Apesar de ser um dos deuses mais conhecidos quando se trata dessa bebida, Baco está longe de ser a única e tampouco a primeira
Arnaldo Grizzo Publicado em 24/05/2016, às 13h40 - Atualizado às 14h10
No ocidente, de tradição greco-romana, todos apontam o vinho como sendo a bebida de Baco – versão romana do deus grego, Dionísio.
Segundo a mitologia, ele é o filho de Júpiter com a mortal Sêmele, e foi perseguido por Juno (esposa de Júpiter) até se tornar adulto, quando então passou espalhar a cultura da vinha por toda a Ásia.
Mas, ao contrário do que muitos creem, Baco não detém a primazia mitológica sobre a cultura da vinha e a produção de vinho.
Apesar de ser a divindade mais conhecida quando se trata dessa bebida, ele está longe de ser a única e tampouco a primeira. Além dos gregos e dos romanos, egípcios, persas, etruscos, chineses e outros tantos povos criaram mitos e personagens relacionadas ao vinho ou à vinha.
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Antes da lenda romana, Dionísio era o deus grego do vinho. Seu mito foi adaptado pelos romanos – vale lembrar que, para os gregos, os deuses eram forças antropomórficas, já para os romanos, eram espíritos invisíveis da natureza. Na história grega, é Zeus (Júpiter) quem engravida Sêmele.
Ela, incitada pela ciumenta Hera (Juno), pede para que o deus se mostre em todo o seu esplendor. Ele atende seu desejo e, ao fazer isso, ela é fulminada. Zeus então retira o filho das cinzas e o coloca em sua coxa para terminar a gestação. Daí diz-se que ele nasceu duas vezes e seria, também, o único deus olímpico filho de uma mortal.
Outra vertente da história do deus grego do vinho dá conta de que seu nome original, na verdade, era Zagreu e ele teria sido filho de Zeus com Perséfone, antes de ela ser sequestrada por Hades, o senhor dos infernos (lenda que ficaria famosa como o “rapto de Perséfone”). No entanto, as lendas convergem quando dizem como Dionísio encontrou a vinha.
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A narrativa diz que, um dia, andando pela relva, ele encontrou uma pequenina planta verde, achou-a bonita e frágil, portanto, decidiu guardá-la dentro de um osso de pássaro para protegê-la.
Como ela logo cresceu, decidiu transplantá-la para um osso de leão. Vendo que ela já não mais cabia nesse invólucro, colocou-a, por fim, dentro de um osso de burro. Ao notar seus frutos, provou-os. Depois de saboreá-los, quis guardar alguns para comer pouco a pouco. O vinho teria se formado do sumo dos grãos guardados.
Interessante notar que essa sucessão de “recipientes” da vinha representam, segundo a mitologia, as diferentes fases do consumo do vinho. Ou seja, primeiramente, sente-se a alegria, como é alegre o voo das aves. Depois, a bebida dá-nos força e coragem, como um leão. Por fim, leva-nos ao comportamento banal, como dos burros.
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Na cultura romana, antes mesmo de Baco, já havia o culto a Liber Pater, deus da viticultura
A mitologia grega em torno de Dionísio é rica e, por vezes, controversa. Em alguns pontos diz-se que foi o sátiro Sileno, seu professor, quem lhe ensinou sobre a cultura da vinha e a produção de vinho. Ele teria sido o principal companheiro do deus e vivia bêbado. Acredita-se, ainda, que alguns filhos do deus é que disseminaram a vinha mundo afora.
Um deles seria Estáfilo. Reza a lenda que ele era filho de Dionísio com a princesa de Creta, Ariadne, e que teria sido o primeiro a conhecer o vinho. Estáfilo era um pastor de cabras. Um dia, notou que um dos bodes de seu rebanho sempre demorava mais para voltar ao cercado e parecia estar cambaleante.
Decidiu, então, que o seguiria e percebeu que ele comia os grãos de uma planta desconhecida. O pastor pegou as uvas e as levou ao seu rei, que mandou guardá-las. Elas logo fermentaram e criaram um suco maravilhoso.
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Mito similar diz que outro filho de Dionísio com Ariadne, Oenopion foi o criador do vinho. Ele foi um lendário rei da ilha de Quios e acredita-se que teria sido enviado para trabalhar com o centauro Pholos, profundo conhecedor da natureza, para preparar o vinho que serviria aos deuses do Olimpo. Seu nome quer dizer “bebedor de vinho” ou “cara de vinho”.
Alguns relatos apontam ainda que Oenopion teve um filho, chamado Maron, que se tornou um capitão espartano combatente na lendária batalha de Termópilas ao lado do rei Leônidas contra as tropas persas de Xerxes. Diz-se que Maron foi o herói do vinho doce e tão bom que se tornou divino ainda em vida.
Estáfilo, filho de Baco, teria sido o primeiro homem a conhecer o vinho
Voltando à cultura romana, na mesma época em que o mito de Baco surgiu, já havia o culto a Liber Pater (“pai livre”), tido como deus da viticultura, fertilidade e liberdade. Aliás, a maioria dos deuses do vinho estão direta ou indiretamente ligados à agricultura, à terra e tantos outros conceitos relacionados à liberdade humana em todas as suas expressões, incluindo a sexualidade.
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Liber, por exemplo, opõe-se aos sentimentos de servidão, e o termo também remente à libação, ao ritual de oferecer uma bebida e beber por prazer. Ele era o deus das festas, da colheita e do discurso libertário na época da República Romana. E ele também aparece no mito de Estáfilo.
Diz-se que foi Liber Pater quem mandou o pastor enviar as uvas para seu rei, chamado Oinos, e também quem ensinou o monarca a extrair o sumo e o transformar em vinho, dando ao líquido seu nome (oinos, em grego) e, às videiras, o nome do pastor (staphyle, significa uva, em grego).
Mas bem antes dos mitos gregos e romanos, havia os egípcios. Uma das primeiras divindades a ter seu nome ligado ao vinho foi Osíris, deus da agricultura e também da vida após a morte. Ele é o criador da civilização, tendo sido o primeiro a cultivar a vinha e pisar os grãos para obter vinho. Posteriormente, seu mito ficou muito relacionado ao de Dionísio.
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No entanto, os egípcios também consideravam o vinho como o suor de Rá, deus do sol. Ou então, eram as lágrimas de Hórus, seu deus criador. Mas, uma das divindades mais diretamente ligadas ao vinho foi Hator, deusa do amor, beleza, música, fertilidade, alegria, embriaguez etc.
Ela era esposa de Hórus e acreditava-se que seus olhos tinham surgido de dois grãos de uva. Por ser considerada uma deusa agressiva, ao final de seus cultos, oferecia-se vinho para aplacar sua violência.
Para os etruscos, Fufluns era o senhor das plantas, da felicidade e do vinho
Ainda antes de Roma, o povo que vivia na península itálica eram os etruscos. Em suas crenças, eles tinham o deus Fufluns, senhor das plantas, da felicidade, do vinho. Ele teria sido filho de Semla, a versão etrusca de Sêmele, mãe de Dionísio.
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Assim como suas versões posteriores, este deus já era representado com uma taça na mão e um tirso (bastão envolvido em hera e ramos de videira), caraterização típica das divindades ligadas ao vinho. Fufluns chegou a ser cultuado pelos romanos, mas logo foi substituído por outros.
Baco também teve mais equivalentes na Grécia. Na famosa cidade de Corinto, por exemplo, havia o culto a Lisio. Além de deus do vinho, era ele a divindade responsável por levar os espíritos dos mortos ao paraíso, em uma lenda similar à de Jesus Cristo. Outra lenda diz que o príncipe troiano, Ganímedes, foi o “copeiro do Olimpo, o que alegra, com seu vinho, o coração dos deuses”.
Zeus teria se apaixonado pela beleza do jovem e o levado ao convívio das divindades. Lá, ele substituiu Hebe nas funções de servir aos seres olímpicos o néctar da imortalidade e derramar o resto sobre a terra para a alegria dos homens. Hebe, deusa da juventude, até então era responsável pela bebida dos deuses, e é sempre representada com taças, ânforas e até mesmo é tema de fontes (da juventude).
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Já na “mitologia” cristã, o “deus” do vinho é Noé, o homem que fez a arca e sobreviveu ao dilúvio universal. Tão logo desembarcou, “começou Noé a ser lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e ficou nu em sua tenda”, diz o livro do Gênesis. No entanto, a lenda de Noé não é exclusiva dos cristãos e tem equivalências em diversas outras culturas antigas.
No Zoroastrismo, um dos deuses criadores, Ahura Mazda – cujo nome pode significar sabedoria, mas também pode evocar a embriaguez –, está ligado ao vinho
Para os persas, o vinho foi descoberto pelo grande rei Yamshid. Acredita-se que ele adorava uvas e, para lhe agradar, as mulheres de seu harém lhe ofereciam muitos cachos. Como não conseguia consumir todos frescos, mandou guardá-los em uma ânfora para desfrutar aos poucos.
Os grãos, no entanto, romperam-se e acumularam líquido no fundo do recipiente, que fermentou. Sentindo o cheiro estranho, o rei ordenou que o frasco fosse jogado fora, advertindo quem bebesse de que era veneno. Uma de suas concubinas, que havia sido banida de sua convivência, pensou em se matar e decidiu provar o líquido proibido no intuito de se suicidar.
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Logo, percebeu que, em vez de causar algum mal, a bebida lhe deu prazer, especialmente quando ela acariciava seu próprio corpo, tornando-a voluptuosa e desinibida. Ela, então, decidiu ir aos aposentos do rei e se oferecer para ele.
Satisfeito com a noite de prazer, mas intrigado, Yamshid foi averiguar e percebeu que o comportamento lascivo da moça era resultado da bebida. Pediu então uma taça e retomou seu momento de prazer. A partir daí, criou uma adega em seu palácio.
Outra crença persa, do tempo do profeta Zaratustra, criador do Zoroastrismo, a religião monoteísta da antiga Pérsia, diz que um dos deuses criadores também estava ligado ao vinho. Ahura Mazda, cujo nome pode significar sabedoria, mas também pode evocar a embriaguez, aparece na iconografia quase sempre em oferendas com vinho.
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Ainda na Ásia, o taoismo também possui uma divindade “vínica”. Sua versão de Baco se chama Lan Tsai Hou, ou Lan Caihe. Era um deus beberrão, que vivia nas praças cantando – e falando sempre a verdade – e vestido com remendos de uma túnica azul. Ele faz parte do grupo dos “oito imortais” da mitologia chinesa e foi alçado aos céus em um dia de cantoria e bebedeira.
Enfim, assim como o gênio de Aladim está encerrado dentro lâmpada aguardando ser despertado para realizar seus desejos, o deus do vinho aguarda dentro da garrafa, esperando alguém para libertá-lo e, com isso, também libertar a mente de quem o consome.
Para os enófilos que creem em mitos, a pedra ametista é um poderoso amuleto. Diz a lenda que uma bela ninfa estava sendo cortejada por Baco e, para que o deus não mais pudesse lhe assediar, ela foi transformada em um cristal.
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Alguns acreditam que o nome deriva da fusão de “a” (não) mais “methuskein” (intoxicar) e, por isso, ela impediria seu portador de ficar embriagado. A mitologia aponta ainda que Baco então pegou a pedra e a mergulhou no vinho, daí a cor avermelhada do líquido. Outra versão diz que foi a pedra quem deu sabor à água, transformando-a em vinho.