muito concentrados na produção de Vinhos do Porto que vendíamos às casas exportadoras. Hoje, com a marca Crasto, só produzimos Vinho do Porto Vintage e LBV em quantidade que corresponde a 1/3 de nossa produção total. Isso nos permite escolher os melhores vinhos para nós e depois vender o restante para casas que trabalham com os outros níveis de Vinho do Porto. Isso se mostrou uma relação muito saudável.

Como foi o início da marca própria?
Nossa aventura começou verdadeiramente em 1994. Naquele momento, tivemos um problema para registrar nossa marca em Portugal e isso nos obrigou a exportar toda a produção. De 1994 até 2000, não vendemos nada em Portugal.

Por onde iniciaram?
Começamos no mercado da Inglaterra. Meu avô tinha deixado guardados vinhos muito bons e fundamentais para que entrássemos no mercado com os vinhos de mesa acompanhados também de bons Vinhos do Porto. Se tivéssemos começado a produzir o Vinho do Porto com marca própria em 1994, só poderíamos começar a vender o LBV em 1998 e o Vintage em 1996, já que ambos têm um período mínimo de estágio. Então, foi muito importante neste momento inicial ter bons Vinhos do Porto e tenho que agradecer bastante ao meu avô - que já não está entre nós e preparou muito o futuro da empresa.

E como foi a receptividade aos vinhos?
Fomos conquistando nosso espaço. Em 1997, fomos "Wine of The Year" no Wine Challenge. Depois, a BBC veio ao Crasto fazer um programa especial sobre o Douro, que teve sete ou oito milhões de audiência. O programa foi para o ar e, em uma semana, nosso vinho desapareceu na Inglaterra. Somos as cotações mais altas do Robert Parker em vinhos portugueses. Ficamos agora em terceiro lugar no top 100 da Wine Spectator. Fomos tendo conquistas muito importantes, mas sem desfocar a direção da empresa. Isso é, não trabalhamos para isso, trabalhamos para criar uma relação de confiança com o consumidor. Mas é inegável que, quando a crítica reconhece um de nossos vinhos, é muito importante.

#Q#

Vocês usam as mesmas uvas para os Vinhos do Porto e para os de mesa?
Esta é uma pergunta que sempre vem à tona. Sim, usamos exatamente as mesmas uvas. Talvez um dos grandes argumentos que o Douro tem hoje para apresentar é fazer vinhos de grande qualidade - não só do Porto, como também vinhos de mesa - usando a matéria-prima e o patrimônio que temos. O Douro tem catalogadas quase 100 castas diferentes.

E ainda contam com as Vinhas Velhas*...
Este argumento de castas portuguesas é muito importante, o nosso patrimônio. Acho que deveríamos explorar mais o comportamento das castas. Costumo dizer que não estamos aqui para obter mais um Merlot, mais um Cabernet. Vamos fazer algo diferente. Não é melhor nem pior, é diferente. As Vinhas Velhas são um patrimônio único. As surpresas que se têm ano após ano, o verdadeiro potencial que ainda pode ser muito explorado. Acho que, daqui 50 ou 100 anos, o Douro ainda vai estar evoluindo. Os franceses demoraram séculos para chegar onde estão e estamos apenas há 15 anos fazendo vinhos de mesa. Ainda temos muito pela frente para aprender; e todo dia sou surpreendido com o potencial de novas castas.

Na sua opinião, as Vinhas Velhas durarão quanto tempo?
Espero que elas durem eternamente. Isso é, todas as videiras que vão morrendo são repostas. Fazemos um levantamento das castas que temos e depois cortamos ao mesmo estilo, para manter a tipicidade da vinha. Temos que manter o DNA que a vinha tem, a tipicidade.

Após o lançamento do vinho branco, qual a próxima revolução do Crasto?
Há um programa que estamos fazendo no Douro Superior. Você pode trabalhar o vinho de muitas maneiras. Pode ter produção própria, mas, ao mesmo tempo, comprar uvas. Pode ter um negócio de só comprar vinhos feitos. Para garantir que todos os anos conseguiremos ser muito estáveis na qualidade da matéria-prima, acreditamos que devemos controlar e ser donos de nossas uvas. Por isso, em vez de avançarmos com o projeto de enoturismo, canalizamos todas as nossas energias para a produção de mais uvas de qualidade, que, para nós, é a única maneira de crescer.

Acaba sendo um investimento patrimonial importante...
Muito importante! É muito importante que as melhores uvas do Douro sejam as nossas, e garantir nosso crescimento mantendo a qualidade. Fizemos um investimento de um milhão de euros e, no ano passado, compramos 10 hectares de Vinhas Velhas. Não podemos enganar o consumidor. Para expandir em vinhos de Vinhas Velhas, tenho que comprar Vinhas Velhas.

Deve ser muito difícil comprar uvas de Vinhas Velhas...
Para um viticultor que só produz uvas e vende - não as engarrafa - chega a ser desastroso viver de Vinhas Velhas, porque não produzem nada. Você só consegue trazer mais valia se colocar aquilo em uma garrafa e vendê-la. Então, cria-se um dilema: o viticultor que tem dois ou três hectares de Vinhas Velhas está sempre na ameaça, sempre desconfortável, e pensa: "Vou arrancar essa porcaria, porque isso não dá nada, e vou comprar uma vinha nova que vai produzir quatro ou cinco vezes mais". Uma videira com 60, 70, 80 anos produz 300 gramas no máximo, o que não é suficiente para produzir uma garrafa. Uma vinha com 10 anos, nova, produz de 1,5 a 2 quilos.

Como funciona o processo de colheita de Vinhas Velhas?
Essa é uma pergunta importante. Como a gente define a hora da colheita daquela Vinha Velha, onde temos 20 ou 30 castas misturadas, uma verdadeira salada de frutas? Trabalhamos um pouco com métodos analíticos tradicionais, em especial o grau de açúcar, o pH. Mas, verdadeiramente, decidimos quando começaremos a apanhar as uvas quando caminhamos pela vinha, a sentir verdadeiramente, provar um bago aqui, provar aquela variedade ali, parando, olhando... E aí, sim, você toma a decisão.

A colheita se dá toda ao mesmo tempo?
Como o Crasto é uma propriedade que vai desde os 90 até os 400 metros de altitude, temos uma grande vantagem. Sempre há de 15 dias a três semanas de diferença de maturação. Você pode dividir as áreas dos vinhedos e escolher essa ou aquela. Há aí uma grande diferença entre o que é Douro e o que é Napa Valley, Austrália e as grandes planícies portuguesas. No Douro, o conceito terroir é muito importante. Você conhece a sua propriedade, sabe que aquela vinha, se deixar madurar um pouquinho mais, vai ficar fantástica. Ou aquela outra que pode até parecer estar um pouco verde, mas está no momento certo para colher. Você tem que ter um histórico, que vai lhe ensinando ao longo dos anos.

Parece ciência e arte juntos...
Por isso que a vinha é uma magia, uma arte, e por isso que nunca temos vinhos iguais. A grande mágica do mundo do vinho é isso. É você provar dez vinhos diferentes e ver coisas completamente distintas em cada um. O grande desafio do enólogo é entender a mensagem que a natureza lhe passa naquele ano específico. E falar a mesma linguagem que a natureza é fundamental. Na velha Europa e no Douro funciona muito assim.

Como estão os projetos de enoturismo?
O projeto é muito importante por uma razão: hoje recebemos pessoas, mas não conseguimos dar respostas a 30% das solicitações que temos mesmo sem fazermos qualquer promoção. Quando as pessoas deixam de ir ao Crasto, claramente perdemos uma grande oportunidade. Entrar em contato direto com o consumidor nos dá a oportunidade de colocar na cabeça dele uma imagem muito positiva do que é a empresa, o conceito família, o Crasto. Isso é meio caminho andado para que o Crasto cresça mundialmente. Estamos perdendo essa oportunidade e não podemos continuar com isso. Temos que desenvolver um contexto de enoturismo muito bom, muito saudável, que tenha um preço atrativo, que as pessoas possam desfrutar e conviver com nossos vinhos, levando uma mensagem do Douro e do Crasto. Dentro de pouco tempo as pessoas poderão ficar lá instaladas, dormir. E é engraçado que o país que mais nos visita é o Brasil. Mais até do que Portugal.

#Q#

Por que será?
Não sei [risos]. Uma coisa sei: a identidade de nossa família com o Brasil é mais do que evidente. Vivemos aqui talvez os seis melhores anos de nossas vidas. Identifico-me com o consumidor daqui. E digo isso com toda a sinceridade. Pode ter cidades no mundo que têm um serviço de vinhos e gastronomia tão bom quanto São Paulo, mas, melhor, não acredito. Exportamos 60% de nossa produção para todo o mundo, e, hoje, o Brasil é nosso quarto melhor mercado. Nosso objetivo é que o Brasil seja o primeiro.

Vocês têm aqui uma embaixada, não um distribuidor. Isso faz muita diferença?
Nossa importadora - liderada pelo irmão mais novo de meu pai - representa com exclusividade para o Brasil a Quinta do Crasto e a Herdade do Esporão, ambas da família - e é como a última peça que fecha o quebra-cabeças com perfeição.

E os azeites?
Bom, lá está outro patrimônio que temos e não estamos verdadeiramente a explorar. Temos cerca de 2 mil oliveiras no Crasto, e estamos a plantar mais 3 ou 4 mil. Tal como no vinho, o potencial para fazer azeiteis no Douro é enorme. São azeites fantásticos, com muita tipicidade. Não sou um grande expert nos azeites, mas sou um "azeitófilo" [risos]. Adoro o azeite e fizemos um azeite muito bom este ano. Claramente queremos criar uma sinergia com o vinho, visto que os dois gozam do conceito da saúde e, claramente, cada vez mais o azeite vai crescer em destaque na nossa empresa.

Qual é o varietal que vocês têm?
Temos a Verdeal, uma variedade de que gosto bastante. Temos alguma Cobrançosa, Negrinha do Freixo - que é uma azeitona preta, que muitos chamam de Madural - que fica madura um pouco mais cedo, mas que também dá um azeite muito bom. Mas este azeite do Crasto, o primeiro que vamos lançar, não é um monovarietal, é um assemblage. Plantamos variedades distintas no Douro Superior, e aí, sim, poderemos criar mais variedades de azeites.

E você construiu um lagar?
Não. Procuramos uma pessoa - uma figura encantadora e grande conhecedor, chamado Francisco Pavão -, que tem um lagar fantástico, com tecnologia de ponta, especificação em nível de higiene e qualidade irrepreensível. Apanhamos a azeitona diariamente, entregamos no lagar e ele processa o azeite.

O lagar fica próximo?
Fica perto de Mirandella, a 100 km da gente. Apanhamos em caixas de 25 quilos, não separamos a folha das azeitonas, porque a folha acaba sendo um amortecimento no transporte. A azeitona chega impecável, ele processa o azeite. Estou muito contente com essa parceria. Acho o azeite um produto fascinante

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