História da criação: novos dados genéticos lançam novas teorias sobre origens das uvas

Pesquisa revela que videiras selvagens estão presentes há milhares de anos na Eurásia

Arnaldo Grizzo Publicado em 31/07/2024, às 12h00

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Diversas lendas e alguns estudos apontam que as uvas selvagens cresceram na Ásia Central e se dispersaram para o oeste à medida que os primeiros humanos migraram nessa direção há cerca de 8.000 anos.

No entanto, um amplo estudo intitulado “Domesticações duplas e origem de características na evolução da videira”, publicado na revista Sciente em maio de 2023, aponta que pode haver outros caminhos para as origens das vinhas.

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Um grupo internacional de quase 90 pesquisadores coletou e analisou 2.503 videiras únicas de uvas de mesa e vinho domesticadas e 1.022 videiras selvagens para tentar determinar suas origens. Ao extrair DNA das videiras e determinar os padrões de variações genéticas entre elas, eles encontraram algumas surpresas.

Os dados genéticos coletados indicam que entre 400.000 e 300.000 anos atrás, as uvas cresciam naturalmente por todo o continente euroasiático ocidental e central. Todavia, há cerca de 200.000 anos, um clima frio e seco da era glacial lentamente matou as vinhas na região central do Mar Mediterrâneo, dividindo o habitat da videira em duas áreas isoladas: uma a oeste do mar (hoje Portugal, Espanha e França) e outra a leste (aproximadamente Israel, Síria, Turquia e Geórgia).

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Cerca de 56.000 anos atrás, a região oriental se dividiu novamente em áreas isoladas menores: o Cáucaso (Geórgia, Armênia e Azerbaijão) e a Ásia Ocidental (Israel, Jordânia e Iraque).

Até pouco tempo atrás, os pesquisadores acreditavam que os humanos domesticaram as videiras de seus progenitores selvagens há cerca de 8.000 anos, durante uma revolução agrícola inicial que se espalhou pela região que hoje compreende a Ásia Ocidental e a Europa.

Alguns, contudo, diziam que as videiras foram cultivadas pela primeira vez na Península Ibérica (principalmente em Portugal e Espanha) há aproximadamente 3.000 anos. Outros acreditavam que a domesticação ocorreu inicialmente no Cáucaso. Para complicar ainda mais, havia discordância sobre se as uvas foram usadas primeiro para alimentação ou para fermentação.

O estudo recente resolve esse debate apontando que humanos na Ásia Ocidental domesticaram uvas de mesa há cerca de 11 mil anos. Simultaneamente, pessoas no Cáucaso domesticaram uvas viníferas – embora provavelmente não tenham dominado a vinificação por mais 2.000 ou 3.000 anos.

Duas linhas

As videiras selvagens da antiguidade dividiram-se há cerca de 200 mil anos em duas linhas genéticas primárias, denominadas ocidental e oriental, e espalharam-se naturalmente por toda a Eurásia.
Os humanos que migraram para lá domesticaram pela primeira vez uvas para vinho e de mesa há cerca de 11.000 anos, quando a agricultura começou a se desenvolver.
O cultivo e o cruzamento subsequentes levaram a seis geolinhagens gráficas que compõem em grande parte as variedades que desfrutamos hoje. 

De acordo com a hipótese levantada, os primeiros agricultores migraram da Ásia Ocidental para a Península Ibérica, levando consigo videiras de mesa. Ao longo do caminho, cruzaram essas videiras com variedades selvagens locais.

O primeiro cruzamento provavelmente ocorreu nas regiões que hoje são Israel e Turquia, resultando nas uvas Moscatel, ricas em açúcar – boas tanto para comer quanto para fermentar. Gradualmente, as uvas de mesa foram geneticamente transformadas em diferentes variedades viníferas nos Balcãs, Itália, França e Espanha. 

Mas se as pessoas no Cáucaso já tinham uvas viníferas, por que não as trouxeram para a Europa? Não se sabe. As pessoas que migraram de lá – notadamente os nômades Yamnaya, de 4.000 a 5.000 anos atrás – podem ter trazido videiras, mas a análise genética mostra que as uvas do Cáucaso tiveram pouca influência nas variedades europeias. 

Uma vez que os agricultores começaram a cultivar uvas viníferas na Europa, desenvolveram muitas das variedades mais usadas hoje. Algumas uvas, como a Cabernet Sauvignon, mantêm o mesmo nome em todos os lugares onde são cultivadas.

Outras, como a Zinfandel e a Primitivo, têm nomes diferentes em regiões distintas, embora sejam geneticamente idênticas. Infelizmente, é quase impossível rastrear uma variedade moderna até a Ásia Ocidental ou o Cáucaso, os dois primeiros centros de domesticação. Ao longo dos séculos, viticultores cruzaram uvas de mesa e viníferas, além de variedades domesticadas e selvagens, e até mesmo descendentes com seus progenitores.

“Uma vez que obtinham uma videira superior, geralmente destruíam as anteriores”, aponta Wei Chen, pesquisador sênior da Universidade Agrícola de Yunnan, na China, e um dos líderes do estudo. Isso dificulta a construção de uma árvore genealógica.

O estudo

Em um primeiro momento, o estudo fez um agrupamento hierárquico de componentes ancestrais que identificou quatro grupos de V. sylvestris (videiras selvagens) de regiões geográficas distintas: Ásia Ocidental (Syl-E1), Cáucaso (Syl-E2), Europa Central (Syl- W1) e Península Ibérica (Syl-W2). Para videiras cultivadas (CG), seis ancestrais genéticos poderiam designar seis grupos distintos chamados de videiras de mesa da Ásia Ocidental (CG1), videiras para vinho caucasianas (CG2), videiras moscatel (CG3), videiras dos Balcãs (CG4), videiras ibéricas (CG5) e videiras da Europa Ocidental (CG6). 

De acordo com a pesquisa, o clima húmido no Holoceno Inferior (11.700 a 8.300 anos atrás) facilitou a expansão de habitats adequados para Syl-E, resultando numa grande extensão geográfica da Ásia Central à Península Ibérica.

Esta expansão apoia a origem oriental e subsequente dispersão continental de V. vinifera. “Como CG1 compartilha o principal componente ancestral com Syl-E1 e CG2 com Syl-E2, a possibilidade de dois eventos de domesticação torna-se evidente.

[...] Estes dados apoiam coletivamente uma origem dupla de V. vinifera e rejeitam a teoria popular de um único centro primário de domesticação. [...] Estimamos que o tempo médio de divisão da população seja de aproximadamente 11.000 anos atrás, sugerindo que os eventos de domesticação ocorreram simultaneamente em torno do advento da agricultura. Como CG1 e CG2 representam separadamente origens genéticas antigas de videiras de mesa e de videira, a origem dupla rejeita a suposição de que as videiras para vinho são anteriores às videiras de mesa”. 

“Os tempos de divergência medianos estimados datam a criação das uvas moscatel (CG3) em 10.500 anos atrás, das uvas para vinho dos Balcãs (CG4) em 8.070 anos atrás, das uvas para vinho ibéricas (CG5) em 7.740 anos atrás, e das uvas para vinho da Europa Ocidental em 6.910 anos atrás. Estes tempos de diversificação gradual concordam com a migração histórica dos agricultores da Anatólia para a Europa, substanciando o papel da viticultura na formação de sociedades agrícolas neolíticas”. 

“Nosso levantamento genômico sistemático dos acessos de V. sylvestris e V. vinifera pinta um quadro definido da história evolutiva da videira, que ecoa eventos-chave na história das mudanças climáticas mundiais e da migração humana. A era Pleistoceno testemunhou a fragmentação contínua de habitats, o declínio do tamanho efetivo da população e a separação de ecótipos para V. sylvestris.

É altamente provável que os humanos modernos tenham utilizado extensivamente a videira como fonte de energia desde o final do Pleistoceno, mas o clima rigoroso não era adequado para a agricultura. À medida que as condições climáticas melhoraram na transição Pleistoceno-Holoceno, a videira, com o seu rendimento perene relativamente estável, tornou-se, sem surpresa, uma das primeiras candidatas à domesticação.

Os eventos duplos sustentam o modelo de que a domesticação das plantas ocorre em grandes áreas culturalmente ligadas durante um longo período. Os diversos haplótipos (partes do cromossomo) sugerem que um objetivo inicial poderia ser a seleção consciente e a propagação de indivíduos hermafroditas raros e de ocorrência natural da população de V. sylvestris, porque permitem a plantação em massa sem plantas masculinas. [...]

Os períodos Mesolítico e Neolítico também viram a dispersão e diversificação precoce das videiras, de tal forma que ancestrais únicos surgiram nos Balcãs, na Península Ibérica e na Europa Ocidental com a ajuda da introgressão (transferência ou introdução permanente de genes de uma espécie para outra) de V. sylvestris no CG1. Este evento reflete a migração precoce de agricultores na Europa, consolidando o papel da viticultura na formação de sociedades sedentárias.

Um nível mais elevado de intercâmbio cultural caracteriza a última fase desde a Idade do Bronze e a comercialização de cultivares de videira superiores ao longo das rotas comerciais. Isto é especialmente evidente na infinidade de cultivares italianas com três ou mais ascendências genéticas, mas infelizmente representa um desafio para desvendar a história genealógica de cada cultivar de videira”, finaliza o estudo.

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