René Barbier revela de onde vem a filosofia “libertária” de seus vinhos e o conceito que hoje cerca a mística do Priorato
por Por Arnaldo Grizzo e Eduardo Milan
Um mundo em mudança, cansado das antigas convenções sociais, da falta de liberdade, dos sistemas arcaicos que regem a sociedade. Os estudantes – a juventude na qual as novas ideias fervilham e ganham força – saem às ruas para protestar. Não é uma mera insatisfação política, é um descontentamento generalizado. Logo, os protestos viram greve e se alastram entre os trabalhadores. O país para, o governo, atônito, não sabe o que fazer, não esperava um levante social de tamanha proporção. Eleições legislativas são convocadas às pressas. Um mês depois, tudo volta “ao normal”, mas nada seria o mesmo.
Essa situação parece muito com o que o Brasil passou com as manifestações de junho de 2013. No entanto, ela retrata um resumo do que ocorreu na França, em maio de 1968. Os eventos de “Maio de 68” marcaram uma geração, não somente de franceses, mas de pessoas no mundo todo e isso alteraria muitos hábitos.
Aos 18 anos, a mente de René Barbier Ferrer estava totalmente aberta às ideias que nasciam naquela “revolta popular”. Apesar de ter nascido em Tarragona, na Espanha, sua família era de origem francesa – viticultores da região Rhône (em Gigondas, Rasteau e Plan de Dieu) – e, nessa fatídica época, ele dividia seu tempo entre esses dois países, já que estudava enologia na França. “Era um pouco hippie”, admite Barbier. Assim, o ideal libertário daqueles anos acabaram por influenciar toda a sua vida e, por fim, também os seus vinhos.
Nesta entrevista exclusiva, René Barbier, o pioneiro de uma geração que revolucionou o Priorato – uma das regiões vitivinícolas mais badaladas atualmente –, revela a filosofia por trás de seus vinhos.
Conte um pouco da história de sua família.
1880 foi o ano em que meu bisavô veio para a Espanha, era época da filoxera na França. Éramos viticultores em Rasteau, na Côte du Rhône – Gigondas, Rasteau e Plan de Dieu. Meu bisavô veio para a Espanha comprar Garnacha e Cariñena para os seus clientes, e continuar depois da filoxera. De 1880 até 1975, minha família era, de um lado, viticultora na França e, de outro, negociantes na Espanha. Com as Guerras Mundiais e a Revolução Espanhola, as famílias se alternaram entre França e Espanha. Meu avô se casou com uma catalã. Meu pai nasceu em Tarragona e também se casou com uma catalã. Eu nasci já completamente catalão, e me casei com uma francesa. Para fazer o caminho contrário... [risos].
“Minha formação não é biodinâmica, é de observação, de trabalho, de convivência com a biodiversidade, minha vinha é tudo, menos uma vinha...”
"Assim nasceu um lugar para onde todo mundo foi com um conceito diferente. Não para fazer dinheiro. Mas para mostrar uma esperança, uma maneira de trabalhar, de viver, diferente"
Com uma família de viticultores e negociantes, foi fácil entrar no mundo do vinho?
Acontece que essas duas facetas morrem no ano de 1975. Meu pai morreu em 1973, com 50 anos. Nessa época, tinha 25 anos, estava estudando e, quando acabo os estudos, não há França, não há Espanha, nem nada. Os vinhedos da França ficaram com meu tio e, o negócio da Espanha, com meu pai. Meu pai foi absorvido por Rumasa de maneira não muito normal, e meu tio perdeu todas as terras na França. Quando acabei meus estudos, tinha filho, era um pouco hippie, muito vagabundo... [risos]
Onde estudou?
Comecei como técnico superior em Beaune. Meu primeiro estágio de vinhos foi na Dopff au Molin, na Alsácia, onde aprendi sobre os brancos. Em Beaune, aprendi sobre os tintos da Borgonha, o DNA da finesse. E depois, quando acabei, fui a Bordeaux. Foi quando meu pai morreu. Então, não pude acabar meus estudos e fui trabalhar com a família Moueix, graças à Émile Peynaud, que era meu amigo e me introduziu em bons lugares, como Moueix, Pétrus, Schÿler, gente que era muito boa. Sempre repito o que Peynaud me disse: “Dá na mesma se você não estudar. Não importa que não se forme. Acima de tudo, faça o que pensa, tenha boas ideias, entusiasmo”. Para mim, isso não era muito difícil. Se um professor dizia, eu fazia... [risos]
A cave de Clos Mogador (à esquerda) e o vinhedo de Clos Manyetes (à direita)
"Ao final de dois meses, americanos começam a telefonar em casa. Eu não falo inglês, um desastre [risos]. O que está acontecendo? Era Robert Parker"
E como passou ao Priorato?
Em 1976, mais ou menos, acabei os estudos e não tinha nada. Fui trabalhar em Rioja e, ao mesmo tempo, em 1978, com meu sogro, comprei uma propriedade no Priorato. Eu trabalhava em Rioja com o pai de Álvaro Palácios e, por isso, somos muito amigos. Começamos a engarrafar com ele e, ao mesmo tempo, iniciamos uma aventura no Priorato. Em nível de vinhedo, não havia nada, podia plantar, arrumar... E como estava muito sozinho aqui, em um lugar completamente abandonado, comecei a trazer meus amigos, como Álvaro, que sempre estava comigo, ainda que tenha vindo mais tarde porque era muito jovem... [risos]. Havia vários amigos que começaram lá. Foi com amigos, depois amigos dos amigos... e assim nasceu o Priorato.
Por que o Priorato?
Para mim é muito fácil, porque nasci em Tarragona. Quando tinha 18 anos, em 1968, na Europa, foi o ano da liberdade, dos lugares puros. E o bom do Priorato foi que, nas décadas de 50, 60 e 70 – os anos que romperam com a agricultura boa –, a região evitou tudo por causa da pobreza. Depois da filoxera, as pessoas deixaram o Priorato para ir ao ramo têxtil, em Barcelona, e o Priorato não sofreu nenhuma agressão química. Em 1968, isso era muito importante. Por outro lado, como filho de René Barbier, não queria entrar no terreno da competitividade, mas da criatividade. Na época, três países lideravam a viticultura mundial, eram: França, Itália e Espanha. A Espanha era conhecida como terra de vinhateiros, mas não viticultores. Eu acreditava que os terroirs espanhóis eram dos melhores do mundo, mas eles não demonstravam o que eram. O melhor lugar do DNA do Priorato é o terroir sagrado. Ninguém queria ir para lá – porque era muito mais caro para viver e tudo mais –, mas então se era muito livre para fazer o que quiser... Isso, para mim, era muito importante [risos]. Assim nasceu um lugar para onde todo mundo foi com um conceito diferente. Não para fazer dinheiro. Mas para mostrar uma esperança, uma maneira de trabalhar, de viver, diferente. Hoje, passados muitos anos, é muito bonito, porque há quase 100 vinícolas de todas as nacionalidades, mas com a mesma ideia, uma ideia quase errada, porém com vontade de fazer, de uma maneira ou de outra, projetos de satisfação. Os poucos projetos que não foram de satisfação, caíram... [risos] Foram achando que iam fazer dinheiro e estavam errados.
“Começamos sem luz, sem nada, com bomba à mão, barricas... Transformamos a granja numa vinícola. Montamos uma cooperativa em que cada um tinha suas propriedades e elaborávamos num mesmo lugar para não gastar tanto dinheiro”
"Os conceitos de ser conhecido e ser poderoso, ali (no Priorato), são contraditórios. Sou muito conhecido e vivo de forma muito simples"
Não é possível fazer dinheiro no Priorato?
É possível ganhar a vida. Mas não fazer milhões. Os conceitos de ser conhecido e ser poderoso, ali, são contraditórios. Sou muito conhecido e vivo de forma muito simples. Uma vida muito boa, com muita qualidade. É uma maneira de ver as coisas. Sempre digo que muita gente quer ganhar muito dinheiro para fazer o que quer. Eu primeiro faço o que quero e depois... [risos]. Mas o grande glamour é interior. O meu conceito de liberdade era justamente um mundo um pouco à parte e algumas viagens. Consegui essas duas coisas com algumas garrafas, não muitas, isso é mágico.
Você pode ser considerado pioneiro no Priorato?
Sim, dos novos, porque o Priorato é muito antigo. Mas, desta geração de loucos, sim [risos].
É verdade que seus primeiros vinhos foram feitos em uma granja?
Não tínhamos nada de dinheiro. Era como no faroeste. Durante anos, fiz meu vinho em duas barricas, numa casinha que tinha. Quando éramos mais produtores, houve uma ocasião de tomar uma granja, que o dono não podia pagar a hipoteca. Juntamo-nos para pagar e aí começamos, todos. Começamos sem luz, sem nada, com bomba à mão, barricas... Transformamos a granja numa vinícola. Montamos uma cooperativa em que cada um tinha suas propriedades e elaborávamos num mesmo lugar para não gastar tanto dinheiro. Começamos em 1989. Como tinha pouca vinha velha, desqualificaram-nos do Priorato, não éramos DOC Priorat. Então inventamos uma denominação, que chamava Costers del Siurana, que hoje em dia é de Carles Pastrana, porque ele ficou com lugar-base. Em 1990, a DO disse que já podíamos estar na denominação. Assim, cada um, pouco a pouco, fez sua vinícola. Muitos vinhos começaram nesta pequena cooperativa e também na minha vinícola.
“Conheço muito bem meu lugar. É especial, vivo com as minhas vinhas”
"Não gosto de pertencer a nenhum grupo. Quero ser livre. Não sou biodinâmico, nem ecológico, nem nada. Sou totalmente contra tudo o que me controle"
As boas avaliações de Robert Parker foram essenciais para o Priorato hoje ser o que é?
Isso é incrível. A primeira vez que vi Christopher Cannan (amigo e proprietário da Europvin e da Clos Figueras, no Priorato) foi em 1991, a granja já estava consertada, era quase uma vinícola... [risos]. Ele veio e se enganou, pois procurava Álvaro Palacios. Mas Álvaro estava viajando. Ele me encontrou. Disse que Álvaro não estava, mas “se quiser, entra e provamos os vinhos dele e de quem mais quiser”. Então ele me disse: “Vem a Bordeaux e traz algumas caixas. Provaremos e te digo algo”. Pego meu carro, o reboque, 15 caixas, e vou. Ele me diz:
“Deixa-me seis caixas... Vou a provar com um amigo X”. Então, vou embora, deixo as caixas... espero que me pague [risos]. Depois de três semanas, ligo: “Christopher, provou?” “Ainda não, porque meu amigo tem muito trabalho”. Tempos depois, ligo de novo, e digo: “Que passa com seu amigo?” [risos]. Ao final de dois meses, americanos começam a telefonar em casa. Eu não falo inglês, um desastre [risos]. O que está acontecendo? Era Robert Parker. Não tinha ideia que nos Estados Unidos podia existir uma pessoa que faz chover. Não podia entender isso. Acontece que Clos Mogador 1991, se não me engano, teve 92 pontos Parker, e assim todo mundo queria comprar. A partir de 1991, todas as safras sempre foram muito boas; todas, nenhuma ruim. E, com Daphne Glorian (de Clos Erasmus), tivemos dois ou três 100 pontos. Incrível. Pelo menos, Daphne conhecia Parker, eu não, e ainda não sei quem é [risos]. Só sei que tenho que agradecer e nada mais.
Pertencendo a uma geração de hippies, faz sentido ser biodinâmico?
Desde 1968, tive essa preocupação de ser, mas também não gosto de pertencer a nenhum grupo. Quero ser livre, então chego ao lado mais absurdo, sendo de vinhas loucas, no sentido de livres, sem química, sem nada. Não sou biodinâmico, nem ecológico, nem nada. Sou totalmente contra tudo o que me controle. Já tenho bastante controle com a DO [risos]... A verdade é que todos ao meu redor são ecológicos, menos eu [risos]. Meus filhos querem ser biodinâmicos e meu filho, Christian, tem uma formação biodinâmica. Minha formação não é biodinâmica, é de observação, de trabalho, de convivência com a biodiversidade, minha vinha é tudo, menos uma vinha... [risos]. Conheço muito bem meu lugar. É especial, vivo com a minha vinha.
Vertical de Clos MogadorADEGA esteve no Priorato e participou de uma degustação vertical do ícone Clos Mogador e comprovou a longevidade e qualidade deste tinto que, com o passar dos anos, vai ganhando elegância e finesse. Nessa oportunidade única, foram degustadas as safras 2012, 2010, 2005, 2002, 2000 e 1992 – terceira colheita deste vinho. Tinto elaborado a partir de Grenache, Carignan, Cabernet Sauvignon e Syrah, com estágio entre 16 e 20 meses em barricas de carvalho de 300 litros e num foudre de 2.000 litros (a partir da safra 2011). Confira nossas avaliações: | |
AD 95 pontos CLOS MOGADOR 1992 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral – indisponível). Balsâmico, fruta mais passada, ervas secas, terroso, bem elegante. Mentol, muito classudo, ótima acidez, muito gostoso de beber. Surpreendente. O próprio Barbier ficou surpreso e disse que o vinho estava no auge e era uma das melhores garrafas daquela safra que ele teve a oportunidade de degustar. EM | AD 94 pontos CLOS MOGADOR 2005 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral – indisponível). Mais opulento, surpreendentemente jovem, mas muito promissor, com final longo, lembrando alcaçuz e com toques de grafite. Suculento, muito gostoso de beber, e mostra taninos de ótima textura. EM |
AD 93 pontos CLOS MOGADOR 2000 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral – indisponível). Mesmo estilo bordalês do 1992, ainda bem vivo e esbanjando elegância, porém com mais potência, juventude e fruta mais viva. EM | AD 94 pontos CLOS MOGADOR 2010 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral US$ 199). Chama a atenção pela textura e fruta suculenta, surpreendendo pelo frescor e pela mineralidade do conjunto. Estruturado, potente, mas já mostrando elegância e finesse. Ainda jovem e com muitos anos pela frente. EM |
AD 92 pontos CLOS MOGADOR 2002 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral – indisponível). Um pouco mais fechado, boa fruta, mas num estilo levemente mais maduro, porém com bastante vibração, estrutura e acidez. Ótima textura e final longo, com notas de groselha. EM | AD 93 pontos CLOS MOGADOR 2012 Clos Mogador, Priorato, Espanha (Mistral – indisponível). Prova de barrica, ainda muito jovem, mas já se mostrando frutado e com caráter bastante mineral. Tem ótima estrutura e concentração, esbanjando equilíbrio. EM |
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