A grande vinícola de Bordeaux usa uma filosofia de produção borgonhesa
Arnaldo Grizzo Publicado em 09/04/2019, às 14h00 - Atualizado às 15h19
Até meados do século XX, os vinhos do Pomerol não figuravam entre os grandes nomes de Bordeaux. O Médoc era a casa dos mais prestigiados e caros. No entanto, mais recentemente, a pequena região na margem direita de Bordeaux, com apenas 12 quilômetros quadrados de área, tornou-se um fenômeno, com vinhos que, muitas vezes, superam os preços dos rótulos mais famosos de outras localidades próximas.
Logo, nomes como Pétrus, Le Pin e Lafleur passaram a ser sussurrados em salas de degustação e caçados por colecionadores, alcançando valores estratosféricos, especialmente devido às produções diminutas. Entre eles, um dos mais aclamados, apesar de menos conhecido do público em geral, é Lafleur.
Os críticos, entre eles Robert Parker (a quem o Château deve muito de sua fama atual) e Jancis Robinson, não se cansam de dizer que definitivamente não é um vinho para neófitos, devido, principalmente ao seu exotismo – com muita fruta fresca, acidez e mineralidade, diferenciando-se de seus conterrâneos que tendem a ser mais ricos, potentes e intensos. Mais do que isso, com somente 4,5 hectares de vinhas escondidas entre as propriedades de Pétrus e La Fleur-Pétrus, o Château segue um estilo borgonhês em plena Bordeaux.
Jacques Guinaudeau, pertencente à quinta geração da família que fundou a propriedade, gosta de dizer que Lafleur é um vinhedo único localizado em uma encosta em forma de anfiteatro ao norte de Pétrus. O solo tem muito mais cascalhos e tem cor mais castanha do que a argila encontrada no vizinho, que fica a menos de 100 metros de distância. “Em uma análise de solo feita em 1998, descobrimos que o Château tem cinco tipos diferentes: o noroeste tem cascalho acastanhado, o sul tem mais argila e cascalho arenoso, e o leste tem argila arenosa e um pouco de cascalho. No meio, há uma mistura de tudo isso”, revela Guinaudeau, como se estivesse explicando a diferença de solos nos terroirs da Borgonha.
Segundo ele, essas condições diferentes de solo têm influência direta no amadurecimento das uvas, assim como nos seus tamanhos e concentrações. Dessa forma, o vinhedo é trabalhado em quatro parcelas distintas, apesar de todas se unirem para criar um único vinho. Lá, eles cultivam somente Merlot e Cabernet Franc, com uma densidade de cerca de 8 mil vinhas por hectare. “Com a alta densidade, não queremos apenas aumentar a concentração de uvas, mas também protegê-las de receber luz direta do sol”, aponta o produtor.
“O Château Lafleur era, e permanece até hoje, mais um celeiro que uma vinícola”, diz Robert Parker
Com isso, a colheita é feita em diferentes fases, assim como a vinificação. Cada parcela é vinificada separadamente e o blend só é feito na fase de maturação em barrica que, por sinal, é apenas 50% nova. “Para reter as qualidades – fruta deliciosa e aromas perfumados –, evitamos maturar somente em barricas de carvalho novo”, diz Guinaudeau. Ao final, ele produz cerca de 12 mil garrafas de seu Château Lafleur e outras 5 mil do segundo vinho da propriedade, o Pensées de Lafleur, criado em 1987, quando ele e a esposa, Sylvie, decidiram que a safra daquele ano não era boa o suficiente para seu vinho principal.
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Fenômeno recente, o Château Lafleur data de 1872, quando o tataravô dos atuais proprietários, Henri Grelou, comprou as terras que até então pertenciam ao Château Le Gay. Com o tempo, a propriedade passou para seu filho, Charles e, em seguida, para seu sobrinho, André Robin, que teria criado o mote do Château: “Qualidade ultrapassa a quantidade”.
Em 1946, tanto Lafleur quanto Le Gay foram herdados por Marie e Thérèse, filhas de Robin. As irmãs ficaram à frente do Châteaux por cerca de 40 anos e nunca tiveram interesse que seu vinho ganhasse nome, preferindo ficar à sombra do vizinho Pétrus. Ao contrário da família Moieux e de Madame Loubat, dona de Pétrus, que vivia promovendo seu rótulo, elas viviam praticamente reclusas. Solteironas, iam de bicicleta de Lafleur a Le Gay e não gostavam de receber visitas.
Em 1981, elas pediram aos Moieux se seu enólogo, Jean-Claude Berrouet, estaria interessado em dar consultoria à propriedade. No ano seguinte, a parceria produziu um dos primeiros vinhos 100 pontos de Parker. Três anos depois, porém, Thérèse faleceu e Marie decidiu licenciar os vinhedos para os sobrinhos Jacques e Sylvie Guinaudeau, que conseguiram comprar a propriedade em 2002 (depois de venderem sua participação no Le Gay).
Propriedade remonta a 1872, quando Henri Grelou comprou as terras que até então pertenciam ao Château Le Gay
Até hoje, porém, apesar da fama, encontrar o Château não é tarefa fácil. Não há indicação e a pequena casa de pedra mais parece um armazém das propriedades vizinhas do que uma verdadeira vinícola. Em uma de suas primeiras visitas à propriedade, Parker lembra de ter ficado chocado: “Os barris, bem como um bando de patos, galinhas e coelhos, ficavam alojados dentro da adega. Sempre fiquei espantado como vinhos de tão grande extração e de caráter absolutamente alucinante poderiam ser produzidos em condições tão imundas”. E conclui: “O Château Lafleur era, e permanece até hoje, mais um celeiro que uma vinícola”.
Segundo críticos, Lafleur costuma ser mais complexo aromaticamente do que seu vizinho, Pétrus
Parker, porém, também admite que Lafleur tem, no mínimo, o mesmo status que Pétrus, seu vizinho, e, por vezes, é capaz de superá-lo. “Em muitas colheitas, do ponto de vista aromático, é mais complexo do que Pétrus, sem dúvida por causa das vinhas velhas de Cabernet Franc que possui”, aponta. Além dos 100 pontos dados para o vinho de 1982, o crítico ainda consagrou as safras de 1975, 1950, 1947 e 1945, considerando-as perfeitas.
Para Jancis Robinson, os vinhos de Lafleur são altamente concentrados e exóticos, porém, da sua própria maneira, sem serem exagerados ou manipulados. O terroir está na garrafa, com a opulência no nariz seguida por uma estrutura mais rígida no palato. Para ela, o vinho tem sabores mais complexos e exige um envelhecimento maior do que a maioria dos outros de Pomerol, que tendem a ter mais Merlot no blend.