Um fungo pode tanto arruinar uma colheita como transformar uvas em vinhos maravilhosos
Arnaldo Grizzo Publicado em 09/01/2023, às 12h00 - Atualizado às 15h00
Tentativa e erro. Assim a humanidade ganhou experiência durante milênios. No mundo do vinho, não é diferente. Até hoje, muita coisa ainda é “experimentação”. É “errando” que os homens criam coisas maravilhosas. O próprio vinho, segundo uma de suas lendas, seria fruto de um “erro” – quando nos primórdios alguém esqueceu as uvas e elas fermentaram.
Alguns dos vinhos mais famosos do mundo, por sinal, nasceram de “erros”. Por exemplo, o Champagne – como conhecemos hoje – só existe graças a um “erro”, pois o frio impedia a fermentação completa do mosto que, após engarrafado, voltava a fermentar e, consequentemente, dava borbulhas ao vinho. Mas outros ícones da vitivinicultura mundial também surgiram de equívocos.
Outra famosa lenda diz que, em 1775, Johann Engert, gerente do mítico vinhedo de Schloss Johannisberg, mandou um mensageiro dizer ao abade de Fulda, cidade a sete dias de cavalgada, que as uvas estavam prontas para a colheita. Era preciso aguardar a ordem do religioso para iniciar a vindima. No entanto, o mensageiro se atrasou e as uvas apodreceram nas vinhas. Ainda assim, Engert decidiu colhê-las e vinificá-las. Meses mais tarde teria em mãos o mais magnífico vinho que já havia provado. Era a invenção do Spätlese – cuja tradução é colheita tardia.
O “segredo” por trás do espetacular vinho criado por Engert, contudo, não estava apenas no fato de vindimar tardiamente, mas no fungo que atacou suas uvas, chamado Botrytis cinerea – que é tanto responsável pela “podridão cinzenta” como pela “podridão nobre”.
A lenda alemã, no entanto, não é a única a tratar da descoberta dos vinhos botrytizados. Diz-se que a família Rákóczi adquiriu o castelo de Tokaj, na Hungria, em meados do século XVIII. Na época, havia um iminente ataque turco ao país e o responsável pelo vinhedo decidiu atrasar a colheita com receio da guerra. Todavia, o conhecimento dos enólogos em relação aos efeitos da Botrytis no vinho parece ser anterior, pois há relatos do século XVI de vinhos feitos com uvas atacadas por fungos na Hungria.
Mas como um fungo capaz de destruir toda uma colheita poderia também criar vinhos magníficos? O próprio nome do fungo não é muito alentador. Botrytis vem de cacho de uva, em grego, e cinerea vem de cinzas, em latim. Daí a podridão cinza. Uvas (ou quaisquer outras frutas) atacadas por esse fungo tomam uma coloração cinzenta e esse ataque, na maioria das vezes, leva à degradação do fruto sem que ele possa ser aproveitado para nada. Ou seja, a aparição de Botrytis cinerea em um vinhedo, na maioria das vezes, mais preocupa do que entusiasma os enólogos. Seu aparecimento é tratado como uma doença.
Como se pode supor, a umidade está por trás do aparecimento desse fungo. Regiões com chuvas constantes ou próximas a fontes de água, por exemplo, tendem a ter uma maior incidência de Botrytis, que não ataca somente os frutos, mas também flores e outras estruturas da vinha. E somente em situações muito específicas este fungo é bem visto.
Para que deixe de ser “podridão cinza” e se torne a tão aguardada “podridão nobre”, é necessária ajuda climática. Para que a Botrytis surja, é preciso umidade. No entanto, para que a vinha consiga “combater esse mal”, essa umidade não pode ser intensa e constante. Dessa forma, para que haja um equilíbrio de forças, são necessárias manhãs frias e úmidas e tarde quentes e secas.
Assim, a Botrytis instala-se nos frutos, mas não a ponto de estragá-los, pois a videira é capaz de combater seu alastramento. No final, a ação do fungo na uva cria algo que resulta em vinhos míticos. Deve-se lembrar, contudo, que nem todas as uvas lidam bem com esse fungo. Riesling, Furmint, Gewürztraminer, Sémillon, Pinot Gris, Chenin Blanc são algumas das que oferecem bons resultados.
A Botrytis cinerea produz uma enzima, chamada pectinase, que destrói a película da casca uva. As perfurações na casca, como é de se supor, fazem com que o fruto desidrate, concentrando açúcares. No entanto, o segredo dos vinhos doces botrytizados não está somente na concentração, mas também em outras características provenientes da atuação do fungo.
Nessas uvas, por exemplo, aumenta-se a produção de glicerol, uma substância que dá maior sensação de untuosidade e doçura. Nelas também ocorre um maior metabolismo do ácido tartárico e uma preservação do ácido málico, o que mantém o nível de acidez apesar da concentração dos açúcares. Dessa forma, o que se obtém dessas uvas é mosto muito doce, ácido e untuoso.
Para se produzir uma garrafa de vinho botrytizado são necessárias uvas de diversas parreiras, pois a quantidade de mosto produzido pelas uvas atacadas pelo fungo é extremamente baixo. Aliás, em alguns lugares, as colheitas costumam ser feitas em etapas para que apenas as bagas atacadas pela Botrytis sejam colhidas – sem se misturar com as outras ainda “sãs”. Ou seja, é um processo totalmente manual, minucioso e demorado. Por sinal, quase tudo costuma ser mais moroso quando se trata desse tipo de vinhos. A fermentação também é mais vagarosa, pois o fungo tende a atacar as leveduras, por exemplo.
Vale lembrar ainda que, por ser um capricho da natureza na maioria das vezes (a Botrytis aparece naturalmente, mas há quem a inocule no vinhedo), nem sempre as condições são ideais para a produção desses vinhos, mesmo em regiões onde a climatologia costuma ser propícia. Assim, em certos anos, produtores renomados não fazem vinhos botrytizados.
Vinhos feitos com uvas botrytizadas tendem a ser doces, mas não a ponto de serem enjoativos, pois possuem alta acidez (os melhores), que equilibra o paladar. Essa combinação de açúcar e acidez também faz com que eles apresentem uma longevidade impressionante, sendo capazes de, às vezes, durar séculos. Antes mesmo de levar à boca, eles costumam encantar no nariz, com aromas extremamente complexos que podem remeter a mel, cera, frutos secos, nozes etc.
Alguns dos vinhos mais caros e celebrados do mundo são feitos com “podridão nobre”, como o Château d’Yquem, da região de Sauternes, na França, por exemplo. Um vinho que já foi chamado de “luz engarrafada”. Mas além dele também há os míticos Trockenbeerenauslese alemães, os Sélection de Grains Nobles da Alsácia, na França, além dos lendários Eszencia de Tokay, na Hungria. Esses são alguns exemplos clássicos, mas há exemplares de vinhos botrytizados nas mais diversas partes do mundo. Tudo graças a um “engano”.
* Texto originalmente publicado na edição 137 da Revista ADEGA, de março de 2017, e republicado após atualização