O Bikavér, o Sangue de Touro, é um bom vinho produzido na Hungria além do Tokaji-Hegyalja
Euclides Penedo Borges Publicado em 27/03/2019, às 15h00
Quem conhece as aventuras do Barão de Münchhausen há de se lembrar como ele faz seu mensageiro correr a pé, velozmente, de Constantinopla a Viena, ida e volta, para trazer Tokaji ao sultão turco. Deixando de lado o evidente exagero, a passagem ilustra como o doce vinho húngaro já era famoso na Europa do século XVIII. Na realidade, os vinhos botritizados de Tokaji-Hegyalja têm sido sinônimos de vinho húngaro desde o século quinze, época bem anterior, portanto, ao surgimento do Sauternes e dos vinhos doces da Renânia.
Consta que o Tokaji tenha sido apresentado ao Papa Pio IV no Concílio de Trento, em 1560, por um prelado húngaro. Além disso, a corte dos czares russos o manteve em suas adegas por anos a fio até a revolução comunista. O dístico da Imperatriz Maria Teresa da Áustria, rainha da Hungria e da Boêmia, costumava referir-se ao Tokaji da seguinte maneira: nullun vinum nisi hungaricum (em portugês, nenhum outro vinho, a não ser o húngaro). Não quer dizer, porém, que a vinicultura limita-se a eles.
Os vinhos secos do vale do Danúbio, do Lago Balaton e de Eger têm história, importância e personalidade própria. O consumo, contudo, restringia-se às regiões de origem e à área metropolitana de Budapeste. Nas proximidades dessa bela capital, por exemplo, a elaboração de espumantes é notável nos dias de hoje e fazem a festa da multidão de turistas que passam por aí. As crises e as guerras dos séculos XIX e XX e a satelitização da Hungria concorreram para empanar o brilho da vinicultura húngara até a segunda metade do século XX.
Com a implosão do sistema soviético, a vinicultura na Hungria passou a se reorganizar. Não somente sua marca mais famosa, mas também aquelas dos vales fluviais e das colinas do Balaton, o maior lago de água doce da Europa, mereceram atenção do País e do exterior. A atual política de aproximação com o ocidente levou a Hungria a não se apoiar somente nos vinhos doces. O talento dos vinhateiros locais e a existência de boas uvas viníferas nativas, cultivadas em clima e solos apropriados, atraíram capitais externos.
Assim, se por um lado os espanhóis do Vega Sicilia, a seguradora francesa AXA, o grupo inglês liderado por Hugh Johnson e os japoneses da Suntory instalaram-se em Tokaj-Hegyalia, por outro, a casa Antinori, da Toscana, colocou Szekszard, no Danúbio, no mundo do vinho, e a alemã Henkell elabora espumantes em Budafok.
A reação inicial deuse com a presença nos anos 1990 dos flying winemakers, entre eles Hugh Ryman e Kym Milne, que, seguindo a tendência globalizante, aclimataram castas francesas e prepararam brancos de Chardonnay e Sauvignon Blanc e tintos de Cabernet, Merlot e Pinot Noir.
Tais vinhos lastreavam-se no gosto internacional uniformizado e não tiveram o sucesso desejado em termos competitivos.
Afinal de contas, os húngaros já dispunham de um tesouro de castas nativas tradicionais, como as brancas Furmint e Harslevelu, e as tintas Kadarka e Kekfrankos.
A moderna vinicultura da Hungria conquista seus nichos de mercado através de vinhos marcadamente húngaros, porém modernizados, como o Bikavér de Szeksard, o Egri Bikavér, de Eger, os tintos encorpados de Villany e os brancos, incluindo Rieslings, de Badacsony, no Lago Balaton.
E para não deixar de graça: Bikavér (em português, sangue de touro) é um nome histórico húngaro da época das invasões turcas do século XVI. Ele refere- se a manchas vermelhas nos uniformes dos soldados, indicando aos seus inimigos que eles se prepararam bebendo sangue de touro. O vinho Bikavér procura repetir tal robustez.