O futuro do vinho argentino na visão lúcida e filosófica de José Alberto Zuccardi
por Christian Burgos E Eduardo Milan
Quem é José Alberto Zuccardi? “Sou um agricultor, um produtor”. Seria um filósofo do vinho também? “Penso que o vinho não é uma bebida, é uma forma de viver. Tanto para o produtor quanto para quem bebe vinho. O vinho é um meio de comunicação entre as pessoas, não é uma bebida. O vinho significa muita coisa num conjunto social, numa mesa. O vinho é como um vínculo entre as pessoas, e se produz muitos planos. Ele é uma conexão turística, que vincula gastronomia e muitas outras atividades. É incrível. A vitivinicultura é como uma cebola, você tira uma camada, e compreende algo novo. Mais há outras camadas e outras coisas novas. E o vinho funciona assim. Os níveis de compreensão podem ser sempre mais aprofundados. Isso dá a ele um caráter espetacular”. Com uma apresentação dessas vale compreender sua visão sobre os diferentes aspectos da vitivinicultura Argentina e mundial.
Diante de um movimento como o da Salvaguarda, que afeta diretamente os produtores argentinos, o que vocês podem fazer?
Propusemos aos produtores brasileiros, ao Ibravin, a possibilidade de fazer uma campanha genérica de promoção do vinho. Mas não tivemos êxito em fazer isso em conjunto. Acredito que esse é o caminho, pois o consumo é muito pequeno no Brasil, e, apesar de o preço ser uma barreira, a cultura é uma barreira ainda maior. Muita gente não consome vinho não só por problemas de valores, mas por problemas de cultura mesmo. Então, comunicar o vinho de uma maneira mais efetiva pode ser algo bom. Me parece que tornar o vinho acessível a muita gente (o preço é uma barreira, mas há outras, como o conhecimento), incorporá-lo aos costumes, é um tema importante. Acredito que os produtores brasileiros precisam olhar para esse ponto, por que não adianta colocar barreiras. Na Argentina não há problema de preços, pois há certo equilíbrio nisso, não sobram vinhos.
Pareceu haver certo contentamento com o tema das salvaguardas por parte da Argentina?
Muitas pessoas me perguntaram sobre o tema das salvaguardas, “é bom para Argentina?”, e sempre dizia que não, pois as barreiras nunca são boas para o vinho. Quando põem barreiras para acabar com um competidor, aparece outro. Ainda que a Argentina ganhe com isso, não é bom. Temos que ganhar o mercado pela qualidade, isso ajuda a longo prazo, o resto funciona apenas a curto prazo. Costumo dizer que pelo mesmo motivo que um produtor entra no mercado, ele sai. Então se entrou pela qualidade, sairá quando não tiver mais essa qualidade. Se entra pelo preço, sairá quando perder preço. Se entro pela qualidade e isso me custa mais, não importa, pois é ela que vai me manter no mercado.
Sebastián está fazendo um trabalho de muita profundidade, abrangendo todas as definições dos tipos de terroirs, e dentro dos vinhedos, uma definição profunda dos microterroirs” |
Então, o mercado brasileiro precisa, assim como vocês fazem com seus vinhos, integrar a cultura gastronômica nativa? Na Argentina, assim como na França, o vinho já é alimento, é parte do dia a dia.
Na Argentina, acontece uma coisa muito interessante, porque a comunicação da cerveja e de outras bebidas gasosas se inspira no vinho. Foi criada a figura de um sommelier que fala e bebe a Coca-Cola de acordo com o código do vinho. A Guinness lançou uma publicidade que mostra os diversos tipos de cerveja, inspirado nos vinhos. Durante muitos anos, não entramos no assunto da mesa familiar, pois isso já era ligado ao vinho. Mas hoje em dia todas essas bebidas apontam à mesa familiar. Essa é uma das campanhas da Coca-Cola, mostrar a comida da mãe e todos os copos cheios de refrigerante, e isso é muito ruim, pois está se deseducando a população.
Como se muda o pensamento do consumidor em relação ao preço?
Há uns sete ou oito anos, um brasileiro não pagava mais do que R$ 50 por um vinho argentino. E agora nós estamos lançando, no Brasil, um vinho de R$ 500, e há público para isso. Houve uma mudança do nosso ponto de vista, fazer o mercado crescer é um objetivo. Mas a participação nos segmentos altos do Brasil existe. Atualmente é o mercado dos europeus, mas também queremos estar aí. É preciso trabalhar em muitos planos, desde a terra até as situações de consumo, que são coisas que acontecem simultaneamente, pois vemos um futuro aí. Meu filho está estudando muito este tema.
O que seu filho está estudando?
Sebastián está fazendo um trabalho de muita profundidade, abrangendo todas as definições dos tipos de terroirs, e, dentro dos vinhedos, uma definição profunda dos microterroirs. Estamos vinificando separadamente, fazendo um estudo de condutividade elétrica do solo, para ter uma ideia de como gerenciar as zonas, o desenho dos sistemas de irrigação vai acompanhando esse processo e logo a definição do momento da colheita e uma série de outros aspectos que estão ligados a isso. O que estamos conseguindo, dentro de um mesmo vinhedo, são as zonas de características similares, e dessa forma damos tratamentos adequados. Aquilo que foi feito no quesito terroirs com séculos de experiência, hoje, com as ferramentas que temos, conseguimos fazer mais rápido, e estamos focando todo o nosso trabalho nisso. A definição de terroir na Argentina vai se desenvolver muito nos próximos 10 anos.
"A definição de terroir na Argentina vai se desenvolver muito nos próximos 10 anos"
Esse é o caminho para pensar um novo ciclo do Malbec?
Exato, e temos que entender que o Malbec não é uma coisa só, são várias alternativas, são muitas coisas vinculadas aos distintos terroirs. Há outras cepas, mas hoje 50% das exportações argentinas são de Malbec. Temos que aprofundar aí, mas também há oportunidade em outras variedades.
Outros países já estão trabalhando no desenvolvimento de microterroirs. Esse também é um caminho para a Argentina?
Talvez. O Chile vem desenvolvendo um conceito de regiões e vales distintos, que me parece muito bom. Esse é o desafio da Argentina, e acho que há uma definição de estilo neste nível. A Argentina tem uma altitude que nos dá a possibilidade de uma definição de estilos muito mais frescos. Há uma mudança positiva para nós. Temos um deserto nas alturas. O vinho que estamos lançando agora reflete um conceito diferente, e isso já está se tornando referência para as variedades. O turismo também tem nos ajudado, pois as pessoas indagam sobre o Vale do Uco, Altamira, zonas que começam a aparecer na mente dos consumidores. Na atividade vitivinícola, todos os processos são simples, mas há uma cadeia muito grande de produção, que vai desde a terra até o consumo. Alinhar tudo isso é um trabalho grande.
Como as novas gerações têm influenciado na vitivinicultura argentina?
Temos uma nova geração de enólogos e agrônomos muito apaixonados. Não há uma visão egoísta, fechada, ela está muito mais aberta, é muito bom, muito necessário. Há consciência dessa importância. A vitivinicultura antes era muito fechada no mercado argentino, nosso primeiro passo foi abrir ao mundo, entender, integrar-se. E o mercado argentino mudou muito também. Hoje os jovens bebem vinho com uma atitude completamente diferente. As pessoas estão procurando descobrir novas coisas, têm curiosidade, já não é simplesmente por tradição. E essa é a primeira vez que temos uma geração de enólogos e agrônomos com uma visão clara e qualitativa. Há alguns que já têm seis vindimas em distintos lugares do mundo, o que ajuda a entender os conceitos. Na minha geração não creio que tenha tido um enólogo com esse entendimento.
E vocês, os patriarcas, estão depositando muita confiança nessa nova geração?
Meu pai começou a vinícola e embasou seu trabalho num ponto de vista agrícola. Quando me incorporei nesse meio, mudei a visão de mercado, e a geração que vem agora fará uma modificação muito forte no nível qualitativo. Há uma busca por profundidade, um crescimento qualitativo completamente diferente. Há muito desejo, muita paixão... No caso da Zuccardi, Sebastián é líder desse processo, mas há todo um novo grupo de enólogos que se somam a esse cenário. E os agrônomos também.
Há um respeito maior pela natureza?
Havia uma característica na Argentina: os enólogos ficavam nas vinícolas e os agrônomos no campo. Hoje o que estamos fazendo é o contrário: os agrônomos estão nas vinícolas e os enólogos nos campos. Os enólogos começam a entender que o vinho se faz no vinhedo, e os agrônomos estão vendo como o que se faz no campo se potencializa na vinícola.
Há uma questão em pensar nas próximas gerações?
Penso que isso é uma questão a longo prazo, entender que posicionar-se como uma região vitivinícola a nível mundial leva tempo. Não é a busca de resultados imediatos, mas sim a construção de algo muito mais profundo. O resultado vem. A Argentina é um país de vinho. Consome-se vinho, é nossa bebida nacional, e isso dá a possibilidade de desenvolvimento de produtos com identidade nacional. Sempre dizemos que a Argentina é um país do Novo Mundo, mas na verdade somos uma mescla do Novo e do Velho Mundo. Do ponto de vista da parte regulamentária e etc somos mais novos mesmo, pois não há muitas regulamentações sobre variedades de uvas e regiões a serem plantadas, há liberdade nesse sentido, mas do ponto de vista do consumo, do hábito de beber vinho incorporado à cultura do país, somos partes do Velho Mundo.
"Os agrônomos estão nas vinícolas e os enólogos nos campos. Os enólogos começam a entender que o vinho se faz no vinhedo, e os agrônomos estão vendo como o que se faz no campo se potencializa na vinícola"
Como se trabalha mercado interno e externo?
O vinho é identidade, e a identidade é algo que não se constrói baseado nos outros. A Argentina vende 70% dos seus vinhos no mercado interno e 30% vão para fora. Hoje não há vinhos para o mercado argentino e vinhos destinados a exportação. As pautas do mercado argentino e internacional são similares, e isso é muito bom, pois a identidade se constrói sobre a base do próprio mercado. Muitas vezes escuto a expressão “vinhos de estilo internacional”. O estilo internacional, na verdade, é a falta de estilo. Então devemos fazer vinho argentino, vinho de uma região de montanha, de deserto, cada região expressa um clima e um solo. No vinho não há generalidades, há especificidades.
Quais os desafios do vinho hoje?
Para mim, o maior desafio nos vinhos hoje é a elegância, o equilíbrio. O equilíbrio é algo que se estabelece, e para mim ele tem a ver com a expressão da terra. A tecnologia consegue fazer o vinho chegar até um nível. Mas quando falamos de alta qualidade, falamos de terra e da expressão da terra. E esse equilíbrio se consegue no vinhedo, não se pode obter tecnologicamente.
Vinhos avaliados AD 93 pontos AD 91 pontos |
+lidas
1000 Stories, história e vinho se unem na Califórnia
Vinho do Porto: qual é a diferença entre Ruby e Tawny?
Pós-Covid: conheça cinco formas para recuperar seu olfato e paladar enquanto se recupera
Os mais caros e desejados vinhos do mundo!
Notas de Rebeldia: Um brinde ao sonho e à superação no mundo do vinho