“Longo e árduo é o caminho que conduz do inferno à luz”, escreve John Milton no poema épico "Paraíso Perdido"
Arnaldo Grizzo Publicado em 07/05/2022, às 08h00
A lenda da queda dos anjos e do homem do paraíso, contada pela pena de John Milton em seu poema épico Paraíso perdido, é de uma beleza singular.
A história, como já se sabe, narra a rebelião dos anjos liderados por Lúcifer, que terminam banidos do paraíso e, posteriormente, corrompem o homem, fazendo com que Deus também o expulse do Jardim do Éden. Mas, que lenda não fica ainda mais romantizada quando contada por um italiano, não é mesmo? E quando ele é um napolitano então, nem se fala.
Pois os napolitanos gostam de contar essa história de uma forma um pouco diferente. Segundo eles, quando Lúcifer foi expulso, roubou um pedaço do paraíso com o qual ele teria criado o quê? Obviamente o golfo de Nápoles (por que seria diferente?). Satanás então teria sido tragado pelas entranhas do inferno no local onde se originou o monte Vesúvio.
Para ser ainda mais dramático, Jesus, vendo o furto, teria chorado e vertido suas lágrimas naquele ponto. Essas lágrimas teriam se tornado as videiras que dão origem aos vinhos Lacryma Christi, uma denominação icônica daquela região italiana.
Segundo outra lenda, Jesus, disfarçado, teria se apresentado a um eremita que vivia nas encostas do Vesúvio e, fingindo estar com sede, pediu-lhe algo para beber. Para agradecer a generosidade do eremita, transformou a sua água em néctar de vinho.
Apesar do nome “lágrimas de Cristo”, as origens do vinho no local são de antes de Jesus. Aristóteles escreveu que o antigo povo da Tessália, na Magna Grécia, plantou os primeiros vinhedos nas encostas do vulcão no século 5 a.C. Posteriormente, os romanos batizaram a região de Campânia Félix (“campo fértil”) e, segundo sua própria versão da lenda, disseram que o deus Baco chorou de alegria diante de uma paisagem tão bela, fazendo com que as vinhas ali nascessem.
O poeta romano Martial escreveu: “Baco amava essas colinas mais do que suas colinas nativas de Nisa”. Mais tarde, monges que se instalaram na “Turris Octava”, uma ex-colônia romana que assumiu o nome de Torre del Greco – a cidade do “vinho grego” – teriam “revisado” a história e substituiriam Baco por Cristo, “que então chorou sobre Vesúvio”.
Mas se há algo na lenda que remete à verdade é o quanto ela denota sobre a fertilidade e mineralidade do terreno, talvez não graças às lágrimas de Cristo (quem sabe...), mas às erupções vulcânicas do monte que domina a paisagem local.
Lacryma Christi foi mencionado no livro de Alexandre Dumas, “O Conde de Monte Cristo”, no poema de W. J. Turner, “Conversando com Soldados”, em “Cândido” de Voltaire, e por Christopher Marlowe em sua peça “Tamburlaine, o Grande, Parte II”. Outros tantos escritores citam as lágrimas de Cristo, que, segundo a denominação de origem, pode ser um vinho tinto, branco, rosé, espumante ou licoroso.
A denominação, por sinal, só foi estabelecida em 1983 e contempla as uvas cultivadas em quase todos os municípios da região: Boscotrecase, San Sebastiano al Vesuvio e parte dos municípios de Giuseppe Vesuviano, Terzigno, Boscoreale, Torre Annunziata, Torre del Greco, Herculano, Portici, Cercola, Pollena Trocchia, Sant'Anastasia e Somma Vesuviana.
Os Lacryma Christi branco, espumante e licoroso deve ter a variedade Coda di Volpe (denominada localmente Capretone ou Crapettone) com no mínimo 35%, e Verdeca no máximo de 45%. Falanghina e Greco podem contribuir com até 20%. Para Lacryma Christi tinto e rosé, deve-se usar Piedirosso (localmente chamada de Palombina) com no mínimo 50%, Sciascinoso (localmente chamada de Olivella) com no máximo 30% e uvas Aglianico até 20%.
Os napolitanos, obviamente, exultam seu vinho “divino” e parafraseando uma citação recente do escritor francês contemporâneo Jean-Paul Didierlaurent: “embebedar-se com as lágrimas de Cristo é a melhor coisa que pode acontecer a um cristão”.