Paulo Laureano dá um rico panorama do vinho português e dos desafios da vitivinicultura de seu país e do mundo
por Christian Burgos
Nesta conversa ampla, Laureano discorre sobre diversos aspectos da vitivinicultura - em especial da portuguesa, obviamente - e fornece um retrato do vinho de Portugal, passando por todas as regiões e castas de destaque. Segue, então, a aula deste mestre.
Você é declaradamente obcecado pelas castas portuguesas, não?
Sabemos claramente que os vinhos são feitos, ou têm as características que têm, fundamentalmente, em função de três fatores: dos solos onde crescem as videiras, do clima que condiciona o crescimento das uvas, e depois as uvas, enfim, porque elas têm sabores, aromas e cores distintos. Cada uva tem o seu perfil aromático e de tanino, no caso dos tintos. Tem o seu perfil de estrutura. E isso de alguma forma contribui, determinantemente, para identificação dos vinhos. É necessário algo que faça a diferença, porque hoje o mercado de vinhos é global, e nele estão vinhos do Brasil, Argentina, Itália, França, Estados Unidos, etc. Há muita competição. Então, é preciso usar os argumentos que só Portugal tem, e as uvas nativas portuguesas têm características muito sui gêneris. Não são melhores nem piores que as uvas internacionais, mas diferentes. E esta diferença permite aos vinhos portugueses terem um lugar de diferenciação em termos de mercado, mostrar aromas e sabores diferentes, terras diferentes.
O Alicante Bouschet é uma uva que você adotou como portuguesa. Você a naturalizou portuguesa, não? [risos]
É verdade, a naturalizei portuguesa. E digo ainda mais, a naturalizei como alentejana. Alicante Bouschet é uma uva que nasceu na França, se espalhou por todo mundo, chegou a ser 11ª casta em termos mundiais, mas depois, de repente, começou a desaparecer. A intenção do design do Alicante Bouschet, inicialmente, era ter uma uva que permitisse dar estrutura e cor. É uma uva com muita cor, porque é tinturada na casca, na polpa. Só que queremos das uvas muito mais do que isso. Elas valem pelo equilíbrio, tal como os vinhos. Uma uva é boa porque consegue dar um bom teor alcoólico, boa acidez, boa estrutura, boa composição aromática. E o Alicante Bouschet só consegue fazer isso com duas premissas: número elevado de horas de sol e temperaturas elevadas. Por isso, é mais do que uma uva portuguesa, é uma uva alentejana. Porque o Alicante só tem a expressão enológica que tem, no Alentejo.
"O Alentejo é, sobretudo, uma região de solos de origem granítica, mas existem duas áreas lá, não muito grandes, que têm manchas de solos de xisto" |
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Você assessorou vinícolas em todo Portugal. isso contribui para o sucesso de seu projeto?
De certa forma é muito interessante, porque nos obriga a uma coisa que, às vezes, as pessoas esquecem, mas que é determinante para quem está nessa área. Temos que estar atualizados no mundo dos vinhos, é preciso saber o que há de novo em termos de viticultura, em termos de enologia, saber como tudo o que é estudado e se interliga. E a consultoria obriga a saber isso.
Você começou sua operação produzindo vinhos sob sua marca em 1999 e, em 2006, você faz uma mudança estrutural importante...
Quando começamos em 99 tínhamos apenas um pequeno vinhedo ao sul de Évora e ainda hoje o mantemos. São 10 hectares. Qualquer enólogo sente uma vontade irresistível de fazer seu próprio vinho. E foi isso que nos levou a começar. As coisas ficaram muito bem e fomos crescendo. Mas fazia os meus vinhos um pouco espelhados nas adegas em que fazia consultoria, e chegou uma altura em que precisávamos tomar uma rumo diferente. Tenho o entendimento de que o vinho deve ser uma expressão do terroir, então procurei um. Encontramos em 2006, na Vidigueira, algumas vinhas muito velhas com uvas portuguesas, com solo de xisto e uma adega velha que estamos renovando pouco a pouco. Por um lado, permitia-nos aumentar o número de garrafas, mas, sobretudo, permitia-nos dar consistência àquilo que acho ser um vinho.
"É preciso usar os argumentos que só Portugal tem, e as uvas nativas portuguesas têm características muito sui gêneris" |
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Citando a identidade única de um terroir, você fala de uma questão do solo, do xisto. O xisto é muito mais vinculado ao Douro do que ao Alentejo...
O Alentejo é, sobretudo, uma região de solos de origem granítica, mas existem duas áreas lá, não muito grandes, que têm manchas de solos de xisto. Uma delas é ao norte da região de Porto Alegre e a outra ao sul da região da Vidigueira. Temos sorte por nossos vinhedos estarem dentro dessa mancha. E isso é muito importante, porque esse caráter vai aparecer em todos os nossos vinhos. Um caráter que se transmite claramente nos aromas, nos sabores. Essa mineralidade do solo de xisto fica completamente evidente.
"Quando fazemos vinhos com expressão tecnológica, o que estamos a fazer é padronizar demais os vinhos. E isso é tudo, menos aquilo que um vinho deve ser"
Suas vinhas tem até 35 anos. Uma raridade no Alentejo, não?
No Alentejo é uma raridade mesmo. No Douro, encontraríamos vinhas de 80, 100, 120 anos facilmente. O Alentejo sofreu um grande processo de renovação do final da década de 1980 até o final da década de 1990. Hoje em dia, o Alentejo é uma zona renovada, com características que não tinha há alguns anos. Isso tem muitos aspectos positivos, mas, por outro lado, perdemos algumas das vinhas mais antigas que tínhamos. Esta vinha de 30 anos é uma das mais antigas do Alentejo. Ela tem uma maturação já muito intensa e terá produções mais baixas, mas isso será compensadas por uma maturidade, por um equilíbrio das uvas muito maior, e que, de fato, só se consegue com vinhas mais velhas.
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Vemos dezenas de castas autóctones em Portugal. Na sua opinião, em quais castas Portugal deveria apostar?
Acho que se viajarmos de norte a sul de Portugal, posso dar exemplos de castas em que tem que se apostar. Se falarmos em Vinhos Verdes, temos que falar em Alvarinho, casta fundamental e que as pessoas tem que conhecer cada vez mais. Mas o Alvarinho por si só não define os Vinhos Verdes. A castas Trajadura ou Loureiro são extremamente interessantes. O Douro vive muito da Touriga Franca, da Tinta Roriz, da Tinta Cão, hoje em dia do Sousão e também da Touriga Nacional. A Touriga Nacional, de origem no Dão, hoje tem uma influência forte também no Douro. A Bairrada não viverá sem a Baga, sem Maria Gomes. Por mais difícil que seja a Baga, ela é indissociável da Bairrada. O Dão vive muito em volta do Jaen, do Alfrocheiro, da Tinta Roriz. Os brancos, à volta do Encruzado, uma das melhores castas brancas de Portugal. Também se viajarmos até o Ribatejo, Fernão Pires é uma casta importantíssima, o Castelão é muito importante, mas o Ribatejo é uma região em revolução, onde aparecem as uvas mais diversas.
Hoje em dia, há cada vez mais e melhores vinhos engarrafados no Ribatejo. É impossível falar de Terras do Sado sem falar em Periquita, (neste caso, Castelão, que é a casta típica das Terras de Sado) ou de Moscatel. E quando chegamos ao Alentejo, é impossível não falar da Aragonez, Trincadeira, Alicante Bouschet nos tintos. No meu caso, sem falar da Tinta Grossa. E, nos brancos, é impossível falar do Alentejo sem falar da Antão Vaz, Alvarinho. Dificilmente poderemos continuar a construir vinhos em Portugal abdicando dessas uvas.
Hoje em dia, o Alentejo é uma zona renovada, com características que não tinha há alguns anos. Isso tem muitos aspectos positivos, mas, por outro lado, perdemos algumas das vinhas mais antigas que tínhamos |
Pode falar sobre a Tinta Grossa?
A Tinta Grossa é um claro exemplo do patrimônio vitivinícola português. É uma uva que existe só na região da Vidigueira, no sul do Alentejo, numa mancha relativamente pequena. É uma uva com características muito importantes para o Alentejo, pois tem um exotismo aromático muito marcante. Tem notas balsâmicas e de frutos silvestres, mas tudo equilibrado, muito elegante. Depois, temos muita acidez, importante para uma região quente como o Alentejo. Não é uma acidez agressiva, mas elegante. Bem integrada. E depois temos bons taninos, sedosos, mas sólidos. O Alentejo precisa disso. Ela permite produzir vinhos de excelente estilo aromático, bom teor de acidez, mesmo em condições de temperaturas elevadas. Ela foi, de alguma forma, abandonada, por ser uma casta difícil, em termos vitivinícolas. Mas acreditamos que as vinhas desenham os vinhos. E como isso acontece, quisemos começar a trabalhar com a Tinta Grossa de maneira correta.
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O que é trabalhar ela de forma correta?
Ela é uma casta extremamente vigorosa, tem tendência a formar muitas folhas - uma canopia muito densa - e é isso, normalmente, que produz os problemas. Ao podarmos a Tinta Grossa de forma diferente, conseguimos expor mais os cachos, deixamos de ter aqueles problemas todos e passamos a ter uma Tinta Grossa como ela deve ser.
Você falou em opções enológicas e opções tecnológicas...
Por uma razão clara, sou um enólogo minimalista e tenho imenso prazer em dizer isso. Acho que, em termos de tecnologia, temos que interferir o menos possível. Quanto menos eu tiver o que fazer dentro da adega, melhores são as uvas quando as trouxe para dentro da adega. Por exemplo, a acidez podia não estar a mais correta possível, exigindo intervir do ponto de vista tecnológico. Mas, se a acidez estiver correta, então não preciso fazer nada. Por isso, o que quero é que as uvas tenham uma expressão enológica, de solo, da própria uva. Se eu tiver uma expressão tecnológica muito forte, vou esconder esses outros parâmetros que, na minha opinião, são aquilo que fazem a diferença nos vinhos. Quando fazemos vinhos com expressão tecnológica, o que estamos a fazer é padronizar demais os vinhos. E isso é tudo, menos aquilo que um vinho deve ser.
"É mais fácil diminuir os preços com uma intervenção tecnológica cada vez mais forte. A tecnologia pode ajudar nisso, mas tem custos. E o custo é perder a identidade dos vinhos, que acabam parecendo muito iguais" |
É possível caminhar rumo ao aumento de consumo de vinho, aumento de qualidade e diminuição de preços baseando-se só no enológico? Ou o tecnológico tende a se tornar predominante?
É mais fácil diminuir os preços com uma intervenção tecnológica cada vez mais forte. É muito mais fácil fazer um vinho que tem madeira, mas que foi feito com chips, ao invés de utilizar barricas de carvalho francês. É muito mais fácil colocar um vinho mais cedo no mercado sujeitando-o a uma micro-oxigenação forte... A tecnologia pode ajudar nisso, mas tem custos. E o custo é perder a identidade dos vinhos, que acabam parecendo muito iguais. Acho que quem trabalha os vinhos em termos de viticultura como deve ser, quem sabe bem o que determina a qualidade de seus vinhos, pode conseguir diminuir os custos de produção e melhorar a relação custo x benefício, sem ter que apostar muito em termos tecnológicos. Mas para isso é preciso conhecer bem o que estamos a fazer, entender aquilo que estamos fazendo e fazê-lo com paixão também.
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''Sou um enólogo minimalista e tenho imenso prazer em dizer isso. Acho que, em termos de tecnologia, temos que interferir o menos possível"
Especificamente, aqui no Brasil, 2010 foi muito complicado, mas aqueles que trabalharam nas vinhas durante o ano inteiro com afinco conseguiram ter uvas de qualidade.
Isso vai ser uma realidade cada vez maior por todo o mundo. Quem trabalha bem nos vinhedos tem uma ideia clara dos fatores determinantes na qualidade final das uvas e, portanto, sabe como intervir nas condições de cada uma das safras. É óbvio que há algumas situações de climas que não conseguimos controlar - granizos, chuvas tardias, geadas, enfim... Mas, do resto, podemos minimizar alguns efeitos negativos. Por isso, a tendência hoje em dia será que as oscilações entre as safras sejam menores. Elas vão continuar sempre existindo e esse é também um dos interesses dos vinhos, mas são cada vez menores as oscilações entre safras.
Você acredita que está acontecendo uma globalização interna das castas portuguesas? Que as regiões estejam plantando castas que deram certo em outras regiões, quase podendo perder suas características de terroir?
Sim, isso está acontecendo, mas, ao mesmo tempo, as pessoas estão percebendo que esse não é o caminho. Posso plantar Alvarinho no Alentejo e até se fazem bons Alvarinhos, mas o primeiro nome relacionado ao Alvarinho é de Vinho Verde. Agora, quando planto Antão Vaz, a primeira relação é com o Alentejo, e as pessoas hoje percebem isso. As tentações que existem de plantar novas castas ocorrem sempre, até porque o mercado atual é muito competitivo e as pessoas querem encontrar coisas novas para apresentar.
Mas é preciso perceber que, no mundo dos vinhos, as coisas não funcionam dessa maneira, mas funcionam com uma solidez e uma consistência que são construídas ao longo do tempo. Não posso produzir Antão Vaz hoje e amanhã Chardonnay, e dizer que agora esse vinho é que é muito bom. Uma marca é algo muito difícil de construir. Demora cerca de 10 anos para se ter algum reconhecimento em termos de mercado. Uma vinha é plantada para durar de 25 a 30 anos. O mundo dos vinhos é extremamente adverso a alterações. O mercado pode até parecer interessado nessas alterações, pois gosta de novidades. Mas os produtores pagam um preço muito alto para dizer que estão sempre na moda. E o último preço a ser pago é fechar a porta.
Por isso, é preciso ter noção de que precisamos dar consistência aos produtos que fazemos. Devemos fazer novidades, é óbvio, mas é sempre possível fazer novidades dentro da nossa história, com as castas que trabalhamos, dentro das nossas vinhas. Devemos fazer novidades pelas quais as pessoas esperam.
"Devemos fazer novidades, é óbvio, mas é sempre possível fazer novidades dentro da nossa história, com as castas que trabalhamos, dentro das nossas vinhas. Devemos fazer novidades pelas quais as pessoas esperam"
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"A tendência hoje em dia será que as oscilações entre as safras sejam menores. Elas vão continuar sempre existindo e esse é também um dos interesses dos vinhos, mas são cada vez menores as oscilações entre safras" |
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