Rica e complexa, a Pinot Noir mostra que pode continuar elegante e sedutora mesmo fora da Borgonha
Eduardo Milan Publicado em 02/03/2019, às 15h00 - Atualizado em 24/06/2019, às 18h38
Uma das mais importantes cepas tintas, base para alguns dos melhores vinhos produzidos no mundo, a Pinot Noir é complexa e emblemática, exigente em todos os aspectos: o viticultor e o enólogo devem ter grande conhecimento técnico e dedicação para extrair dela todas as suas qualidades e sutilezas; o amante do vinho deve se aplicar para compreendê-la e apreciar todos os tons, aromas e sabores dos vinhos produzidos a partir dela.
O nome "Pinot Noir" faz alusão clara à aparência do cacho de uvas dessa variedade, cujos bagos bastante escuros agrupam-se de maneira muito justa, formando um conjunto cônico, que lembra uma pinha. Desenvolve-se, principalmente, em climas mais frios.
A Pinot Noir é certamente uma das mais antigas castas de que se tem notícia. Acredita-se que já era cultivada na Borgonha há aproximadamente 2.000 anos, quando os romanos chegaram à região. O primeiro registro escrito de sua existência, entretanto, data de 1375, e a primeira alavancada lhe foi dada quando uma ordem banindo a produção de Gamay em seu favor foi lançada por Filipe de Valois, Duque da Borgonha, que viveu no século XIV.
O fato de ser uma cepa tão antiga carrega suas implicações. A principal delas provavelmente é o fato de que a Pinot Noir muda com facilidade. Ao longo dos séculos, diversos clones - versões de plantas com sutis distinções - se desenvolveram, com diferentes capacidades de rendimento, tempo de maturação, sabores e qualidades. Se por um lado essa "instabilidade genética" faz com que a Pinot Noir tenda a se adaptar às condições do local onde a vinha esteja plantada, por outro lado, por vezes, torna-se mais difícil manter determinadas características (no caso de alguns clones) e trabalhar com ela.
De qualquer forma, sendo os vinhos produzidos a partir de Pinot Noir tão apreciados pelo mundo, é natural que o seu cultivo tenha extrapolado as fronteiras da França e hoje haja vinhedos da variedade em diversos pontos do globo.
O primeiro registro escrito da existência da Pinot Noir é de 1375
Apesar de ser cultivada também em outras regiões da França - como no Vale do Loire e na Alsácia -, com ótimos resultados, é inegável que a Borgonha seja o berço da Pinot Noir; lá a uva apresenta seu maior sucesso e há vinhas cultivadas por toda a região, exceto em Beaujolais. O Pinot Noir clássico da Borgonha é elegante; quando jovem, tem sabores de frutas vermelhas - tais como cerejas, framboesas e morangos - que, com o tempo, evoluem para sabores vegetais e herbáceos, com notas de carne de caça. Os níveis de acidez e taninos variam de acordo com o vinhedo, o produtor e a safra, embora raramente sejam muito adstringentes. São vinhos de bom corpo, advindo da maturação natural da fruta ou do processo de chaptalização.
Diante de tantas qualidades, enólogos de todo o mundo buscavam - alguns ainda buscam - reproduzir o perfil do clássico Pinot Noir da Borgonha em seus vinhos. Felizmente, alguns produtores agora têm seu foco na uva em si, em sua tipicidade e em como suas características se revelam em cada terroir, explorando-a de forma cada vez mais cuidadosa e chegando a resultados melhores a cada ano.
Mas, afinal, como deve ser um Pinot Noir? Se antigamente a resposta faria referência ao que se faz na Borgonha, hoje a resposta é: depende de onde ele é proveniente. Em cada lugar do mundo - e são muitos - o terroir, a escolha do clone e o trabalho do enólogo têm influência direta no que será servido no copo. O importante é manter a tipicidade da cepa.
A Alemanha é o terceiro maior produtor de Pinot Noir no mundo, ficando atrás apenas da França e dos Estados Unidos. De fato, lá a uva é conhecida pelo nome de Spätburgunder. Os vinhos produzidos atualmente a partir dela são encorpados, bem estruturados e frutados. Seu cultivo se dá principalmente em Ahr, Pfalz e Baden. Merecem destaque, entre outros, os produtores: Meyer-Näkel e Jean Stodden no Ahr; Friedrich Becker, Christmann e Knipser em Pfalz; Dr. Heger, Bernhard Huber e Karl H Johner em Baden.
Recentemente, os alemães têm obtido sucesso na produção de tintos envelhecidos em madeira de qualidade internacional. Pouca quantidade é exportada e a demanda é maior do que o volume de vinho produzido, determinando preços altos para os melhores rótulos.
Assim como acontece na Alemanha, na Áustria a Pinot Noir também recebe uma denominação própria, no caso, Blauer Burgunder. Entretanto, ainda assim não é largamente cultivada. Os rótulos mais distintos são produzidos em Viena e em Burgenland.
Na Itália, a Pinot Noir é chamada de Pinot Nero. Chegou ao país por volta de 1835, sendo que somente há duas décadas novos clones, de melhor qualidade, e novas técnicas de condução e manejo foram introduzidos. É cultivada em regiões frias, como Lombardia, Trentino, Alto Adige, Collio e Fruilli, onde notadamente é usada para a produção de espumante. À parte dessa destinação, alguns produtores têm se empenhado e obtido ótimos tintos a partir da cepa, os quais apresentam grande intensidade e complexidade de sabores. Destacam-se os rótulos vindos de Trentino e Alto Adige elaborados, entre outros, por Lunelli, Franz Haas, J Hofstätter e Elena Walch.
Existem vinhedos de Pinot Noir espalhados por todo o Leste Europeu, ainda que cultivados em pequena quantidade e sob alguma variação de nome. Como exemplo, podem ser citadas as vinhas de Burgundac Crni em partes da Croácia. A uva também pode ser encontrada na República Tcheca, na Eslováquia, na Hungria, na Bulgária, na Romênia, na Moldávia, na Geórgia, no Azerbaijão, no Cazaquistão e no Quirguistão. Geralmente, dessas regiões vêm vinhos mais simples, por vezes muito suaves e com muita fruta em compota e/ou madeira.
Na Espanha, alguns experimentos são feitos com a Pinot Noir em Somontano e na Catalunha, onde é cultivada principalmente para a produção de cavas. Também são encontrados vinhedos da uva em Portugal, que vem produzindo poucos, porém bons, rótulos de Pinot Noir. Um belo exemplo são os ótimos resultados obtidos por Carlos Campolargo na Bairrada.
A casta é também relativamente importante na Suíça: na parte alemã, onde leva o nome de Blauburgunder, para a produção de espumantes, e na parte francesa, onde é combinada geralmente com Gamay para a elaboração do Dôle, vinho muito comum e consumido na região de Valais.
Exemplares excepcionais podem ser encontrados em Martinborough, na região de Wairarapa, ao sul da Ilha Norte, Marlborough, e Central Otago, localizado no sul da Ilha Sul. Os vinhos de Martinborough são elegantes, ricos, aveludados e têm sabores de cerejas. Em Marlborough se produz Pinots um pouco mais leves e mais vegetais. Já os vinhos de Central Otago são complexos e poderosos, mais ácidos e intensos, mas, ainda assim, elegantes.Até alguns anos atrás, o clima da Nova Zelândia era tido como propício apenas para a produção de brancos. Atualmente, seus Pinot Noir têm sido comparados aos rótulos produzidos na Borgonha, em termos de tipicidade e elegância.
Pinot Noir da Nova Zelândia é comparado com os da Borgonha em termos de tipicidade e elegância
Com tudo isso, o país já se estabeleceu como um dos lugares em que se faz um dos melhores Pinot Noir do Novo Mundo, dando projeção mundial a produtores como: Ata Rangi, Craggy Range, Felton Road, Isabel State, Martinborough Vineyard, Pegasus Bay, Sileni Estate e Rippon, entre outros.
Inicialmente, clones não ideais foram plantados em áreas muito quentes e o resultado foi vinhos muito cozidos e com muito sabor de frutas em compota. A partir do empenho dos enólogos, a qualidade geral dos Pinot Noirs australianos melhorou muito. Novos clones cultivados especialmente nos arredores de Melbourne, especialmente nas regiões de Yarra e Mornington, produzem hoje vinhos mais delicados e elegantes. Essa constante evolução pode ser percebida nos rótulos de produtores como Coldstream Hills, Paringa State, Bannockburn e Yarra Yering, por exemplo.
Nos Estados Unidos, a Pinot Noir é cultivada especialmente em dois Estados: Califórnia e Oregon. Embora a maior parte da Califórnia apresente clima quente demais para o que seria ideal para a cepa, na região de Carneros as temperaturas normalmente são de 3ºC a 5ºC mais baixas do que aquelas do norte de Napa Valley. Assim, ótimos rótulos vêm sendo produzidos no local, vinhos com fragrância e sedosidade fascinantes, difíceis de serem alcançadas.
Os vinhos de Carneros têm sabores de morangos selvagens, com boa presença na boca. Já os Pinots de outras regiões de Napa costumam ser mais terrosos e apresentar notas de couro. Em Sonoma, também nota-se diferenças entre os rótulos de Russian River - que são mais tintos e têm sabores de amoras - e Sonoma Coast -, mais perfumados e sensuais. Por fim, mais ao sul, em Santa Barbara County, são produzidos exemplares mais pesados e complexos, com notas de cerejas negras e ameixas.
Entre vários bons produtores californianos, merecem destaque os rótulos produzidos por: Acacia, Au Bon Climat, Merry Edwards, Etude, Hartford Family, Marcassin, Morgan, Paul Hobbs, Patz & Hall, Siduri, Talley e Williams Selyem.
No Oregon, estado ao norte da Califórnia, os vinhedos se estendem na direção sul a partir da cidade de Portland. O clima é mais ameno, com invernos suaves e verões quentes e nublados, sendo propícios ao desenvolvimento da Pinot Noir que, na verdade, é a casta mais cultivada no local.
A qualidade dos vinhos já é muito boa e vem melhorando ao longo dos anos, a partir da seleção de melhores clones. De fato, no Oregon o foco principal é produzir Pinots charmosos e suaves, embora alguns produtores venham trabalhando em rótulos mais sérios, estruturados e com bom potencial de guarda. Destacam-se, nessa região: Argyle, Beaux Frères, Domaine Drouhin, Domaine Serene, Ponzi, Rex Hill, Torii Mor, WillaKenzie e Ken Wright.
Grandes rótulos, de boa tipicidade, podem ser encontrados em diversas partes do Novo Mundo
Vitivinicultores chilenos têm desenvolvido um bom trabalho com a casta. Basicamente, o que têm feito é cultivar a cepa em regiões cujo terroir seja mais adequado ao seu bom desenvolvimento, além de aplicar técnicas de manejo e vinificação utilizadas na Borgonha, tudo isso para capturar sua essência da melhor forma, produzindo vinhos de excelente qualidade, com boa relação custo- benefício. De sabores mais suaves, os Pinot Noirs chilenos são maduros e sedutores.
Vale de Casablanca é a principal região produtora de Pinots do país, embora existam bons rótulos no Vale de San Antonio, especialmente no setor de Leyda, e, mais ao sul, Bío-Bío. Casa Marín, Undurraga, Amayna, Cono Sur, Errázuriz, Tabalí, Leyda, Ventisquero e Santa Rita são algumas das vinícolas que estão produzindo vinhos de ótima tipicidade e que merecem ser provados.
Apesar de ser cultivada em diversas regiões da Argentina, é na Patagônia que a Pinot Noir apresenta os melhores resultados, provavelmente devido ao seu clima mais frio. Tanto em Neuquén quanto em Rio Negro existem hoje empreendimentos focados em produzir vinhos de alta qualidade. Os bons rótulos possuem acidez refrescante, fluidez e concentração de fruta e, respeitando a tipicidade da cepa, expressam o terroir local.
Ernesto Catena, Salentein, Septima, Luigi Bosca, Alfredo Roca, Zorzal, Mariflor e Bressia vêm obtendo resultados interessantes em Mendoza. Já na Patagônia, Chacra, Patriti, Humberto Canale, Del Fin del Mundo, Marcelo Miras e Familia Schroeder merecem ser lembrados por estarem, ano após ano, mostrando uma evolução crescente na qualidade e tipicidade de seus Pinots.
Em solo nacional, a Pinot Noir é cultivada com foco voltado, principalmente, para a produção de espumantes. Recentemente, algumas vinícolas da Serra Gaúcha e de Santa Catarina têm se aventurado a produzir tintos varietais a partir dessa casta, mostrando resultados satisfatórios e constante evolução ano após ano. Vale destacar Monte Paschoal, Miolo, RAR, Quinta da Neve, Sozo, Salton, entre outras.
Em termos gerais, o clima sul-africano é mais quente do que os climas das demais regiões do Novo Mundo onde a Pinot Noir é cultivada. Além disso, alguns vinhedos foram atingidos pelo chamado vírus do enrolamento da folha da videira (leafroll virus). Apesar desses contratempos, os produtores que conseguem trabalhar com a uva acabam por elaborar tintos bem elegantes, à moda borgonhesa. Hamilton Russel, De Wetshof e Bouchard Finlayson são algumas das vinícolas que vêm se destacando nesse cenário.
Onde quer que haja um produtor de vinhos com bom gosto, haverá algum experimento sendo feito com a Pinot Noir. E quem ganha com isso é o consumidor, que hoje pode encontrar e apreciar exemplares de excelente qualidade a custos mais baixos em relação aos clássicos da Borgonha.
Para esta matéria, ADEGA degustou, às cegas, 16 vinhos Pinot Noir de nove países, sendo quatro da Argentina, três do Chile, dois do Brasil, dois da Nova Zelândia, um da Alemanha, um de Portugal, um da África do Sul, um da Eslovênia e um da Austrália.
Em termos gerais, o que pudemos constatar durante a degustação foi um nível muito bom de todos vinhos, até mesmo daqueles de preço mais acessível. Todos mostraram, dentro de seus estilos - com ou sem madeira, clima quente ou frio -, respeito às características da cepa e ao lugar de onde vieram.
Dentre todos os vinhos, destacaram-se: o Caitec Pinot Noir, pela ótima relação qualidade-preço; o Wild Fermented Pinot Noir e o Rosemount, pelo equilíbrio, elegância e tipicidade; o alemão Meyer-Nakel, pela complexidade e sutileza em harmonia com sua potência; o surpreendente português Campolargo, pela grande estrutura e complexidade sem comprometer sua elegância e tipicidade, lembrando os vinhos de Pommard, na Borgonha; e, por fim, o Craggy Range Te Muna Road, por ser uma síntese brilhante entre a elegância e sutileza do Velho Mundo, e a fruta madura e untuosa do Novo Mundo.